(Beaini1981)
Mas é também, para Heidegger, no pensamento do Ser que o homem “alcança a sua palavra”.1 Outro círculo se anuncia: ser homem, isto é, realizar-se como “Dasein” desvelador, aceder à verdade, pensar o Ser e alcançar a palavra são movimentos entrelaçados. Percorramos este círculo. Sabe-se que o Ser não se “mostra” como tal, simplesmente porque não “é”; o Ser é antes a possibilidade inexaurível do ser isto ou aquilo, a saber, do “é” dos entes particulares; ele próprio indemarcável, torna contudo possível todo contorno que demarca cada ente no seu “é”. Correlativamente, não é possível ao homem “captar” o próprio Ser; e contudo, é ele constantemente afetado pelo Ser na medida mesma em que se relaciona com os entes e com eles “se espanta”. Esta “dis-posição” ao Ser a nos afetar no trato com os entes pode também ser dita uma “correspondência ao apelo do Ser nos entes com os quais nos relacionamos. A correspondência responde, e esta resposta é a “vocação” (de “vocare”) do homem. A palavra que responde ao chamamento do Ser nos entes particulares, nomeia o “é” dos entes, fá-los surgir na presença, opera a sua verdade. E eis que os círculos se circundam numa espiral que vertiginosamente nos envolve agora na questão da essência mesma da linguagem.
Divaguemos um pouco neste envolvimento. Ele significa, primeiramente, que, “mais que a simples colocação em circulação do que já está manifesto ou oculto”,2 a linguagem não é, originariamente, meio de comunicação ou forma de expressão. Como “expressão” a serviço da comunicação, a linguagem é derivada de seu sentido originário. A linguagem de cuja essência deriva sua possibilidade como meio de comunicação é o dizer que responde à interpelação do Ser sempre implícita na apreensão dos entes. Mais ainda: este dizer correspondente pronunciado pelo homem começa no pensamento originário que ouve o Ser; é, antes e primeiramente, silêncio da escuta para fazer-se palavra que responde. “Antes de falar — escreve Heidegger —, o homem terá que deixar-se apelar pelo Ser mesmo, com o risco de sob tal apelo ter pouco ou raramente algo a dizer. Somente assim se restituirá à palavra a preciosidade de sua Essência, e, ao homem, a habitação para morar na Verdade do Ser”.3 Ou ainda: “O pensamento originário é o eco do favor do ser pelo qual.se ilumina e pode ser apropriado o único acontecimento: que o ente é. Este eco é a resposta humana à palavra da voz silenciosa do ser. A resposta do pensamento é a origem da palavra humana: palavra que primeiramente faz surgir a linguagem como manifestação da palavra nas palavras”.4
Mas se a linguagem, na sua essência, traz à luz o “é” dos entes, operando assim a produção da verdade, isto não significa que esta essência seja “fatalmente” concretizada, nem que a linguagem edifique necessariamente a verdade e, muito menos, que a edifique sempre. A dissimulação da possibilidade inesgotável de Ser, quando cristalizada num ou noutro modo de ser dos entes particulares, erigido em critério exclusivo e normativo de toda verdade (o modo de ser do ente como objeto de ciência, por exemplo), é correlata à distorção da linguagem; ela passa a servir, por exemplo, como instrumento de dominação do homem (reduzido, no caso, a sujeito cognoscente) sobre os entes (conduzidos então à categoria de objetos). Assim também, quando o pensamento é metamorfoseado em “instrumento de formação”, em “atividade acadêmica” ou coisa semelhante,5 a linguagem escapa à sua origem. É por isto que, fundamentalmente, os modos como o homem, em diferentes situações e em diferentes épocas, apreende o Ser na apreensão dos entes, isto é, os modos da linguagem, decidem os modos de produção da verdade e intervém nos rumos da História. Assim é também que, em contrapartida, a situação e o momento privilegiados de realização da linguagem essencial são, para Heidegger, os do pensador e do poeta, estes “habitantes próximos nas montanhas mais separadas”.6
- Cf. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade, trad. de E. Stein, São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 45.[
]
- M. Heidegger, “L’origine de l’oeuvre d’art”. In: Chemins…, p. 57.[
]
- M. Heidegger, Sobre o Humanismo, trad. de E. Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p. 34.[
]
- M. Heidegger, Que é Metafísica? trad. de E. Stein, São Paulo, Duas Cidades. 1969, p. 55.[
]
- Cf. M. Heidegger, Sobre o Humanismo, p. 30.[
]
- Cf. referência a uma passagem de Hölderlin, mais de uma vez evocada por Heidegger.[
]