Dastur (2015:110-115) – Boss e Binswanger

A diferença entre Binswanger e Boss aparece com isso que se poderia chamar de querela dos existenciais, e que apresenta um duplo aspecto: a caracterização heideggeriana do Dasein como ser-no-mundo e a possibilidade ou impossibilidade de completar a analítica existencial. De fato, Boss condena Binswanger por definir o Dasein unicamente a partir de seu ser-no-mundo e, ao mesmo tempo, por não compreender o pensamento de Heidegger. Sem dúvida, a caracterização do Dasein como ser-no-mundo não é falsa e já permite, o que não é pouco, evitar a abstração de um pensamento do homem reduzido ao sujeito mutilado, ou seja, sem mundo (weltlos). Ela permanece, entretanto, insuficiente e puramente formal, na medida em que o Dasein não é compreendido ao mesmo tempo em seu ser como “compreensão originária do ser”, “clareira do ser”. A porta está, então, aberta a uma compreensão subjetivista da transcendência do Dasein. É o que se pode facilmente constatar quando se relê a conferência de Binswanger, publicada em 1946 e intitulada: “Sobre a condução da pesquisa analítico-existencial (daseinsanalytische) em (110) psiquiatria”, que põe no centro da análise existencial o ser-no-mundo enquanto transcendente. Este último conceito, ao qual o próprio Heidegger acabará renunciando, conduz Binswanger a descrever o Dasein em termos de superação (Überstieg), uma vez que o mundo é posto independentemente do Dasein e como aquilo em referência a que se faz a superação. Ele deduz, por exemplo, que as diferentes psicoses aparecem como flexões ou variações (Abwandlungen) determinadas da transcendência, isto é, do ser-no-mundo, de tal modo que o mundo do esquizofrênico, o mundo do maníaco, o mundo do paranoico etc. tornam-se doravante mundos subjetivos, distintos uns dos outros, que respondem a diferentes projetos de mundo (Weltentwürfe), tendo cada um seu a priori específico. Desse ponto de vista, como se diz às vezes, os “doentes mentais” vivem no “mundo deles”, e, seguindo essa lógica, e se inspirando em Heráclito, Binswanger atribui ao terapeuta a tarefa de permitir ao doente o abandono de seu mundo privado ou idios cosmos, a fim de voltar ao mundo comum ou koinos cosmos.

Para Boss, Binswanger comete no fundo o mesmo erro que Sartre na sua leitura de Ser e tempo — ainda que Boss seja claramente mais severo com este último. Isso porque um e outro se equivocam quanto à real significação da transcendência ou do ser-no-mundo do Dasein que eles encaram como o movimento de uma subjetividade que sairia de si mesma, que se ultrapassaria em referência ao que está dado e que ela reconheceria fora, no mundo. Semelhante interpretação comete pelo menos três contrassensos: de um lado, ela reinstaura a oposição entre o sujeito e o objeto sob a forma de uma imanência primeira e de um objeto transcendental; de outro lado, ela retoma a concepção tradicional do mundo como totalidade do ente ou soma das coisas simplesmente dadas; por último, ela (111) reduz a explicação do mundo a um conjunto de significações que seria, como escreve Boss, “chapado como um filete por uma subjetividade humana sobre um material simplesmente dado”. Bem ao contrário, a transcendência deve ser compreendida — ainda que se tenha de conservar este termo — “como superação de todo ente enquanto tal na ‘direção’ de seu ser em si, do ser daquilo que é presente (Anwesenden)”. E o mundo não designa, então, nem um ente nem mesmo o ente na totalidade, mas a clareira do ser na qual o homem se sustem a partir do ser jogado.

Compreendemos, assim, que, como Boss escreve, “não pode haver aí Variações’ (Abwandlungen) do ser-no–mundo”, e “os homens atacados de problemas neuróticos ou psicóticos não podem mais se mover em ‘projetos-de-mundo’ particulares que lhes seriam próprios”. Essa concepção subjetivista do mundo supõe que o projeto-de-mundo seja obra de uma consciência ou de uma subjetividade humana, ao passo que ele deve, na verdade, ser compreendido de maneira resolutamente não subjetivista como a clareira projetada pelo ser. Desse ponto de vista, a concepção binswangeriana da terapia como retorno à vida universal, ao koinos cosmos, fica desprovida de significação pela simples razão de que o mundo é necessariamente koinos cosmos ou ainda Mitwelt. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que essa concepção subjetivista compreende uma dimensão irrecusável da existência, que convém expressar segundo uma outra terminologia. Ninguém nem sonha em contestar que, seguindo sua (112) disposição afetiva ou afinada (Stimmungslage), o Dasein percebe e compreende o que ele encontra no interior do mundo segundo modalidades extremamente diferentes. E ainda que o próximo e o longínquo no sentido temporal tanto quanto no espacial não sejam as mesmas coisas para um apaixonado, um soldado em combate, um técnico ou um comerciante, ainda assim as características espaço-temporais daquilo que é percebido por um doente expressa à cada vez sua disposição afetiva.

