Depraz (1992:25-27) – redução transcendental e constituição

(Depraz1992)

Em que sentido podemos falar de um cumprimento da épochè pela redução transcendental? E, antes de tudo, o que significa “transcendental”?

A conquista da fenomenologia como transcendental é, como dissemos, sua conquista como fenomenologia no sentido forte. O que isso significa? O acesso ao regime transcendental de pensamento implica uma ruptura com um modo de raciocínio dualista que se estabelece na oposição entre uma interioridade da consciência e uma exterioridade do mundo. Esse regime de pensamento, que nos faz separar e opor as coisas umas às outras, é nosso regime de pensamento mais natural, mais espontâneo. No entanto, a atitude transcendental exige que abandonemos essa instalação imediata no mundo e realizemos uma conversão de meu olhar sobre ele; trata-se de considerar o mundo não mais como algo exterior a mim, e a consciência como definida por sua interioridade: a consciência e o mundo não se opõem mais na atitude transcendental, já que o mundo só existe na medida em que me aparece tal como é em si mesmo, como puro fenômeno. Da mesma forma, a consciência só existe como aberta ao mundo. Não há mais, no sentido estrito, nem interioridade nem exterioridade, mas um único e mesmo tecido intencional que é indissoluvelmente o da consciência e do mundo.

Assim, o mundo não é mais transcendente no sentido de exterior e inacessível, ele me aparece e se inscreve sob meu olhar como unidade de sentido intencional (ou noema). Simultaneamente, minha consciência não é mais uma interioridade estritamente fechada, ela se amplia até se abrir ao mundo na medida em que ele me aparece: a consciência é então imanência ampliada, o que faz com que seus atos vividos (suas noeses) surjam como intencionais. A evidência da correlação noético-noemática (ou intencional) é, assim, o ponto a partir do qual a fenomenologia poderá se desenvolver como transcendental.

A atitude transcendental, pela qual eu não olho mais apenas para os objetos, mas volto-me para os atos pelos quais alcanço esses objetos, é a criação de um novo olhar sobre o mundo: mundo e consciência não se opõem mais, mas se abrem um ao outro e se inscrevem em um mesmo campo [25] de “transcendência imanente”. O acesso ao transcendental é, portanto, a saída da ingenuidade dualista, e o trabalho propriamente fenomenológico consiste precisamente em fazer emergir no ego essa apreensão reflexiva de si mesmo que Husserl também chama de “retorno reflexivo sobre si mesmo” (Selbstbesinnung): o ego surge como transcendental quando apreende os objetos do mundo como fenômenos que lhe aparecem como dados em si mesmos, e não mais como realidades brutas apreendidas em exterioridade.

A fenomenologia também dá um segundo passo, pelo qual se conquista como transcendental. Em outras palavras, a épochè é cumprida em um segundo sentido. De fato, a redução exige outra operação metodológica que lhe é correlata e que lhe dá todo o seu sentido: trata-se da constituição. O aspecto constitutivo da fenomenologia é o exato contraponto do aspecto redutivo pelo qual o ego acessa a atitude transcendental. Por meio da constituição, o ego se experimenta novamente como natural, ou seja, como inscrito e absorvido no mundo. A constituição pode aparecer como uma espécie de retorno a um mundo que, no entanto, nunca havia sido perdido, mas cuja validade havia sido apenas suspensa durante a operação redutiva. Enquanto a redução tem a função de criar em nós um vertigem que constantemente nos priva de qualquer solo natural, qualquer conforto intelectual, qualquer certeza admitida, a constituição, preservando em si a conquista desse vertigem — não pressupor nada — tem diante de si uma obra fundadora.

Longe de ser negada pela constituição, a redução é levada por ela à sua conclusão. A correlação estreita entre redução e constituição tem uma consequência essencial. A atitude natural e a atitude transcendental não devem ser entendidas como estritamente opostas: a primeira é, ao contrário, o trampolim decisivo que leva à segunda, assim como a segunda não é uma abstração da primeira, mas preserva nela o sentido transcendental adquirido pela redução, dando-se, assim, toda a liberdade de retornar à primeira atitude modificada transcendentalmente. Ao contrário de muitos comentadores, parece-nos essencial marcar essa conivência das duas atitudes, sua relação de vai e vem, o que não significa, no entanto, reduzir ou assimilar uma à outra, mas restituir à [26] experiência fenomenológica sua flexibilidade, ou seja, sua verdade, e ao trabalho fenomenológico sua efetividade. Eu nunca estou seguro, exceto em raros momentos privilegiados, de estar situado na atitude transcendental reflexiva, e muitas vezes caio de volta, apesar de mim mesmo, na atitude natural. Portanto, não se trata, embora essa apresentação da experiência possa sugerir isso, de valorizar uma em detrimento da outra. Tal valorização ainda participaria da ingenuidade inicial. A experiência fenomenológica começa, de fato, na atitude natural e, nesse sentido, tal atitude, poder-se-ia dizer no limite, já se anuncia como fenomenológica, ou pelo menos como prenhe da atitude fenomenológica.

Revelação não-abstrata da experiência fenomenológica, a redução transcendental atinge sua plenitude reflexiva de sentido como método da fenomenologia no momento em que alia a descoberta da intencionalidade à evidência da operação de constituição.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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