Depraz (1992:27-29) – Lebenswelt e Lebens-umwelt

(Depraz1992)

Por que falar de redução ao “mundo da vida”? E, antes de tudo, o que é o “mundo da vida”? É importante evitar desde o início uma assimilação equivocada: o “mundo da vida” não é, pelo menos segundo Husserl, um retorno puro e simples à atitude natural. Na verdade, o “mundo da vida” tem um sentido fenomenológico, ele pressupõe necessariamente a realização da redução fenomenológica. Portanto, esse mundo está longe de ser um mundo contingente e factual. Ele só pode ser um mundo movido pelo sentido e permeado pela subjetividade transcendental.

Por que, então, se o “mundo da vida” é fenomenológico no sentido estrito, falar de uma “redução” ao mundo da vida? É porque Husserl vê nessa nova redução um aprofundamento da redução transcendental que, longe de negá-la, a leva a seus limites últimos. A redução ao mundo da vida assume a forma de um retorno a um solo originário de doação do mundo, que não é de forma alguma o mundo como fato, mas como sentido fenomenológico. A abertura para o mundo da vida corresponde, da parte de Husserl, a um distanciamento em relação às idealizações matemáticas e à busca de um solo de evidências originárias que não seja nem puramente objetivo, nem lógico, mas que se situe aquém da linguagem.

Assim, o mundo da vida surge de uma atitude pré-teórica, no sentido de não idealizante, e se aproxima, segundo esse critério, da própria atitude natural. É por isso que, na Conferência de Viena traduzida a seguir, “mundo da vida” e atitude natural se aproximam (a ponto de serem designados pelo mesmo termo: “mundo circundante da vida”) em sua comum distância crítica em relação às ciências positivas objetivantes 1. O “mundo da vida” não é, portanto, o mundo objetivo da ciência, mas sim o fundamento esquecido do sentido da própria ciência. Ele é o lugar onde se enraíza a atitude subjetiva e reflexiva do cientista que opera, atitude mascarada pela polarização no objeto.

A atitude natural espontânea se desdobra no mundo cotidiano concreto, sem que este surja para a consciência daquele que vive naturalmente. O “mundo da vida” é, nesse sentido, o horizonte sempre dado de antemão no qual vive o eu da atitude natural. Mas há uma maneira mais fértil de acessar o mundo da vida: ao colocar em prática uma atitude reflexiva geral em relação ao mundo, direciono minha atenção para a maneira como ele me aparece, para seu modo subjetivo de ser dado. Opero, portanto, uma epoché universal em relação ao “mundo da vida”, recebido inicialmente de forma natural como horizonte geral de meus atos. Por meio dessa reflexão generalizada, o mundo surge como mundo puramente subjetivo, ou ainda como subjetividade vivente.

O “mundo da vida” aparece então como um mundo comum intersubjetivo, onde “cada um pode participar da vida dos outros” 2. Ele é, consequentemente, o mundo da comunidade humana e o lugar de compartilhamento de uma tradição comum. Essa comunidade enraizada na tradição é viva e, como tal, constantemente reativada em seu sentido pela atividade filosófica. A tradição que é seu meio aqui não é, portanto, uma herança esclerótica do passado, um conjunto de costumes [28] enterrados e ritos mortos. Essa tradição é a que Husserl critica. A tradição viva que ele reivindica, ao contrário, é uma cadeia de transmissão incessante do sentido e reativação permanente de sua origem. A Conferência de Viena, onde a expressão “mundo circundante da vida” (Lebensumwelt) aparece de forma recorrente, move-se inteiramente nessa comunidade de vida da experiência humana.

Por fim, não convém opor de maneira rígida a redução transcendental e a redução ao “mundo da vida”. Essas duas vias são mais complementares do que antagônicas. Embora a dimensão fenomenológica propriamente dita tenha sido conquistada com a redução transcendental, a redução ao “mundo da vida” não significa, no entanto, um abandono ou uma perda do horizonte transcendental. Ela não pode ser confundida com a atitude natural stricto sensu. Ao retornar ao solo originariamente intersubjetivo do mundo, a redução ao mundo da vida preserva a conquista fenomenológica da redução transcendental e a enriquece com um novo olhar sobre o mundo, como vida intersubjetiva.

 

  1. Cf. adiante “Ciências da Natureza e Ciências do Espírito”, p. 31.[↩]
  2. Krisis, p. 185.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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