Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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culpa

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

Schuld, schuldig

Deixemos de lado como se originam tais exigências e de que modo, com base nessa origem, se deve conceber o seu caráter de exigência e lei. Em todo caso, o ser e estar em dívida, no último sentido mencionado de violação de uma “exigência moral”, é um modo de ser da presença [Dasein]. Isso vale igualmente para o ser e estar em dívida enquanto um “tornar-se passível de punição”, enquanto “ter dívidas” e enquanto “ser aquele a que se deve isso ou aquilo…”, que são também comportamentos da presença [Dasein]. Entender o “estar carregado de CULPA moral” como uma “qualidade” da presença [Dasein] não diz nada. Ao contrário, com isso apenas se revela que a caracterização é insuficiente para delimitar, ontologicamente, esse modo de “determinação do ser” da presença [Dasein] frente a outros comportamentos. O conceito de CULPA moral acha-se também tão pouco esclarecido, ontologicamente, que puderam impor-se e prevalecer interpretações desse fenômeno cujo conceito inclui ou até se deriva das ideias de punição e do ter dívidas junto a… Com isso, a “dívida” retorna forçosamente ao âmbito das ocupações no sentido de uma prestação de contas. STMSC: §58

Com vistas a este fim, deve-se formalizar a ideia de “dívida” de tal maneira que fiquem de fora os fenômenos da CULPA referidos ao ser-com os outros na ocupação. A ideia de dívida deve não apenas ultrapassar o âmbito das ocupações em seu prestar contas como também deve ser desligada de qualquer referência ao dever e à lei contra os quais alguém, numa falta, assume uma dívida. Pois nesse caso se determinaria, necessariamente, a dívida como falta, como violação de alguma coisa que deveria e poderia ser. Faltar, porém, significa não ser simplesmente dado. Falta no sentido de não ser simplesmente dado de dever é uma determinação ontológica do ser simplesmente dado. Nesse sentido, nada pode faltar de modo essencial à existência, não por ela ser perfeita mas porque seu caráter ontológico é inteiramente diverso de todo ser simplesmente dado. STMSC: §58

O sentido de apelo esclarece-se caso a compreensão se atenha ao sentido existencial de ser e estar em dívida, em lugar de supor o conceito derivado de CULPA , no sentido de uma dívida “nascida” de um ato ou omissão. Essa exigência não é arbitrária desde que o apelo da consciência, que provém ele mesmo da presença [Dasein], se dirija unicamente para esse ente. O fazer apelo ao ser e estar em dívida significa uma apelação do poder-ser que, enquanto presença [Dasein], eu sempre sou. Esse ente não precisa primeiramente carregar-se de “CULPA” por falta ou omissão. Ele deve apenas ser e estar propriamente em dívida – tal como ele é e está. STMSC: §58

Comecemos a discussão com o último ponto. Em todas as interpretações da consciência, a “má” consciência possui primazia. A consciência é primordialmente “má”. Com isso se diz que toda a experiência da consciência faz, em primeiro lugar, a experiência de “CULPA”. Mas como se anuncia e se dá a compreender o ser-mau na ideia de consciência? A “vivência da consciência” surge após o ato realizado ou omitido. A voz segue o sucedido e remete ao acontecimento pelo qual a presença [Dasein] se carregou de CULPA. Mas quando a consciência anuncia um “ser-CULPAdo”, isto não se faz como fazer apelo para…, mas como referência que recorda a CULPA acometida. STMSC: §59

Mas será que o “fato” de a voz vir depois exclui que, no fundo, é uma apelação? Que se apreenda a voz como aquilo que segue ao estímulo da consciência ainda não demonstra uma compreensão originária do fenômeno. E se a CULPAbilização fática e originária fosse apenas ocasião para o apelo fático da consciência? E se a interpretação caracterizada da “má” consciência só estivesse a meio caminho? A posição ontológica prévia a que o fenômeno é levado nesta interpretação esclarece que é assim. A voz é algo que emerge, que tem seu lugar na sequência de vivências simplesmente dadas e que sucede à vivência do ato. Mas nem o apelo, nem o ato e nem a CULPA são ocorrências dotadas do caráter de um ser simplesmente dado que ocorre. O apelo possui o modo de ser da cura. Nele, a presença [Dasein] “é e está” antecedendo-a-si-mesma, de tal modo que ela retorna, ao mesmo tempo, para o seu estar-lançado. Somente partindo-se imediatamente da suposição de que a presença [Dasein] é uma sequência de nexos de vivências é que se pode considerar a voz como algo que vem depois, como alguma coisa posterior e, assim, necessariamente o que remonta para trás. A voz, sem dúvida, re-clama mas, ultrapassando o ato, reclama o ser e estar em dívida que, lançado, é “anterior” a toda e qualquer CULPAbilização. A reclamação, ao mesmo tempo, faz apelo ao ser e estar em dívida como algo a ser assumido na própria existência de tal modo que o ser-CULPAdo propriamente existenciário “segue” o apelo e não o contrário. No fundo, a má consciência é tão pouco uma mera censura retroativa que ela reclama, sobretudo, numa referência antecipadora ao estar-lançado. A sucessão de vivências que decorrem uma após a outra não apresenta a estrutura fenomenal de existência. STMSC: §59

Porque a fala sobre a “boa” consciência nasce da experiência da consciência feita pela presença [Dasein] cotidiana, isto apenas mostra que ela, mesmo falando de “má” consciência, no fundo, não atinge o fenômeno. Pois, de fato, a ideia da “má” consciência orienta-se pela ideia da “boa” consciência. A interpretação cotidiana mantém-se na dimensão do cálculo e compensação de “CULPA” e “não CULPA” das ocupações. E nesse horizonte que se “vivência” a voz da consciência. STMSC: §59

Se, porém, para o apelo, não é primária a dependência de uma CULPA de fato “dada” ou de um ato culpável que de fato se dá na vontade, desse modo, a consciência que “censura” e “adverte” não constitui função originária do apelo, então são infundadas as objeções mencionadas de que a interpretação existencial desconsidera “essencialmente” o desempenho crítico da consciência. Essa objeção também nasce de uma visão autêntica, dentro de certos limites, do fenômeno. Pois, com efeito, no conteúdo do apelo não se pode demonstrar o que a voz aconselha e oferece “positivamente”. STMSC: §59