Dilthey: sistema ético

tradução

De fato, existe apenas um sistema ético em múltiplo nível, que se desenvolveu ao longo de uma longa história e, muitas vezes, se moldou de forma independente em lugares diferentes, definindo-se em uma multiplicidade de formas. Esse sistema ético é uma realidade tão vasta e autêntica quanto a religião ou a lei. Um ethos – seja uma regra, o que se repete ou a forma do que é constante e universal nas ações – fornece apenas a base neutra que inclui tanto a riqueza acumulada das máximas éticas quanto o que foi aprendido sobre a finalidade das ações pretendidas para atingir seu objetivo com a menor resistência possível. Um ethos inclui até mesmo aquele aspecto do direito comum que incorpora convicções comuns sobre a justiça, na medida em que se manifestam através da prática como um poder de controle sobre os indivíduos. É semelhante à maneira como Ulpian define “costumes” (mores), a saber, como tacitus consensus populi, longa consuetudine inveteratus. Ethos ou costume podem ser claramente delineados de acordo com povos e estados. A ética, por outro lado, forma um sistema ideal único que é meramente modificado pelas diferenças de organizações, comunidades e associações. O estudo desse sistema ideal procede relacionando a autorreflexão psicológica a uma comparação das modificações do sistema em vários povos. De todos os historiadores, Jakob Burckhardt mostrou a visão mais profunda desse último aspecto.

Este sistema ético não consiste em ações humanas. De fato, nem mesmo pode ser estudado através delas. O sistema consiste em um grupo específico de fatos da consciência e naquele aspecto das ações humanas que é produzido por eles. Em primeiro lugar, procuraremos apreender esses fatos da consciência em sua totalidade. O ético existe em uma forma dupla, e cada forma em que aparece se tornou ponto de partida para uma escola unilateral de moralidade. Encontra-se, por um lado, nos julgamentos de um espectador de ações e, por outro, como um constituinte de motivos que lhes confere um conteúdo de significado independente do sucesso (ou propósito) das ações no mundo. O que é considerado ético é o mesmo nas duas formas. Mas, por um lado, aparece como a força viva da motivação, por outro, como a força que responde de fora para dar aprovação ou desaprovação imparcial às ações de outros indivíduos. Esta importante tese pode ser demonstrada da seguinte maneira. Em todo caso em que me vejo, como agente, sob a restrição de uma obrigação moral, essa obrigação pode ser expressa na mesma proposição subjacente ao meu julgamento como espectador. Até agora, a ética sempre tomou uma dessas duas formas como base. Kant e Fichte consideravam o ético como uma força motivadora ativa, enquanto os proeminentes moralistas britânicos e Herbart o consideravam uma força externa que reagia às ações de outros. Por causa disso, a ética perdeu um entendimento abrangente e fundamental do que é ético. A aprovação e desaprovação dada pelo espectador contém o ético de maneira indivisa (vantagem inestimável), mas de forma atenuada. O que foi especialmente enfraquecido aqui é a conexão interna entre a motivação e o conteúdo geral da mente, que aparece com tanta força nas lutas éticas do agente. Por outro lado, onde o aspecto ético da própria motivação é objeto de investigação, sua análise se torna muito difícil, pois apenas o nexo que liga os motivos e as ações é dado claramente na consciência; os próprios motivos, no entanto, surgem misteriosamente. Por essa razão, o caráter de um ser humano é um mistério que apenas seu modo de ação pode desvendar parcialmente. Normalmente, encontramos uma conexão transparente entre caráter, motivo e ação nas figuras criadas pelo poeta, mas não na observação da vida real. No entanto, também encontramos um elemento estético nas manifestações de uma pessoa real sempre que suas ações refletem sua alma produtiva mais vividamente do que o normal.

Nesta dupla forma, a consciência ética permeia a vida geral da sociedade em um jogo infinitamente complexo de impulsos e reações. Com base no que dissemos, o que ativa a consciência ética pode ser analisado em dois tipos de forças. Antes de tudo, opera diretamente como o desenvolvimento de uma consciência moral e a consequente regulação das ações. Tudo o que torna a vida digna de ser vivida para o homem está fundamentado na consciência; pois quem tem senso de dignidade e, consequentemente, pode enfrentar com calma as vicissitudes da vida, exige esse fundamento não apenas para si mesmo, mas também para aqueles a quem ama a fim de ser capaz de viver. A outra forma de força psicológica através da qual a consciência ética opera dentro da sociedade é indireta. A consciência moral que se desenvolve na sociedade exerce pressão sobre os indivíduos. É precisamente por isso que ela governa como um sistema nos extremos da sociedade e subordina os mais diversos motivos sociais a si próprio. Como escravos, até os motivos mais humildes são compelidos a servir esse poder do sistema ético. Opinião pública, julgamento de outras pessoas, honra – esses são os fortes laços que mantêm a sociedade unida quando a restrição exercida pela lei falha. E mesmo que um indivíduo estivesse firmemente convencido de que a maioria daqueles o condenando agiria exatamente como ele próprio, se ao menos pudessem evitar o julgamento do mundo, isso não cancela o feitiço sob o qual sua alma se encontra, como uma besta de rapina sob o feitiço dos olhos de um homem corajoso ou como o criminoso sob a vigilância dos cem olhos da lei. E se ele realmente procura escapar dessa solidariedade da opinião moral pública, ele pode suportar sua força apenas quando se une a outras pessoas em um clima diferente da opinião pública que o apóia. Por outro lado, essa autoridade reguladora da consciência ética coletiva produz a transmissão dos resultados coletivos da cultura ética, que ninguém seria capaz de produzir independentemente em si mesmo em sua múltipla complexidade e em cada momento de sua vida ativa. Essa transmissão é importante no início do desenvolvimento pessoal, assim como para qualquer pessoa que não seja moralmente independente e, em última análise, às vezes até para aqueles que são mais moralmente desenvolvidos.

Dessa maneira, um sistema autônomo de moralidade é formado na sociedade. Juntamente com o sistema de lei, que depende da coerção externa, esse sistema regula a ação com uma espécie de coerção interna. Nesse sentido, a moralidade ocupa seu lugar entre as ciências humanas, não apenas como um conjunto de imperativos que regulam a vida do indivíduo, mas como um dos grandes sistemas que funcionam na vida da sociedade.

Original

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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