(Depraz1992)
No entanto, o estado de crise dominante hoje, ligado a esse modo positivo de pensar que separa a pesquisa científica objetiva da busca pelo sentido de nossa vida, nem sempre prevaleceu, segundo Husserl. De onde vem, então, essa “alteração positivista da ideia de ciência” 1? Para compreender o sentido da crise atual das ciências europeias, é necessário traçar a gênese do processo que a tornou possível.
Na Idade Média, a unidade era a da razão e da fé, e, embora o pensamento discursivo estivesse, como se afirma comumente, a serviço da teologia, que culminava na fé como sua verdade última, não se pode esquecer que a própria fé está “em busca da inteligência”: é o que manifesta, por exemplo, Santo Anselmo no século XI em sua obra intitulada Proslogion, que traz precisamente o subtítulo Fides quaerens intellectum, “a fé em busca da inteligência”. A inteligência racional e a fé viva se unem na busca única pelo sentido. Husserl testemunha claramente sua nostalgia por essa época em que reinava a unidade do sentido.
O Renascimento, época em que nasce o princípio da imitação da Antiguidade sob a forma de um novo platonismo, introduz a ideia de que o homem ideal é o homem teórico: “O homem antigo é aquele que se forma a si mesmo por meio da penetração teórica da razão livre” 2. O Renascimento libera, portanto, um espaço para a razão e seu exercício. Os motivos profundos da crise que a Europa enfrenta hoje devem ser buscados nesse ideal de racionalidade universal que se manifesta explicitamente no século XVII. De fato, em um sentido, esse ideal de evidência racional universal contém uma fecundidade: ele prova seu sucesso nas ciências positivas (física matemática nascente, astronomia conquistadora). Em outro sentido, no entanto, ele resulta em um abalo cada vez mais claro da metafísica, cujo balanço severo Kant traçará no final do século XVIII, no prefácio à Crítica da Razão Pura: enquanto a matemática, desde [12] Tales, e a física, mais recentemente com Galileu, entraram no caminho seguro da ciência ao se constituírem como disciplinas racionais baseadas na experiência, a metafísica, especulação abstrata que se eleva acima dos ensinamentos da experiência, não pôde se constituir como ciência. Ela permaneceu, como diz Kant, uma arena onde as teses mais opostas se enfrentam, sem que uma verdade objetiva possa emergir, precisamente porque os princípios que os metafísicos defendem ultrapassam os limites de toda experiência, ou seja, também o poder da razão humana. É por isso que Kant limita o conhecimento ao que deriva da experiência, aos fenômenos, e rejeita as ideias metafísicas do mundo, da alma e de Deus (as coisas em si) no incognoscível. Na verdade, o devenir positivista da ciência não está à altura de sua visada universal, uma visada propriamente metafísica que tem o papel de enraizar as diversas ciências positivas especializadas em uma unidade superior que seja seu fundamento universal. A filosofia, em sua visada metafísica, tem, portanto, segundo Husserl, um papel de re-fundamentação radical das ciências, retomando assim a ideia aristotélica da filosofia como “ciência do Ser enquanto ser, tomado universalmente e não em uma de suas partes” (Metafísica, K, 3), ideal da filosofia primeira como fundamento unitário e radical das ciências.
“O conceito positivista de ciência, escreve Husserl, é, em nossa época, portanto, historicamente considerado, um conceito residual. Ele deixou de lado as questões que haviam sido incluídas no conceito de metafísica”, questões como o sentido da História, da razão, a questão de Deus como “fonte teleológica” de toda razão no mundo, a questão do sentido do mundo ou da imortalidade 3. Essa é a razão pela qual a “crise das ciências europeias” é, na verdade, inteiramente o sintoma de uma crise ainda mais profunda, que é a da própria filosofia.