Boss se opõe a Binswanger também quanto à estrutura mesma do Dasein, cuja analítica, segundo este último, deveria ser completada, a fim de poder tomar em conta certos fenômenos dos quais Heidegger teria, em Ser e tempo, subestimado a importância. Vimos que em sua grande obra, publicada em 1942, Grundformen und Erkenntinis menschlichen Daseins, Binswanger declara na introdução que, virando as costas à psicologia objetificante, o conhecimento do Dasein encontra seu fundamento e seu solo próprios “no amor recíproco do eu e do tu (im liebenden Miteinandersein von Ich und Du)”. Desse modo, como escreve Binswanger um pouco mais adiante, “ao lado do a gente (neben dem Man-selbst) e do si autêntico, há um outro quem do Dasein, o nós dual no sentido do ser-um-com-o-outro do eu e do teu, o nós do amor (das duale Wir-selbst im Sinne des Miteinanderseins von Mir und Dir, das Wir der Liebe). E esse nós, diferentemente do ser-no-mundo do si, seria um “ser-para-além-do-mundo (ein Über-die-Welt-hinaus-Sein)”. É possível adivinhar sem dúvida a objeção de Boss que é também a de Heidegger: o que viria a significar um “ser-para-além-do-mundo”? Sobre que base de compreensão da noção de mundo tal (113) “ser-para-além-do-mundo” reside? Bisnwanger parece admitir a ideia de que um para-além do mundo poderia se estender para além dos limites do mundo um pouco como o divino ou o celeste com relação ao humano ou ao terrestre. Mas isso, mais uma vez, é não compreender a significação ontológica da noção de mundo e desconhecer que o divino ele mesmo tanto quanto o celeste é um fenômeno necessariamente intra-mundano que supõe a abertura do mundo”.

Essa crítica não deve, entretanto, ser interpretada como um modo de não aceitar de boa vontade a tarefa de “completar” a analítica existencial. Heidegger mesmo reconhece, em Ser e tempo, que sua pesquisa “não aspira a uma ontologia do Dasein que seja tematicamente exaustiva, e ainda menos a uma antropologia concreta”. Mas não é totalmente absurda a ideia de querer vislumbrar a possibilidade de novos existenciais. Em contrapartida, a ideia de completar a estrutura do cuidado pelo fenômeno do amor é certamente inaceitável na medida em que ela reside na confusão entre ôntico e ontológico. Boss escreve: “o cuidado é, na ontologia fundamental, o nome que designa a constituição ekstatico-temporal e o traço fundamental do Dasein, ou seja, a compreensão de ser. Eis porque o amor, a amizade e a esperança voltadas para o futuro não encontram menos resolutamente seu fundamento no cuidado enquanto compreensão do ser do que no cuidado em sua acepção antropológica. Noutros termos, é necessário distinguir os sentidos ontológicos e antropológicos do 114] cuidado e compreender que se uma descrição existencial do amor ou da amizade é possível, ela o é apenas a partir do cuidado compreendido do ponto de vista ontológico, isto é, a partir da constituição ekstatico-temporal do Dasein. No entanto, aí temos uma outra maneira de completar a analítica existencial de Ser e tempo, e é isso, como vamos ver, que se propõe Boss a fazer a propósito do sonho.

A maneira como Boss lê Ser e tempo e os desacordos que daí resultam em relação a Binswanger delineiam já duas concepções da Daseinsanálise médica. De um lado, uma concepção existencial, cujo ponto de partida é a diferença ontológica e a determinação do Dasein como clareira do ser (Lichtung des Seins). De outro lado, uma concepção subjetivista, desenvolvida a partir da determinação formal do Dasein como ser-no-mundo. Sem dúvida alguma, é vão tentar cruzar o fosso entre essas duas concepções que, como vimos a propósito do modo inconstante da mania, podem se imiscuir uma na outra. A distância entre elas é certamente bem menor do que entre a Daseinsanálise e as psicanálises freudiana ou jungiana, isso sem falar da psiquiatria objetivante cuja fidelidade reside apenas nas neurociências. Seria, porém, do mesmo modo vão ignorar o que as separa. Para Boss, é evidente que toda descrição existencial só pode encontrar sua plena legitimidade na sua retomada existencial, sob a luz de uma compreensão originária do Dasein como clareira do ser.

Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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