(Depraz1992)
A expressão “crise das ciências europeias” é a primeira parte do título da última obra de Husserl, escrita entre 1934 e 1937 e não publicada durante sua vida 1. A Conferência de Viena, que escolhemos estudar, é, portanto, o primeiro rastro público dessa obra, e as Conferências de Praga, proferidas em novembro de 1935, por sua vez prolongam e aprofundam essa célula originária que culminará na Krisis.
Nesse texto final da Krisis, Husserl trata da crise das ciências europeias. Tentaremos mostrar como a crise das ciências que Husserl descreve expressa profundamente a crise de valores que dilacera a Europa nos anos trinta. Longe de separar a crise das ciências da crise ético-política, Husserl descreve fenomenologicamente, em sua unidade, a crise que a Europa vive. Segundo ele, a crise é una, e apenas um retorno reflexivo sobre o estado das ciências pode permitir elucidar o sentido da crise que se manifestou até o nível político.
Qual é o sentido dessa “crise das ciências”? No início da Krisis, Husserl começa por questionar a pertinência de tal expressão: “É sério falar simplesmente de uma crise de nossas ciências? Essa expressão, que se ouve hoje em toda parte, não é exagerada? [8] Pois a crise de uma ciência não significa nada menos que o fato de sua cientificidade autêntica — ou ainda a própria maneira como ela definiu suas tarefas e elaborou, em consequência, sua metodologia — ter se tornado duvidosa (…). Como poderíamos falar de uma crise das ciências positivas? Pois isso incluiria uma crise da matemática pura, uma crise das ciências exatas da natureza, que não podemos deixar de admirar como modelos de uma cientificidade rigorosa e altamente fértil 2.”
E Husserl elogia o ideal de exatidão das ciências, seja da física clássica ou da muito recente física quântica, à qual ele inclusive faz alusão, ideal que é sua característica própria e sua fecundidade. A ideia de uma crise das ciências não diz respeito, portanto, nem à sua metodologia bem estabelecida, nem ao seu sucesso constante.
Em que sentido, então, ainda podemos falar de uma crise das ciências? Para isso, é necessário distinguir duas noções diferentes de “cientificidade”. Em um primeiro sentido, cientificidade significa rigor metodológico, e não há motivo para detectar qualquer crise das ciências nesse aspecto. Em um segundo sentido, no entanto, a cientificidade adquire uma significação positivista e passa a significar, portanto, a redução da ciência ao mero conhecimento dos fatos. Essa compreensão reducionista da ciência domina, como uma tendência natural, todas as ciências. Ela denota uma crise profunda do estatuto da cientificidade na Europa, ou seja, como veremos, da própria exigência filosófica: “o positivismo decapita a filosofia”, exclama Husserl 3.
Esse risco positivista que as ciências correm tem uma dupla consequência: por um lado, a atenção do cientista está polarizada no estudo do fato, seja dos corpos materiais visíveis a olho nu, das micropartículas ou mesmo, nas ciências do espírito, do psiquismo, da sociedade ou da linguagem. Por outro lado, esse privilégio concedido à pura observação dos fatos leva a uma cegueira em relação à própria instância subjetiva. Na verdade, a ideia central de Husserl — e que é para ele responsável por essa crise que as ciências atravessam atualmente — é o desinteresse dos cientistas [9] por sua própria subjetividade em ação em sua abordagem, ou seja, a falta de reflexividade em sua pesquisa. A obscuridade na qual as ciências se movem hoje decorre, portanto, da falta de atenção dada ao “enigma da subjetividade” que opera nelas: positivismo é aqui sinônimo, para Husserl, de objetivismo, um objetivismo que, segundo ele, nasce com Galileu e a matematização da natureza. Qual é essa revolução na concepção da ciência, e, portanto, também do próprio espírito científico, que nasce com a matematização da natureza? É importante, antes de tudo, compreender o sentido dessa matematização galileana da natureza.
