Economia (Henry)

Por “economia” entendem-se habitualmente duas coisas: por um lado, um domínio particular da realidade, com seus fenômenos específicos e suas leis; por outro lado, certa ciência que se define, como toda ciência, pelo que ela retém e isola no todo aquilo de que ela fará seu objeto de estudo. O domínio particular da realidade designado sob o título de “realidade econômica” é o do trabalho social e dos fenômenos que lhe estão ligados, o salário, a mercadoria, o valor, o dinheiro, o capital em suas diversas formas, etc. Quanto à ciência que tem por objeto esta “realidade econômica” em seus aspectos diversos, nós lhe chamamos “economia política”, ou ainda, mais simplesmente mas de maneira anfibológica, “economia”.

A fim de estabelecer a pertinência dos conceitos fundamentais do cristianismo relativamente ao “conteúdo” do mundo e à sua [341] realidade, referir-nos-emos à análise de Marx, um dos maiores pensadores de todos os tempos, o único a ter lançado sobre a sociedade e sua economia um olhar transcendental suscetível de produzir o princípio de sua inteligibilidade. Conforme ao desdobramento do conceito de economia, a crítica de Marx é dupla. É, por um lado, uma crítica da “economia política”, isto é, dessa ciência que tematiza os fenômenos econômicos e suas leis. Esta crítica é radical na medida em que, além de pôr em questão certas teses da escola inglesa, de Smith e de Ricardo notadamente, ela tem por alvo a economia política em geral, a própria possibilidade de uma ciência como a economia. Ora, esta crítica da possibilidade de uma ciência econômica só é radical porque ela é antes de tudo uma crítica da própria realidade econômica.

O que pode significar uma crítica da realidade econômica? O fato de que, contrariamente à ilusão dos economistas, à qual Marx dá o nome de fetichismo ou ainda de materialismo econômico, não há realidade econômica no sentido em que se fala de realidade como de algo que existe por si mesmo e de certo modo desde sempre. O trabalho, todavia, o salário pago em troca desse trabalho, os bens de consumo produzidos por ele, o dinheiro que resulta, ele também, desse trabalho, as trocas, a atividade industrial, comercial, financeira em geral, tudo isso não é bastante real, não constitui precisamente, por um lado evidente, o “conteúdo” desse mundo? É aqui que as intuições decisivas do cristianismo fazem balançar esse sistema de evidências. Por trás de todas essas atividades consideradas “econômicas” e “sociais”, o que age é, como acabamos de lembrar, o ego transcendental de que cada poder é dado a ele mesmo na doação a ele desse ego; de tal modo, que ele é esse Eu Posso fundamental, o único capaz de andar, tocar, elevar – de cumprir cada um desses atos implicado em cada forma de trabalho. Porque ele não é dado a ele mesmo senão na autodoação da vida, este Eu Posso é vivente e só existe como tal. Tendo sua possibilidade da vida, tem dela todos os seus caracteres; é vivente e como tal invisível, subjetivo, [342] individual, real. Entre esses numerosos caracteres essenciais decorrentes da essência do agir, não se encontra nenhum índice econômico. Andar, pegar, portar, tocar e mesmo correr, cantar, etc., essas atividades que são todas, a mesmo título, modos de agir, não são em si mesmas nada econômico. O trabalho, portanto, na medida em que consiste em tais atos, não é em si mesmo nada econômico.

Tal é a intuição abissal de Marx. O que é reprochado à escola inglesa, a toda ciência econômica, é ter falado do trabalho de início como de uma realidade econômica, sem ver que há aí uma questão prévia de que tudo depende. A esse trabalho considerado ingenuamente como algo econômico em si mesmo, e isso tanto pelos economistas do século XIX como pelos de hoje, Marx opõe o trabalho “real”, cujas determinações fenomenológicas originárias essenciais ele ao mesmo tempo afirma: trabalho “subjetivo”, “individual”, “vivo”. Assim, o trabalho é compreendido como modo do agir e referido sem equívoco à essência deste, à vida. Se é o trabalho e, mais precisamente ainda, o conjunto das atividades humanas o que constitui o conteúdo do mundo, sua realidade, então se deve dizer, com efeito: a realidade do mundo não tem nada que ver com sua verdade, com seu modo de mostrar, com o “lá fora” de um horizonte, com uma objetividade qualquer. A realidade que constitui o conteúdo do mundo é a vida. Tal é a nova evidência: longe de fugir da realidade deste mundo, o cristianismo, que não conhece senão a vida, por isso mesmo não tem relação senão com esta mesma realidade.

A prova do caráter vivente do “conteúdo” do mundo, é a análise econômica de Marx em conjunto que a dá. Ela propõe uma gênese transcendental da economia cuja construção deslumbrante convém retraçar aqui, em algumas palavras. A realidade, segundo Marx, não é em si nada econômico. Pode-se analisar uma quantidade de açúcar, que nele nunca se encontrará seu preço. Pode-se analisar uma atividade humana qualquer, seja ela reconhecida como trabalho ou não, que nunca se achará aí algo como “salário”, dinheiro, valor de troca. Tudo o que pode ser dito “econômico” e decorrer de [343] uma ciência como a “economia política” é em si estranho ao mundo. A “realidade econômica” é produto de uma invenção do espírito humano. Um mundo, homens que o habitam, que aí produzem os bens necessários à sua existência, que mantêm entre eles uma rede de relações complexas, tudo isso teria muito bem podido produzir-se e a economia – realidade econômica e ciência desta realidade – estar, todavia, ausente deste mundo. Aí está uma das teses de Marx.

