Depraz (1992:23-24) – epoche

(Depraz1992)

Sob o termo épochè, que em grego significa “parada, interrupção, suspensão”, Husserl pretende indicar o movimento inicial de redução, o primeiro movimento que se insere no prolongamento da atitude sem pressupostos. Trata-se, literalmente, de parar, ou seja, de interromper o fluxo dos pensamentos cotidianos, que são tantas opiniões ou convicções, e de questionar sua pretensão à verdade, de detectar em cada uma delas um preconceito que se ignora.

Em outras palavras, trata-se de suspender o(s) juízo(s) que faço espontaneamente sobre tudo o que existe, sobre qualquer fato, a fim de examinar mais profundamente o sentido desses juízos: eles são inteiramente fundamentados? Não são, em parte, presunções? Posso justificá-los até o fim?

Esse exame, como já observamos, empresta inicialmente mais de uma característica à dúvida metódica cartesiana, ao mesmo tempo em que a radicaliza a ponto de converter seu sentido. Portanto, é necessário distinguir claramente dúvida e épochè 1: ao contrário da dúvida cartesiana, que permanece provisória e instrumental (eu duvido para sair da dúvida, ou seja, para alcançar um núcleo de certeza indubitável chamado ego cogito), a épochè é “definitiva”. Eu suspendo toda atitude de crença no mundo, e é essa atitude de suspensão que é minha única verdade: a épochè é um fim em si mesma, enquanto a dúvida é apenas um meio cujo fim é outro, que é a certeza. Além disso, pela dúvida, na primeira Meditação, Descartes nega o mundo, embora o recupere posteriormente, na sexta Meditação, como realidade material sensível. A épochè, por sua vez, não é uma negação do mundo, mas apenas a neutralização de sua validade; o valor ou a validade (Geltung) do mundo é, aos meus olhos, neutralizada pela épochè, o que significa que eu não acredito mais espontaneamente na existência do mundo: agora questiono o sentido de sua existência. Não mais acreditar, mas saber: eis o alcance da neutralização do valor. O mundo continua, é claro, a existir, embora eu não faça mais juízos sobre ele.

Em terceiro lugar, a épochè, ao contrário da dúvida, é universal, na medida em que a operação de suspensão se aplica à própria instância que realiza a épochè: o eu que interrompe toda posição sobre o mundo se coloca, assim, em suspenso como parte do mundo. O cogito, por outro lado, só pode se excluir da dúvida para desempenhar o papel de uma alavanca que reconquista, precisamente, ao final da negação do mundo, a certeza absoluta e indubitável do ego cogito: a dúvida não poderia, em seu próprio princípio, ter, portanto, a universalidade da épochè.

Por fim, quarta diferença entre dúvida e épochè, sou levado a duvidar de tudo: as coisas sensíveis externas que me parecem duvidosas e ilusórias são essa coação externa que motiva minha dúvida em relação a tudo. Em suma, a motivação da dúvida é externa à dúvida. Em contraste, nada me leva a realizar a épochè: radicalmente imotivada, a épochè é essa operação que eu realizo em total liberdade, sem outra coação além daquela que eu mesmo me imponho.

Distinguindo-se claramente da dúvida, a épochè é um descolamento em relação à atitude ingênua ou natural que aceita as coisas como são, sem questioná-las. A redução, em sua dimensão transcendental, vem então realizar o início da conversão da atitude sobre o mundo permitida pela épochè.

  1. Sobre essa distinção, consulte o excelente artigo de A. Lowit, “A épochè de Husserl e a dúvida de Descartes”, Revue de Métaphysique et de Morale, n° 4, 1957, pp. 399-415.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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