E “Ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é também preocupação. Numa simetria com a ocupação, entendemos essa expressão como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de instituição social fática, por exemplo, funda-se na constituição de ser da presença [Dasein] enquanto ser-com. Sua urgência provém de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] manter-se nos modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença, caracterizam a CONVIVÊNCIA cotidiana e mediana de um com outro. Também esses modos de ser apresentam o caráter de não surpresa e evidência que convém tanto a co-presença [Dasein] intramundana cotidiana dos outros como a manualidade do instrumento de que se ocupa no dia-à-dia. Esses modos indiferentes da CONVIVÊNCIA recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como ser simplesmente dado de muitos sujeitos. Embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros. STMSC: §26
No tocante aos seus modos positivos, a preocupação possui duas possibilidades extremas. Ela pode, por assim dizer, retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, saltando para o seu lugar. Essa preocupação assume a ocupação que outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se, para posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e já pronto, ou então dispensar-se totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado. Essa preocupação substitutiva, que retira do outro o “cuidado”, determina a CONVIVÊNCIA recíproca em larga escala e, na maior parte das vezes, diz respeito à ocupação do manual. STMSC: §26
A preocupação se comprova, pois, como uma constituição de ser da presença [Dasein] que, segundo suas diferentes possibilidades, está imbricada tanto com o seu ser para o mundo da ocupação quanta com o ser para consigo mesmo. A CONVIVÊNCIA recíproca funda-se, antes de tudo e muitas vezes de maneira exclusiva, no que, assim, constitui uma ocupação comum. Uma CONVIVÊNCIA recíproca, que surge quando se empreende a mesma coisa, não apenas se mantém, na maior parte das vezes, dentro de limites externos, mas se dá no modo da reserva e do intervalo. A CONVIVÊNCIA recíproca daqueles que se empenham na mesma coisa alimenta-se, muitas vezes, somente de desconfiança. Inversamente, o empenhar-se em comum pela mesma coisa determina-se a partir da presença [Dasein] apreendida, cada vez, propriamente. É essa ligação própria que possibilita a justa isenção, que libera o outro em sua liberdade para si mesmo. STMSC: §26
A CONVIVÊNCIA cotidiana mantém-se entre os dois extremos da preocupação positiva – o salto dominador que substitui e o salto liberador que antecipa – mostrando inúmeras formas mistas, cuja descrição e classificação estão fora do escopo dessa investigação. STMSC: §26
Porque, porém, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a preocupação se mantém nos modos deficientes ou ao menos indiferentes – na indiferença do passar ao largo um do outro – e que o conhecer-se mais imediato e essencial necessita de aprender a conhecer-se. E mesmo quando o conhecer-se se vê perdido nos modos da retração, escondendo-se e equivocando-se, a CONVIVÊNCIA necessita de caminhos específicos para se aproximar do outro ou para “procurá-lo”. STMSC: §26
Mas assim como o revelar-se e o fechar-se fundam-se nos modos de ser respectivos da CONVIVÊNCIA, de tal maneira que ele nada mais é do que isso mesmo, também a abertura explicitada na preocupação nasce meramente do ser-com primordial. Essa abertura temática e não teórica ou psicológica do outro evidencia-se facilmente para a problemática teórica do compreender da “vida psíquica do outro” enquanto o fenômeno que é primeiro visualizado. O que, fenomenalmente, apresenta “numa primeira aproximação” um modo de CONVIVÊNCIA compreensiva torna-se, ao mesmo tempo, aquilo que, assim considerado, possibilita e constitui, “em princípio” e originariamente, o ser para os outros. Esse fenômeno que, de maneira não muito feliz, denomina-se “ empatia” deve, por assim dizer, construir ontologicamente uma ponte entre o próprio sujeito isolado e o outro sujeito, de início, inteiramente fechado. STMSC: §26
Que “empatia” não constitua um fenômeno existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença [Dasein] desviam e impedem a CONVIVÊNCIA e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu “compreender” autêntico se vê sufocado, e a presença [Dasein] passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma compreensão adequada do outro. A análise mostrou: o ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. A co-presença [Dasein] se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença [Dasein] é, ela possui o modo de ser da CONVIVÊNCIA. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos” só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença [Dasein] são tratados meramente como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros. Esse ser-com “desconsiderado” “conta” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles. STMSC: §26
