Ao atribuirmos espacialidade à presença [Dasein], temos evidentemente de conceber este “ser-no-espaço” a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da presença [Dasein] não é um ser simplesmente dado e por isso não pode significar ocorrer em alguma posição do “espaço cósmico” e nem estar à mão em um lugar. Ambos são modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. A presença [Dasein], no entanto, está e é “no” mundo, no sentido de lidar familiarmente na ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum modo, a espacialidade lhe convém, isto só é possível com base nesse ser-em. A espacialidade do ser-em apresenta, porém, os caracteres de dis-tanciamento e DIRECIONAMENTO. STMSC: §23
Em seu ser-em, que instala dis-tanciamento, a presença [Dasein] também possui o caráter de DIRECIONAMENTO. Toda aproximação toma antecipadamente uma direção dentro de uma região, a partir da qual o dis-tanciado se aproxima para poder ser encontrado em seu lugar. A ocupação exercida na circunvisão é um distanciamento direcional. Nessa ocupação, isto é, no ser-no-mundo da própria presença [Dasein], já se dá previamente a necessidade de “sinais”; é esse instrumento que assume a indicação explicita e facilmente manuseável das direções. É ele que mantém expressamente abertas as regiões utilizadas na circunvisão, cada destino do pertencer, do encaminhar-se, do ir buscar e levar. Sendo, a presença [Dasein], na qualidade de um ser que distancia e se direciona, possui um regido já desde sempre descoberta. Assim como o dis-tanciamento, o DIRECIONAMENTO é conduzido, previamente, como modo de ser-no-mundo pela circunvisão da ocupação. STMSC: §23
É deste DIRECIONAMENTO que nascem as direções fixas de direita e esquerda. Da mesma forma que os seus dis-tanciamentos, a presença [Dasein] também traz permanentemente consigo as direções esquerda-direita, em cima-embaixo. A espacialização da presença [Dasein] em sua “corporeidade” (Leiblichkeit), a qual comporta uma problemática especial que não será tratada aqui, acha-se também marcada por essas direções. Por isso, o manual e os instrumentos usados no corpo vivo, as luvas, por exemplo, que têm de realizar os mesmos movimentos da mão, também se direcionam pela esquerda e pela direita. Um instrumento que constitui um utensílio manual e que deve ser movido e segurado pela mão, ao contrário, não realiza o movimento característico da mão, ou seja, a “manobra”. É por isso que não existe martelo direito e esquerdo, apesar de também ser manuseado com a mão. STMSC: §23
Deve-se, porém, considerar que o DIRECIONAMENTO próprio do distanciamento funda-se no ser-no-mundo. Assim, a direita e a esquerda não são coisas “subjetivas” das quais o sujeito possui uma sensação, mas sim direções do DIRECIONAMENTO, dentro de um mundo já sempre à mão. “Pelo puro sentimento da diferença de meus dois lados”, nunca poderia localizar-me corretamente no mundo. O sujeito com “puros sentimentos” desta diferença é um ponto de partida construtivo que desconsidera a verdadeira constituição do sujeito, a saber, que para poder orientar-se, a presença [Dasein] já está e já deve estar num mundo junto com esse “puro sentimento”. É o que aparece claramente no exemplo com que Kant tenta esclarecer o fenômeno da orientação. STMSC: §23
Suponha-se que eu entre num quarto conhecido mas escuro que, durante minha ausência, foi rearrumado de tal maneira que tudo que estava à direita esteja agora à esquerda. Para me orientar, de nada serve o “puro sentimento da diferença” de meus dois lados, enquanto não tiver tocado um determinado objeto, diz Kant, “cuja posição tenho na memória”. O que isto significa sendo que eu me oriento necessariamente num mundo e a partir de um mundo já “conhecido”? O conjunto instrumental de um mundo {CH: a partir da pertinência conhecida que eu preservo e segundo a qual me transformo} já deve ter sido dado previamente a presença [Dasein]. Que eu já sempre