Derrida (1999) – crimes contra a humanidade

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Mesmo que palavras como “crime contra a humanidade” façam agora parte da linguagem quotidiana. Este acontecimento foi, ele próprio, produzido e autorizado por uma comunidade internacional numa data específica e de acordo com um padrão específico da sua história. Uma história que se entrelaça, mas não se confunde, com a história de uma reafirmação dos direitos humanos, de uma nova Declaração dos Direitos do Homem. Esta espécie de mutação estruturou o espaço teatral em que se desenrola — sinceramente ou não — o grande perdão, a grande cena de arrependimento de que estamos a tratar. Na sua própria teatralidade, tem muitas vezes as características de uma grande convulsão — atrevemo-nos a dizer uma compulsão frenética? Não, felizmente também responde a um “bom” movimento. Mas o simulacro, o ritual automático, a hipocrisia, o cálculo ou a anedota fazem muitas vezes parte do jogo e convidam-se como parasitas para esta cerimônia da culpa. Eis uma humanidade inteira abalada por um movimento que se pretende unânime, eis um gênero humano que, de repente, pretende acusar-se a si próprio, pública e espetacularmente, de todos os crimes que cometeu contra si próprio, “contra a humanidade”. Porque se começássemos a acusar-nos e a pedir perdão por todos os crimes cometidos contra a humanidade no passado, deixaria de haver um inocente na Terra — e, portanto, ninguém em posição de julgar ou arbitrar. Todos nós somos herdeiros, pelo menos, de pessoas ou acontecimentos marcados de forma essencial, interior, inefável, por crimes contra a humanidade. Por vezes, esses acontecimentos, esses assassínios maciços, organizados, cruéis, que podem ter sido revoluções, grandes revoluções canônicas e “legítimas”, foram precisamente os que levaram à emergência de conceitos como os direitos humanos ou os crimes contra a humanidade.

original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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