A própria presença [Dasein], bem como a co-presença [Dasein] dos outros, vem ao encontro, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a partir do mundo compartilhado nas ocupações do mundo circundante. Empenhando-se no mundo das ocupações, ou seja, também no ser-com os outros, a presença [Dasein] também é o que ela própria não é. Quem é, pois, que assume o ser enquanto CONVIVÊNCIA cotidiana? STMSC: §26
Embora sem o perceber, a CONVIVÊNCIA é inquietada pelo cuidado em estabelecer esse intervalo. STMSC: §27
Neste afastamento constitutivo do ser-com reside, porém: a presença [Dasein], enquanto CONVIVÊNCIA cotidiana, está sob a tutela dos outros. STMSC: §27
Os outros”, assim chamados para encobrir que se pertence essencialmente a eles, são aqueles que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, são “co-pre-sentes” [»da sind«] na CONVIVÊNCIA cotidiana. STMSC: §27
A tendência do ser-com que denominamos de afastamento funda-se em que a CONVIVÊNCIA, o ser e estar um com o outro como tal, promove a medianidade. STMSC: §27
O impessoal, que responde à pergunta quem da presença [Dasein] cotidiana, é ninguém, a quem a presença [Dasein] já se entregou na CONVIVÊNCIA de um com o outro. STMSC: §27
Nestas características ontológicas da CONVIVÊNCIA cotidiana, ou seja, no afastamento, medianidade, nivelamento, público, desencargo de ser e contraposição, reside a “consistência” mais imediata da presença [Dasein]. STMSC: §27
Com a interpretação do ser-com e do ser-si-mesmo no impessoal, respondeu-se a pergunta quem da CONVIVÊNCIA cotidiana. STMSC: §27
Se já o ser da CONVIVÊNCIA cotidiana, que, do ponto de vista ontológico, parece vizinho ao ser simplesmente dado, é diferente em princípio, então não se pode de forma alguma compreender o que é propriamente si-mesmo como algo simplesmente dado. STMSC: §27
Ao contrário da orientação tradicional do conceito de retórica como uma espécie de “disciplina”, ela deve ser apreendida como a primeira hermenêutica sistemática da CONVIVÊNCIA cotidiana com os outros. STMSC: §29
A fala é a articulação “significativa” da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num determinado modo de CONVIVÊNCIA ocupacional. STMSC: §34
Essa CONVIVÊNCIA está sempre falando, tanto ao dizer sim quanto ao dizer não, tanto provocando quanto avisando, tanto pronunciando, recuperando ou intercedendo, e ainda “emitindo enunciados” ou fazendo “discursos”. STMSC: §34
Nela se constitui a articulação da CONVIVÊNCIA que compreende. STMSC: §34
Quem silencia na fala da CONVIVÊNCIA pode “dar a entender” com maior propriedade, isto significa, pode elaborar a compreensão por oposição àquele que não perde a palavra. STMSC: §34
Como modo de fala, o estar em silêncio articula tão originariamente a compreensibilidade da presença [Dasein] que dele provém o verdadeiro poder escutar e a CONVIVÊNCIA transparente. STMSC: §34
A comunicação não “partilha” a referência ontológica primordial com o referencial da fala, mas a CONVIVÊNCIA se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado. STMSC: §35
Se, na CONVIVÊNCIA cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto aquilo de que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao encontro, então já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica, o que se abre do que não se abre. STMSC: §37
Essa ambiguidade não se estende apenas ao mundo mas, também, à CONVIVÊNCIA como tal e até mesmo ao ser da presença [Dasein] para consigo mesma. STMSC: §37
A presença [Dasein] é e está sempre “por aí” [»da«] de modo ambíguo, ou seja, por aí na abertura pública da CONVIVÊNCIA, onde a falação mais intensa e a curiosidade mais aguda controlam o “negócio”, onde cotidianamente tudo e, no fundo, nada acontece. STMSC: §37
Esse modo de ser da abertura do ser-no-mundo também domina inteiramente a CONVIVÊNCIA como tal. STMSC: §37
A falação logo se insinua dentre as formas de CONVIVÊNCIA originária. STMSC: §37
A CONVIVÊNCIA no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. STMSC: §37
A ambiguidade já subsiste na CONVIVÊNCIA enquanto CONVIVÊNCIA lançada num mundo. STMSC: §37
Decair no “mundo” indica o empenho na CONVIVÊNCIA, na medida em que esta é conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade. STMSC: §38