esteja num mundo, isto não e menos constitutivo da possibilidade de orientação do que o sentimento de direita e esquerda. A evidência dessa constituição de ser da presença [Dasein] não justifica que se diminua o seu papel ontologicamente constitutivo. Kant não o diminuiu assim como qualquer outra interpretação da presença [Dasein]. A contínua utilização dessa constituição não dispensa porem uma explicação ontológica adequada, ao contrario, ela a exige. A interpretação psicológica de que o eu possui algo “na memória”, no fundo, tem em mente a constituição existencial de ser-no-mundo. Como Kant não vê essa estrutura, também não reconhece todo o contexto de constituição de uma orientação possível. O DIRECIONAMENTO pela direita e esquerda baseia-se no DIRECIONAMENTO essencial da presença [Dasein] que, por sua vez, determina-se também essencialmente pelo ser-no-mundo. Sem dúvida, Kant não esta preocupado com uma interpretação temática da orientação. Ele pretende apenas mostrar que toda orientação necessita de um “principio subjetivo”. “Subjetivo” significa aqui a priori. O a priori do DIRECIONAMENTO segundo direita e esquerda funda-se, por sua vez, no a priori “subjetivo” de ser-no-mundo, que nada tem a ver com uma determinação previamente restrita a um sujeito destituído de mundo. STMSC: §23
Dis-tanciamento e DIRECIONAMENTO enquanto características constitutivas do serem determinam a espacialidade da presença [Dasein] de estar no espaço intramundano, descoberto na circunvisão das ocupações. A explicação dada ate aqui sobre a espacialidade do manual intramundano e a espacialidade do ser-no-mundo propicia as pressuposições para se elaborar o fenômeno da espacialidade do mundo e se colocar o problema ontológico do espaço. STMSC: §23
Enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] já descobriu a cada passo um “mundo”. Caracterizou-se esse descobrir, fundado na mundanidade do mundo, como liberação dos entes numa totalidade conjuntural. A ação liberadora de deixar e fazer em conjunto se perfaz no modo da referência, guiada pela circunvisão e fundada numa compreensão prévia da significância. Mostra-se assim que, dentro de uma circunvisão, o ser-no-mundo é espacial. E somente porque a presença [Dasein] é espacial, tanto no modo de dis-tanciamento quanto no modo de DIRECIONAMENTO, o que se acha à mão no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A liberação de uma totalidade conjuntural é, de maneira igualmente originária, um deixar e fazer em conjunto que, numa região, dis-tancia e direciona, ou seja, libera a pertinência espacial do que está à mão. Na significância, familiar à presença [Dasein] nas ocupações de seu ser-em, reside também a abertura essencial do espaço. STMSC: §24
No termo situação (posição, condição – “estar em posição de…, estar em condições de…” ), inclui-se um significado espacial. Não pretendemos eliminá-lo do conceito existencial. Pois ele também se acha no “pre” [das Da] da presença [Dasein]. Pertence ao ser-no-mundo uma espacialidade própria, anteriormente caracterizada nos fenômenos de distanciamento e DIRECIONAMENTO. Existindo faticamente, a presença [Dasein] “se arruma”. A espacialidade que possui o caráter de presença [Dasein] e sobre cujas bases a existência determina a cada vez o seu “lugar” funda-se, contudo, na constituição de ser-no-mundo. O constitutivo primordial dessa constituição é a abertura. Assim como a espacialidade do pre [das Da] funda-se na abertura, a situação também está fundada na decisão. Cada vez a situação é o pre [das Da], o aberto na decisão, que o ente que existe é. A situação não é a moldura simplesmente dada em que a presença [Dasein] ocorre ou apenas se coloca. Longe de um amálgama simplesmente dado de circunstâncias e acasos, a situação é somente pela e na decisão. Somente decidida para o pre [das Da] em que ela mesma tem de ser em existindo é que se lhe abre, cada vez, o caráter faticamente conjuntural das circunstâncias. Somente para a decisão é que pode ocorrer aquilo que chamamos de acaso, ou seja, o que lhe cai a partir do mundo circundante e do mundo compartilhado. STMSC: §60