As geometrias platônica e euclidiana mantêm um vínculo estreito com o sensível, na medida em que representam geometricamente os números compreendidos como ideias e, assim, aplicam-se a produzir uma cópia sensível das ideias inteligíveis. Em contraste, a geometria do século XVII constitui-se como uma disciplina muito mais abstrata. Ela quer romper deliberadamente com o referente sensível. Chamando-se “geometria analítica”, ela adota a linguagem abstrata da álgebra. A partir de então, a natureza, idealizada em fórmulas algébricas, torna-se inteiramente uma multiplicidade matemática. Tendo rompido seus laços com a realidade sensível, essa nova geometria algebrizada elabora-se como um domínio formal autônomo, com suas próprias regras e procedimentos. Matematizar a natureza significa, portanto, transformá-la em um “objeto” abstrato regido por leis universais e desconectado do diverso sensível e individual. Assim nasce o que hoje chamamos de “física matemática”. A “natureza” (physis em grego) recebe então o nome de física. Com a matematização da natureza, ou seja, com o início da física como disciplina científica, nasce também um tipo de espírito focado em seu objeto, a natureza física, e, consequentemente, cego para si mesmo como sujeito operante.
Husserl data, no entanto, da segunda metade do século XIX o surgimento explícito do positivismo nas ciências e se refere aqui, sem dúvida, aos cientistas herdeiros da filosofia positiva de Auguste Comte. Este último, autor do Curso de Filosofia Positiva, funda uma filosofia em ruptura com toda metafísica. Ele promove uma atitude baseada exclusivamente na experiência e movida por uma confiança ilimitada na ciência. Entre os cientistas que [10] adotaram essa ruptura com a metafísica e esse enraizamento na experiência, estão tanto Bernard, Pasteur, Berthelot ou Haeckel em quimio-fisiologia, quanto Renan e Taine em história, ou mesmo Littré em filologia, assim como Lange, Wundt ou Fechner em psicologia experimental, e até Durkheim em sociologia, um pouco mais tarde, cujo lema era “tratar os fatos sociais como coisas”. O que Husserl critica sob o nome de positivismo corresponde, na verdade, a sua possível deriva em cientificismo, ou seja, a uma atitude caricatural que reduz tudo aos fatos. Essa é certamente a imagem que Husserl, como homem do século XX, pode ter tido do positivismo, e não o que ele efetivamente foi como filosofia própria do século XIX.
No entanto, Husserl nos diz: “ciências puramente positivas fazem homens puramente positivos” 4, homens que são fetichistas do fato e, portanto, pouco se questionam sobre o olhar que lançam sobre esses fatos, ou seja, sobre o ato ou o vivido pelo qual eles acessam os fatos. “Um fato é um fato”, essa é sua verdade. Colocando toda a ênfase no fato como tal, no “quê”, eles não questionam o modo de acesso ao fato, o “como de sua visada”. Assim, um homem positivo é um homem que, não refletindo sobre seus próprios atos vividos, tende a abstrair tanto de sua subjetividade quanto do sentido inerente a qualquer fato. Não sendo atento ao fato de que um fato nunca é distinto de seu sentido para mim, ou de que o objeto não é diferente do olhar que lanço sobre ele, tal espírito pensa a visada científica como separada dos problemas vitais que a humanidade enfrenta. Nesse sentido, “essa ciência não tem nada a nos dizer (…). As questões que ela exclui por princípio são precisamente as questões mais urgentes em nossa época infeliz, para uma humanidade abandonada às convulsões do destino: são as questões que dizem respeito ao sentido ou à falta de sentido de toda essa existência humana” 5. Husserl liga, portanto, inevitavelmente, a crise das ciências europeias, na medida em que são reduzidas à sua dimensão positivista, e a crise dos valores da humanidade: a crise “real” não é de forma alguma evitada em favor de uma crise supostamente mais verdadeira das ciências. Nessa perspectiva, não há oposição entre crise das ciências e crise dos valores, mas trata-se de uma única e mesma crise, cuja unidade Husserl se esforça para descrever fenomenologicamente.
- Intitulada A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Paris, Gallimard, 1976, tradução e prefácio de G. Granel (abreviado como Krisis no texto e nas notas seguintes).[
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- Op. cit., pp. 7-8.[
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- Op. cit., p. 14.[
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- Op. cit., p. 10, trad. modificada.[
]
- Op. cit., p. 10.[
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