Derrida (2008:147-148) – A Lei e o Crime são próprios do homem

Casanova

Lacan começa lembrando alguma coisa muito clássica e tradicional, por mais que isso adquira um ar de novidade sob a pena de Lacan. O quê? Lacan começa declarando que o próprio do homem, a origem do homem, o lugar no qual a humanidade começa é a Lei, a relação com a Lei (com um L maiúsculo). Dito de outro modo, aquilo que separa o Homem da Besta é a Lei, a experiência da Lei, o Superego, e, então, a possibilidade da transgressão no Crime. No fundo, diferentemente da Besta, o Homem pode obedecer ou não obedecer à Lei. Somente ele tem essa liberdade. Somente ele pode, então, se tornar criminoso. A besta pode matar e fazer o que nos parece mal ou mesquinho, mas ela não será considerada como uma criminosa que mereceria ser incriminada, não se teria como fazê-la comparecer diante da lei (ainda que isso tenha acontecido, e é preciso uma vez mais lembrá-lo, mas deixemos isso de lado). Lacan se coloca aqui do lado de certo bom senso, segundo o qual a besta, não conhecendo a Lei, não é livre, nem responsável nem culpável, ela não teria como transgredir uma Lei, que ela não conhece, ela não teria como ser considerada como criminosa. Uma besta não comete jamais um crime e não tem jamais como infringir a lei. E isso que faz com que o crime, enquanto transgressão da Lei, seja o próprio do homem. Com a Lei e o Crime começa o homem. Eu cito:

“Compreende-se que, tendo recebido em psicologia tal aporte do social, o médico Freud tenha se visto tentado a fazer alguns retornos a isso, e que, com Totem e tabu de 1912, ele tenha querido demonstrar como está no crime primordial a origem da Lei universal. Independentemente de algumas críticas em relação ao método a que seu trabalho esteve sujeito, o importante é que ele reconheceu que, com a Lei e o Crime, começava o homem, depois que o clínico lhe tinha mostrado que suas significações se mantinham até a forma do indivíduo não apenas em seu valor para o outro, mas em sua ereção para ele mesmo.

Assim, a concepção do superego vem à luz (,..)”1.

Naturalmente, Lacan tendo assim reconhecido que a Lei e o Crime são próprios do homem, o começo do homem, e tendo reconhecido 2 ao mesmo tempo a emergência de um super-ego (a besta é uma besta não apenas pelo fato de que ela não pode dizer “mim mesmo” ou “eu”, tal como pensaram Descartes e tantos outros e tal como Kant literalmente escreveu desde as primeiras linhas de sua Antropologia de um ponto de vista pragmático), mas sobretudo, especifica em suma aqui Lacan, o que falta à besta não é apenas um “mim mesmo”, é um “superego”. E se Lacan justapõe, coloca em contiguidade indissociável a Lei e o Crime, colocando em letra maiúscula os dois nomes (“com a Lei e o Crime começa o homem”), isso acontece porque o Crime não é apenas cometido contra a lei como transgressão da lei, mas porque a Lei também pode estar na origem do crime, a lei pode ser criminosa, o superego pode ser criminoso. E é essa possibilidade estrutural que nós não devemos esquecer, quanto ao próprio do homem, e para aquilo que nós vamos continuar a seguir na marcha de Lacan. Em todo caso, que o Superego, que é o guardião da lei, que se acha do lado da lei, pode ser também um delinquente, que pode haver aí um delito e um crime do Superego mesmo, isso é algo que Lacan também diz claramente abaixo na mesma página.

“Esses doentes e esses gestos, a significação da autopunição os cobre a todos. Será preciso, então, estender essa significação a todos os criminosos, na medida em que, segundo a fórmula que exprime o humor açucarado do legislador, a ninguém se pode atribuir a ignorância da lei, cada um pode prever o incidente e deveria, então, ser considerado como capaz de investigar os golpes?

Essa irônica observação deve, ao nos obrigar a definir aquilo que a psicanálise reconhece como crimes ou delitos que emanam do superego, nos permitir formular uma crítica da envergadura dessa noção em antropologia”.

original

[DERRIDA, Jacques. Séminaire La bête et le souverain. Paris: Galilée, 2008] [DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano I: seminário (2001-2002). Tr. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016]

  1. Jacques Lacan, “Introdução teórica…”, em: Escritos, op. cit., p. 130.[↩]
  2. É o que se encontra no texto datilografado. Talvez se precisasse ler a frase assim: “Naturalmente, Lacan tendo reconhecido que a Lei e o Crime são o próprio do homem, o começo do homem, tenha reconhecido ao mesmo tempo a emergência de um super-ego (…)”. (N. E.)[↩]
  3. J. Lacan, « Introduction théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie », dans Écrits, p. 130.[↩]
  4. Tel dans le tapuscrit. Peut-être faudrait-il lire la phrase ainsi : « Naturellement, Lacan ayant ainsi reconnu que la Loi et le Crime sont le propre de l’homme, le commencement de l’homme, est reconnue du même coup l’émergence d’un sur-moi (…). » (NdE)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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