A interpretação temporal da presença [Dasein] cotidiana deve partir das estruturas constitutivas da abertura. São elas: compreender, decadência e fala. Os modos de temporalização da temporalidade, a serem liberados no tocante a estes fenômenos, propiciam a base para se determinar a temporalidade do ser-no-mundo. Isso levará, de novo, ao fenômeno do mundo, permitindo uma delimitação da problemática especificamente temporal da mundanidade. Esta deve confirmar-se mediante a caracterização do ser-no-mundo cotidiano e imediato da ocupação decadente na circunvisão. É a sua temporalidade que possibilita a modificação da circunvisão em visualização perceptiva e em conhecimento teórico aí fundado. A temporalidade do ser-no-mundo que assim emerge demonstra-se, também, fundamento da espacialidade específica da presença [Dasein]. Deve-se mostrar a constituição temporal de dis-tanciamento e DIRECIONAMENTO. O todo destas análises desvela uma possibilidade de temporalização da temporalidade em que se funda, ontologicamente, a impropriedade da presença [Dasein]. Além disso, conduz à questão de como se deve compreender o caráter temporal da cotidianidade, o sentido temporal da expressão – “numa primeira aproximação e na maior parte das vezes”, aqui constantemente utilizada. A fixação desse problema torna claro que e em que medida o esclarecimento do fenômeno até agora obtido é insuficiente. STMSC: §67
A presença [Dasein] arruma espaço através de DIRECIONAMENTO e dis-tanciamento. com base na temporalidade da presença [Dasein], como isso é existencialmente possível? A função fundadora da temporalidade com relação à espacialidade da presença [Dasein] será demonstrada apenas em suas linhas gerais, na medida em que esta demonstração é imprescindível para as discussões ulteriores a respeito do sentido ontológico do “acoplamento” de espaço e tempo. A descoberta de uma região que dá direções pertence à arrumação de espaço, própria da presença [Dasein]. Por região, indicamos, de início, o para onde a que possivelmente pertence um instrumento à mão no mundo circundante e, portanto, passível de localização. Em todo deparar-se, ter à mão, deslocar e descartar um instrumento, já se descobriu uma região. O ser-no-mundo das ocupações está direcionado em se direcionando. O pertencer traz uma remissão essencial à conjuntura. Esta sempre se determina faticamente a partir do nexo conjuntural do instrumento de que se ocupa. As remissões conjunturais são apenas compreensíveis no horizonte de um mundo já aberto. Da mesma forma, somente o seu caráter de horizonte é que possibilita o horizonte específico do para onde a que pertence na região. A descoberta de uma região direcionadora funda-se num aguardar que retém ekstaticamente o possível para-lá e para-aqui. Enquanto aguardar que se direciona à região, arrumar-se é, de modo igualmente originário, aproximar (dis-tanciar) do que está à mão e do que é simplesmente dado. A partir da região previamente descoberta, a ocupação em se dis-tanciando volta ao que está próximo. Tanto a aproximação como a avaliação e medição dos intervalos, dentro do que é simplesmente dado num dis-tanciamento dentro do mundo, estão fundadas numa atualização, inerente à unidade da temporalidade, dentro da qual também o DIRECIONAMENTO se faz possível. STMSC: §70
Porque, enquanto temporalidade, a presença [Dasein] é, em seu ser, ekstática e horizontal, ela pode, fática e constantemente, trazer consigo um espaço arrumado. Em consideração a este espaço ekstaticamente tomado, o aqui de cada posto e situação fática nunca pode significar uma posição no espaço. Significa, porém, o espaço de jogo que se abre no DIRECIONAMENTO e distanciamento da periferia da totalidade instrumental a ser logo ocupada. STMSC: §70