VIDE diferença ontológica
A diferença de ente e ser é o âmbito no seio do qual a metafísica, o pensamento ocidental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que é. O passo de volta, portanto, se movimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica. A observação sobre o emprego que Hegel faz parte da palavra-guia “ser”, em sua pluralidade de sentidos, permite reconhecer que o discurso sobre ser e ente jamais se deixa fixar numa época da história reveladora de “ser”. O discurso do “sei” também jamais compreende este nome no sentido de um gênero, sob cuja vazia universalidade se alinham, como casos individuais, as doutrinas do ente historicamente apresentadas. “Ser” fala sempre historicamente e, por isso, perpassado pela tradição. [MHeidegger A CONSTITUIÇÃO ONTO-TEO-LÓGICA DA METAFÍSICA]
De acordo com isto, pensamos apenas então objetivamente o ser quando o pensamos na diferença com o ente e este na diferença com o ser. Assim a diferença se torna objeto de nossa análise, em sentido próprio. Se procurarmos representá-la, então logo nos descobrimos levados a conceber a diferença como relação que nossa representação acrescentou ao ser e ao ente. Com isto a diferença é rebaixada a uma distinção, a uma abra de nosso entendimento.
Aceitemos uma vez que a diferença é acréscimo de nossa representação, então surge a questão: um acréscimo destinado a quê? Responde-se: no ente. Bem. Mas que quer dizer isto: “o ente”? Que outra coisa significa senão: tal coisa que e? Assim abrigamos o presumido acréscimo, a representação da diferença, junto ao ser. Mas “ser” mesmo diz: ser que é ente. Já encontramos sempre ente e ser em sua diferença lá para onde deveríamos levar a diferença como o suposto acréscimo. A situação aqui é idêntica à do conto da Lebre e do Ouriço de Grimm: “Já sempre estou aqui” (Ick bünn all hier). Poder-se-ia agora proceder de modo global com este singular dado de coisas que consiste no fato de que ente e ser já sempre são previamente encontrados a partir da diferença e no seio dela, e então esclarecê-la assim: nosso pensamento representativo é assim organizado e constituído que ele aplica, por assim dizer, antecipadamente, em toda parte, além do uso de seu intelecto e, contudo, dele emergindo, a diferença entre o ente e o ser. Deste esclarecimento, cristalino em sua aparência, risas também rapidamente feito, muita coisa poder-se-ia dizer e ainda mais questionar; antes de mais nada talvez isto: de onde surge o “entre” no qual a diferença deve, por assim dizer, ser inserida? [MHeidegger A CONSTITUIÇÃO ONTO-TEO-LÓGICA DA METAFÍSICA]
Deixamos de lado opiniões e esclarecimentos; em vez disso, fixemos mesa atenção no seguinte: em toda parte e sempre encontramos aquilo que é chamado diferença: no objeto do pensamento, no ente enquanto tal, e isto tão despojado de dúvidas, que primeiro nem tomamos conhecimento desta constatação, enquanto tal. Nada nos obriga também a fazer isto. Nosso pensamento está livre para deixar impensada a diferença ou para considerá-la propriamente enquanto tal. Mas esta liberdade não vigora pata todos os casos. Imprevistamente pode dar-se o fato de que o pensamento se veja chamado a enfrentar a questão: o que, pois significa este tão falado “ser”? Mostra-se aqui imediatamente o ser como ser…, por conseguinte, no genitivo da diferença; então a questão anterior pode ser formulada mais objetivamente assim: que pensais da diferença, se tanto o ser como o ente, cada um a seu modo, tornam-se fenômenos emergindo da diferença? Para estarmos à altura desta pergunta, devemos primeiro colocar-nos num confronto objetivo com a diferença. Este confronto abre-se-nos se realizarmos o passo de volta. Pois somente através da distância por ele trazida se dá o próximo enquanto tal, a proximidade chega à sua primeira manifestação. Pelo passo de volta, liberamos o objeto do pensamento, o ser da diferença, para um confronto, que absolutamente pode permanecer inobjetivado.
Olhando ainda sempre a diferença e, contudo, liberando-a já pelo passo de volta para dentro do que deve ser pensado, podemos dizer: ser do ente quer dizer: ser que é o ente. O “é” fala aqui transitivamente, ultrapassando. O ser se manifesta como fenômeno ao modo de uma ultrapassagem para o ente. Contudo, o ser não passa para o outro lado, para junto do ente, deixando seu lugar, como se o ente pudesse, subsistindo primeiro sem o ser, ser apenas então abordado por ele. Ser ultrapassa (aquilo) para, sobrevém desocultando (aquilo) que unicamente através de tal sobrevento advém como desvelamento a partir de si. Advento quer dizer: ocultar-se no desvelamento; portanto, demorar-se oculto no presente: ser ente.
Ser mostra-se como sobrevento [Überkommnis] desocultante. Ente enquanto tal aparece ao modo do advento [Ankunft] que se oculta no desvelamento.
Ser no sentido do sobrevento desocultante e ente enquanto tal, no sentido do advento que se esconde, acontecem como fenômeno os enquanto são assim diferenciados a partir do mesmo, a partir da di-ferença. Somente esta dá e mantém separado o “entre” em que sobrevento e advento são conservados na unidade, em que são sustentados distintos e identificados. A diferença entre ser e ente é, enquanto diferença entre sobrevento e advento, a de-cisão desocultante-ocultante de ambos. Na de-cisão [Austrag] impera a revelação do que se fecha e se vela; este imperar dá a separação e união de sobrevento e advento.
Enquanto procuramos considerar a diferença enquanto tal, não a conseguimos fazer desaparecer, mas a perseguimos na sua origem essencial. A caminho dela pensamos a de-cisão de sobre-vento e ad-vento. Isto é o objeto do pensamento pensado por um passo de volta mais objetivamente: ser pensado a partir da diferença. [MHeidegger A CONSTITUIÇÃO ONTO-TEO-LÓGICA DA METAFÍSICA]