A falação e a interpretação pública nela inscrita constituem-se na CONVIVÊNCIA. STMSC: §38
A falação não se dá dentro do mundo como um produto isolado da CONVIVÊNCIA e simplesmente dado para ela dentro do mundo. STMSC: §38
A falação é o modo de ser da própria CONVIVÊNCIA e não surge em certas circunstâncias que agiriam “de fora” sobre a presença [Dasein]. STMSC: §38
Todavia, será que tomar, para tema sucedâneo na analítica da totalidade da presença [Dasein], a informação sobre o fim da presença [Dasein] dos outros, colhida no modo de ser da presença [Dasein] como CONVIVÊNCIA, poderá levar à meta pretendida? STMSC: §47
É indiscutível que a substituição de uma presença [Dasein] por outra pertence às possibilidades ontológicas da CONVIVÊNCIA no mundo. STMSC: §47
A vasta multiplicidade dos modos substituíveis de ser-no-mundo estende-se não apenas aos modos desgastados da CONVIVÊNCIA pública, atingindo igualmente possibilidades de ocupação, restritas a determinadas esferas e adequadas às profissões, estados e idades. STMSC: §47
Com relação a esse ser, ser do empenho cotidiano numa CONVIVÊNCIA junto ao “mundo” ocupado, não apenas a substituição é possível, como chega a constituir o conviver. STMSC: §47
O teor público da CONVIVÊNCIA cotidiana “conhece” a morte como uma ocorrência que sempre vem ao encontro, ou seja, como “casos de morte”. STMSC: §51
Escapar da morte, encobrindo-a, domina, com tamanha teimosia, a cotidianidade que, na CONVIVÊNCIA, os “mais próximos” frequentemente ainda convencem quem “está à morte” de que ele haverá de escapar da morte e, assim, retornar à cotidianidade tranquila de seu mundo de ocupações. STMSC: §51
E não para aquilo que vale na CONVIVÊNCIA pública, não para o que ela pode ou de que se ocupa e, sobretudo, não para aquilo que a toma ou pelo que se engajou e se deixou arrastar. STMSC: §56
A exigência não satisfeita não precisa necessariamente referir-se a uma posse, pois pode dizer respeito à CONVIVÊNCIA pública em geral. STMSC: §58
Somente a partir do ser si-mesma mais próprio da decisão é que brota a CONVIVÊNCIA em sentido próprio. STMSC: §60
A atualização que aguarda e retém constitui a familiaridade, segundo a qual a presença [Dasein], entendida como CONVIVÊNCIA, “se reconhece” no mundo circundante público. STMSC: §69
Numa primeira aproximação” significa o modo em que a presença [Dasein] “se torna manifesta” na CONVIVÊNCIA do público, mesmo que, existenciariamente, ela tenha “no fundo” superado a cotidianidade. “ STMSC: §71
A cotidianidade significa o modo como a presença [Dasein] “vive o seu dia”, quer em todos os seus comportamentos, quer em certos comportamentos privilegiados pela CONVIVÊNCIA. STMSC: §71
É esse acontecer que vale, como história, em sentido forte, tanto o “passado” como também o “legado” que ainda influi na CONVIVÊNCIA. STMSC: §73
O envio comum não se compõe de destinos singulares da mesma forma que a CONVIVÊNCIA não pode ser concebida como a ocorrência conjunta de vários sujeitos. STMSC: §74
Na CONVIVÊNCIA em um mesmo mundo e na decisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão previamente orientados. STMSC: §74
Numa CONVIVÊNCIA pública, o que vem ao encontro da ocupação cotidiana não é apenas o instrumento e a obra, mas também aquilo que com eles se “dá”: os “negócios”, empreendimentos, incidentes, acidentes. STMSC: §75
Na CONVIVÊNCIA pública, os outros vêm ao encontro nesses empreendimentos em que o “impessoalmente-si-mesmo” “também navega”. STMSC: §75
O “agora em que”, o “então, quando” interpretados e pronunciados na CONVIVÊNCIA cotidiana são, em princípio, compreendidos, embora só sejam datados com precisão dentro de certos limites. STMSC: §79
Na CONVIVÊNCIA “mais próxima”, vários “agora” podem, ser ditos “conjuntamente” e cada um pode datar de forma diferente o “agora” que disse: agora em que isso ou aquilo se dá. STMSC: §79
O “agora” pronunciado é dito no teor público da CONVIVÊNCIA no ser-no-mundo. STMSC: §79
Essa datação, realizada pelo astro que despende luz e calor e pelos seus “lugares” privilegiados no céu, é uma indicação do tempo que, imediatamente, embora dentro de certos limites, se cumpre com unanimidade para “todo mundo”, na CONVIVÊNCIA que se faz “sob o mesmo céu”. STMSC: §80
Com isso, na CONVIVÊNCIA que se dá nas fronteiras estreitas de um mundo circundante mais próximo, pressupõe-se implicitamente a igualdade do nível do polo do “lugar” em que se percorrem as sombras. STMSC: §80
A sequência nivelada dos agora permanece inteiramente desconhecida, no que respeita à sua proveniência da temporalidade da presença [Dasein] singular, na CONVIVÊNCIA cotidiana. STMSC: §81