Derrida (1999) – perdão

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Por isso, arrisco-me a fazer esta proposta: sempre que o perdão serve um objetivo, por mais nobre e espiritual que seja (redenção, reconciliação, salvação), sempre que visa restabelecer a normalidade (social, nacional, política, psicológica) através do trabalho de luto, através de uma qualquer terapia ou ecologia da memória, então o “perdão” não é puro — e o seu conceito também não. O perdão não é, nem deve ser, normal, normativo ou normalizador. Deve permanecer excepcional e extraordinário, um teste do impossível: como se tivesse interrompido o curso normal da temporalidade histórica.

(…)

Quando se trata do próprio conceito de perdão, a lógica e o bom senso estão, por uma vez, de acordo com o paradoxo: devemos, parece-me, partir do fato de que, sim, há algo imperdoável. Não será essa, de fato, a única coisa a perdoar? A única coisa que exige o perdão? Se só estivéssemos dispostos a perdoar o que parece perdoável, aquilo a que a Igreja chama “pecado venial”, então a própria ideia de perdão desapareceria. Se houvesse algo a perdoar, seria aquilo a que em linguagem religiosa se chama pecado mortal, o pior, o crime ou erro imperdoável. Daí a aporia que pode ser descrita na sua formalidade seca, implacável, impiedosa: o perdão só perdoa o imperdoável. Não podemos ou não devemos perdoar; não há perdão, se é que há algum, exceto onde há o imperdoável. Por outras palavras, o perdão deve ser anunciado como o próprio impossível. Só pode ser possível fazendo o impossível. Porque, neste século, crimes monstruosos (“imperdoáveis”, portanto) não só foram cometidos — o que talvez não seja em si mesmo tão novo — como se tornaram visíveis, conhecidos, lembrados, nomeados e arquivados por uma “consciência universal” mais informada do que nunca, porque estes crimes, ao mesmo tempo cruéis e maciços, parecem escapar, ou porque tentámos fazê-los escapar, no seu próprio excesso, à medida de qualquer justiça humana, pois bem, o apelo ao perdão foi reativado (pelo próprio imperdoável, portanto! ) reativado, re-motivado, acelerado.

original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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