- Casanova
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Casanova
O imenso risco provém daquilo que, contudo, se mantém um fraternalismo do “semelhante”. Esse risco é duplo (e ele seria válido também para o discurso de Lévinas, digamos en passant): por um lado, esse fraternalismo nos liberta de toda obrigação ética, de todo dever de não ser criminoso e cruel, justamente com vistas a todo vivente que não é meu semelhante ou não é reconhecido como meu semelhante, porque ele é outro ou diverso do homem. Nessa lógica, não se é jamais cruel em relação ao que se chama de animal ou de um vivente não humano. De antemão, se é inocentado de todo crime em relação a todo vivente não humano. E quanto a especificar,por outro lado, como o faz Lacan: “É a um semelhante que ela (essa crueldade) visa, mesmo em um ser de outra espécie”, isso não resolve nem muda nada. É sempre ao meu semelhante que eu viso em um ser de outra espécie. Resta, então, que eu não posso cair sob a suspeita de crueldade em relação a um animal que eu faço sofrer a pior das violências, eu não sou jamais cruel com vistas ao animal como tal. Mesmo se eu puder ser acusado de ser criminoso em relação a um animal enquanto homem, enquanto aquele a que eu viso através do animal, ou através de sua figura, meu próximo ou meu semelhante. Ainda que se tratasse de um estrangeiro como o meu próximo. Se eu sou julgado ou se eu me julgo cruel ao matar uma besta ou milhões de bestas, tal como acontece todos os dias, diretamente ou não, é somente na medida em que eu teria matado “visando”, consciente ou inconscientemente, meus semelhantes, os homens, a figura do homem através das bestas, esse “através” podendo colocar em jogo todos os tipos de lógicas ou de retóricas inconscientes. É sempre o homem, meu semelhante, o mesmo que eu, eu mesmo em suma, que eu quero fazer sofrer, matar, de modo culpado, criminoso, cruel, incriminável.
Ora, não temos o dever senão em relação ao homem e ao outro como outro homem? E, sobretudo, o que responder a todos esses que não reconhecem em certos homens seus semelhantes? Essa questão não é abstrata, como os senhores sabem. Todas as violências, as mais cruéis e as mais humanas, foram desencadeadas contra os viventes, homens ou bestas, homens em particular, (165) que não tinham reconhecida a sua dignidade como semelhantes (e não se trata apenas de uma questão de racismo profundo, de classe social etc., mas às vezes do indivíduo singular como tal). Um princípio de ética, ou mais radicalmente de justiça, no sentido mais difícil que eu tentei opor ao ou distinguir do direito, talvez seja a obrigação que engaja minha responsabilidade junto ao mais dessemelhante, ao absolutamente outro, justamente, ao monstruosamente outro, ao outro passível de desconhecimento. O “irreconhecível”, eu diria de modo algo elíptico, é o começo da ética, da Lei, e não do humano. Na medida em que algo pode ser reconhecido, em que há algo semelhante, a ética adormece. Ela dorme um sono dogmático. Na medida em que ela permanece humana, entre homens, a ética permanece dogmática, narcisista e não pensa ainda. Nem mesmo o homem do qual ela tanto fala.
O “irreconhecível” é o despertar. É aquilo que desperta, é a experiência da própria vigília.
O “irreconhecível”, portanto, o que é dessemelhante. Se nós confiamos e nos ligamos a uma Lei que não nos relaciona senão com o semelhante e não define a transgressão criminal ou cruel senão naquilo a que ela visa de semelhante, então isso quer dizer, correlativamente, que não temos obrigação senão em relação ao semelhante, seja esse o estrangeiro como semelhante e “meu próximo”, o que, de próximo em próximo, como sabemos, intensifica de fato nossas obrigações com vistas ao mais semelhante e ao mais próximo. Mais obrigação em relação aos homens do que aos animais, mais obrigação em face dos homens próximos e semelhantes do que em relação aos menos próximos e menos semelhantes (na ordem das probabilidades e das semelhanças ou similitudes supostas ou fantasiadas: família, nação, raça, cultura, religião). Dir-se-á que é um fato (mas um fato pode fundar e justificar uma ética?): é um fato que eu sinto, no interior da ordem, mais obrigações em relação àqueles que compartilham minha vida de perto, os meus, minha família, os franceses, os europeus, aqueles que falam minha língua ou compartilham a minha cultura etc. Mas esse fato jamais teria fundado um direito, uma ética ou uma política.