Depraz (1992:20-22) – o princípio dos princípios da fenomenologia

(Depraz1992)

Todas as proposições que atendem a essa exigência de não pressuposição devem permitir “uma justificação fenomenológica adequada, portanto, um preenchimento pela evidência no sentido mais rigoroso do termo” 1. Além disso, trata-se de nunca “apelar posteriormente a essas proposições senão com o sentido no qual foram estabelecidas intuitivamente” 2. Já em 1901, portanto, a noção de evidência “no sentido mais rigoroso”, ou seja, como apodíctica, se confunde com a ideia de uma intuição plena. Em 1913, nas Ideias Diretrizes 3, no parágrafo 24 intitulado precisamente “o princípio dos princípios”, a fenomenologia se afirma como um [20] intuicionismo de um novo gênero: de fato, fazer da “intuição doadora originária (…) uma fonte de direito para o conhecimento” 4 não significa, de forma alguma, aderir espontaneamente a algum empirismo ou, a fortiori, a algum sensualismo, posições para as quais a única realidade é a realidade sensível das impressões singulares. Em outras palavras, a intuição originária não é a intuição sensível que Kant, já, qualificava como puramente passiva e receptiva na Crítica da Razão Pura (“Estética Transcendental”). A intuição husserliana está longe de ser uma intuição receptiva empírica. Ela é fundamentalmente “doadora originária”. O que isso significa? Significa que a intuição husserliana me dá a própria coisa, a alcança e a apreende ela mesma, seja essa coisa um objeto da percepção ou uma essência. A intuição está, assim, em ação no caso em que a visada intencional de um objeto atinge efetivamente esse objeto. Ela também está presente como intuição das essências, de acordo com a doutrina estabelecida já na Sexta Investigação Lógica em 1901 5.

Nesse sentido, a intuição das essências ou intuição eidética (Wesenschau) se distingue radicalmente de todo processo empirista de indução pelo qual eu acesso, a partir dos fatos, por generalização progressiva, ao geral. A essência não é apenas o geral induzido, nem a fortiori o objeto individual. Embora não esteja ligada ao sensível, nem em coincidência imediata com ele, nem mediatamente pela indução, a essência me é, no entanto, dada de maneira originariamente intuitiva, e é essa doação que justifica a validade de minha experiência.

Como, então, essa doação originariamente intuitiva da essência pode ocorrer? Ela se opera pelo que Husserl chama de “variação eidética”: essa atividade de variação é o que me permite destacar progressivamente a essência, por retiradas sucessivas, de seus traços ou caracteres ligados essencialmente ao objeto dado na experiência, para dizer tudo, não necessários. Assim, para fazer aparecer a essência do vermelho, exemplo que Husserl toma de maneira recorrente, é necessário que eu faça variar em imaginação todos os objetos vermelhos que posso perceber ou possuir [21] como lembrança, de modo a destacar, no final, o que, em cada objeto, aparece como idêntico além da diversidade dos conteúdos objetivos. A essência do vermelho é o vermelho que permanece o mesmo apesar da variedade e da singularidade das impressões visuais vermelhas. Essa identificação é o modo de acesso lógico à essência, que obtenho por ideação, ou seja, por separação dos traços ideais necessários em relação aos traços factuais acidentais. A intuição originária, como eidética, é o princípio que me dá de maneira imediata a própria essência em sua plenitude; a variação eidética é, por sua vez, o procedimento mediato e que envolve a imaginação, pelo qual acesso a essa mesma essência.

A ênfase colocada por Husserl na intuição eidética como “princípio dos princípios” faz da fenomenologia, em um único movimento, um intuicionismo e um essencialismo, ou, segundo a feliz fórmula de E. Lévinas, um “idealismo do sensível”. Pretender apreender as essências em uma intuição pode parecer contraditório. Como, de fato, alcançar a essência pela intuição, se a intuição geralmente pertence ao imediato e a essência a um nível de abstração inacessível imediatamente?

Certamente, em Descartes ou mesmo em Platão (Livro VII da República), a intuição também é um meio de alcançar a essência, mas esse acesso vai de mãos dadas com uma perda do sensível. Husserl se esforça, ao contrário, para nunca perder de vista essa base sensível da própria intuição eidética.

É, portanto, a aposta da fenomenologia tentar, assim, superar a oposição secular entre o idealismo — que faz das ideias a única realidade — e o materialismo — que postula, ao contrário, a matéria sensível como única existente. Buscar acessar a essência pela intuição, e não pela especulação, é fazer da essência uma unidade concreta, algo que o idealismo tradicional parece perder de vista ao transformá-la em abstração.

O alcance da essência de uma coisa pela eliminação de seus conteúdos factuais e acidentais corresponde metodologicamente à primeira formulação da “redução”, que significa aqui a conversão do fato à essência. Essa formulação eidética da redução é sua primeira apresentação: ela é o trampolim a partir do qual a fenomenologia descobre sua dimensão “transcendental”.

  1. Recherches logiques, 2, 1re partie, introduction, § 7, « Le principe de l’absence de présupposition… », trad. fr. H. Elie, A. L. Kelkel, R. Schérer, p. 20, Paris, PUF, 1969, p. 24.[↩]
  2. Op. cit., p. 24.[↩]
  3. Ideias Diretrizes para uma Fenomenologia e uma Filosofia Fenomenológica Puras, Livro I, Paris, Éd. Gallimard, 1950, trad. fr. P. Ricœur (abreviado como Ideen I no texto e notas seguintes).[↩]
  4. Op. cit., § 24, p. 78.[↩]
  5. Ver sobre isso E. Lévinas, Teoria da Intuição na Fenomenologia de Husserl, Paris, Éd. Vrin, 1984, cap. VI em particular.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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