Porque então uma economia em si estranha à realidade do mundo nasceu nele? Porque se desenvolveu a ponto de estender seu reino sobre ele e determiná-lo completamente? É aqui que as teses fundadoras do cristianismo fazem um reaparecimento imprevisto. Somente, com efeito, a essência invisível da vida explica o aparecimento no mundo de uma “economia”. E eis como. Tendo cada forma da atividade humana sua essência do agir e, assim, da vida, o trabalho se encontra pois definido por esta. Como a vida contém a realidade, o trabalho é ele mesmo real. Como ela encerra em si uma ipseidade de princípio, este trabalho real é individual. Como a vida é subjetiva, o trabalho é subjetivo. Como ela é vivente, ele é vivente. Aí estão, como dissemos, todos os caracteres reconhecidos por Marx no trabalho: real, individual, subjetivo, vivente.

Na atividade concreta pela qual os homens produzem os bens que lhe são necessários, intervém o momento em que, por consequência da complexidade crescente desta atividade, os homens têm de trocar o produto de seu trabalho. Como trocar x mercadorias a por y mercadorias b, quando essas mercadorias são qualitativa e quantitativamente diferentes? Como definir o peso de sal que deve ser dado em troca de tal quantidade de peles? Em função da quantidade de trabalho exigido pela produção do sal e pela das peles. O único critério possível da troca é, portanto, o trabalho. E de fato, nas múltiplas trocas que se produzem constantemente, o que é trocado não são as mercadorias, mas os trabalhos que as produziram. Supondo a troca uma igualdade, os trabalhos trocados devem ser iguais. Mas, tendo o modo de agir sua essência deste último, cada um desses trabalhos [344] é real, subjetivo, individual, vivente – invisível. Nenhum deles se presta a uma medida qualquer, quantitativa ou qualitativa. Tal é a aporia: a troca supõe a medida dos trabalhos, mas esta é impossível.

E tal é a solução: a invenção da economia. Se a troca das mercadorias supõe a medida dos trabalhos reais que os produziram, e se esta medida é impossível porque esses trabalhos são invisíveis, trata-se então de construir entidades objetivas que se suponha representem essas modalidades do agir invisível, para ser equivalentes delas. A invenção da economia consiste na construção e na definição dos equivalentes objetivos que se supõe representam os trabalhos reais invisíveis e permitem sua pô-los em igualdade, e assim seu cálculo e sua troca. A economia não é nada além do resultado desta gênese: o conjunto dos “representantes” objetivos do agir, representantes considerados como equivalentes seus.

Em que consistem tais “representantes”? Na representação precisamente do trabalho real, na posição diante do olhar, na verdade do mundo, em forma de norma objetiva, do que encontra sua realidade na Verdade da Vida: o trabalho vivente. E, como tudo o que se mostra na verdade do mundo, na medida em que ele se mostra nela, é irreal, irreal é então o conjunto dos equivalentes objetivos do trabalho vivente, irreal e mais precisamente ideal, na medida em que se trata de conceitos. A gênese da economia consiste assim na construção do conjunto dos equivalentes objetivos ideais irreais do trabalho vivente – e notadamente do primeiro deles, o “trabalho” no sentido dos economistas, o trabalho econômico a que Marx chama trabalho “abstrato”, o trabalho “social”. O trabalho econômico é precisamente a representação irreal do trabalho real, invisível.

Aqui não é o lugar para dizer como se opera a construção de cada um dos equivalentes objetivos ideais do trabalho vivente invisível, equivalentes constitutivos da “realidade” econômica. Limitemo-nos a algumas observações essenciais para nosso propósito. A “realidade” econômica objetiva é ideal e irreal como cada um dos equivalentes [345] do trabalho de que ela é constituída. Assim, o universo econômico pelo qual o pensamento moderno tende a definir o conteúdo “real” da sociedade é um universo de abstrações, cada uma proveniente da substituição de uma modalidade invisível e irrepresentável do agir vivente por um parâmetro em que há o esforço por representar as propriedades deste agir – propriedades que têm sua realidade da vida. Ora, as entidades econômicas não se limitam a representar o trabalho vivente, mas provêm dele. É, por exemplo, uma tese decisiva de Marx que o valor de troca, o dinheiro, o capital, etc., são produzidos pela força subjetiva vivente de trabalho, e por ela unicamente. É finalmente o universo econômico inteiro – que constitui o “conteúdo” deste mundo – que provém da vida e remete a ela. Desse conteúdo, a verdade do mundo nos oferece a aparência ineficiente, enquanto a Verdade da Vida revela sua verdadeira natureza, o agir que produz os objetos econômicos e determina sua história. Longe de fugir desta, as intuições do cristianismo nos reconduzem ao princípio de seu desenvolvimento e o tornam inteligível.

É no plano das relações concretas com o outro que a referência do “conteúdo” do mundo à essência invisível da vida se impõe com uma força invencível. Já não se trata desta vez da análise, por uma fenomenologia da vida, da “realidade econômica”, de sua natureza e de seu funcionamento. São as declarações do Novo Testamento, do próprio Cristo, que entram diretamente em jogo para produzir, mais neste domínio da experiência do outro que em qualquer outro, seu efeito revolucionário. (Michel Henry MHSV)