Diferentes são os possíveis modos de encobrimento dos fenômenos. Um fenômeno pode manter-se encoberto por nunca ter sido descoberto. Dele, pois, não há nem conhecimento nem desconhecimento. Um fenômeno pode estar obstruído. Isto significa: antes tinha sido descoberto, mas, depois, voltou a encobrir-se. Este encobrimento pode ser total ou, como geralmente acontece, o que antes se descobriu ainda se mantém visível, embora como aparência. No entanto, há tanta aparência quanto “ser”. Este encobrimento na forma de “distorção” é o mais frequente e o mais perigoso, pois as possibilidades de engano e desorientação são particularmente severas e persistentes. As estruturas de ser e seus respectivos conceitos disponíveis, embora velados em sua CONSISTÊNCIA, reivindicam os seus direitos talvez dentro de um “sistema”. Mas, em razão do encadeamento construtivo num sistema, eles se apresentam como algo que é “claro” e não carece de justificações ulteriores, podendo, por isso, servir de ponto de partida para uma dedução contínua. STMSC: §7
Será então que a resposta da analítica existencial à pergunta quem não dispõe de nenhum fio condutor? De forma nenhuma. Na verdade, das indicações formais dadas (§9 e 12) a respeito da constituição de ser da presença [Dasein], a que funciona como fio condutor não é tanto aquela discutida até aqui, mas, sobretudo, a de que a “essência” da presença [Dasein] está fundada em sua existência. Para que possa ser uma constituição essencial da presença [Dasein], o “eu” deve ser interpretado existencialmente. Desse modo, a pergunta sobre o quem só pode ser respondida na demonstração fenomenal de um determinado modo de ser da presença [Dasein]. Se a presença [Dasein] só é ela mesma existindo, a CONSISTÊNCIA desse ser-si-mesmo assim como a sua possível “inconsistência” exigem uma colocação ontológico-existencial da questão, enquanto único acesso adequado à sua problemática. STMSC: §25
Nestas características ontológicas da convivência cotidiana, ou seja, no afastamento, medianidade, nivelamento, público, desencargo de ser e contraposição, reside a “CONSISTÊNCIA” mais imediata da presença [Dasein]. Esta CONSISTÊNCIA não diz respeito à constância de algo simplesmente dado que se preserva, mas ao modo de ser da presença [Dasein] enquanto ser-com. Nestes modos de ser, o si-mesmo da presença [Dasein], o si-mesmo do outro ainda não se encontraram e, assim, tampouco se perderam. O impessoal é e está no modo da CONSISTÊNCIA do não si-mesmo e da impropriedade. Este modo de ser não significa uma diminuição ou degradação da facticidade da presença [Dasein], da mesma forma que o impessoal, enquanto ninguém, não é um nada. Ao contrário, neste modo de ser, a presença [Dasein] é um ens realissimum, caso se entenda “realidade” como um ser dotado do caráter de presença [Dasein]. STMSC: §27
Sem dúvida, a interpretação ontológica do “eu” não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, “sendo-no-mundo”. O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. “Eu” significa o ente em que está em jogo o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o “eu” pronuncia-se a cura na fala “fugaz” do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu poder-ser próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um “sujeito” mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do poder-ser próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no poder-ser si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença [Dasein] como cura. A partir dela é que se esclarece a CONSISTÊNCIA do si-mesmo enquanto pretensa permanência do sujeito. Mas o fenômeno do poder-ser próprio abre também uma visão para a CONSISTÊNCIA do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A CONSISTÊNCIA do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da CONSISTÊNCIA do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a existencialidade do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSC: §64
A cura não precisa fundar-se num si-mesmo mas, como constitutivo da cura, a existencialidade propicia a constituição ontológica da autoconsistência da presença [Dasein]. Em plena correspondência com o conteúdo estrutural da cura, pertence-lhe, também, o estar faticamente em decadência na CONSISTÊNCIA do que não é si-mesmo. Concebida plenamente, a estrutura da cura inclui o fenômeno do si-mesmo. O seu esclarecimento cumpre-se na interpretação do sentido da cura que, como tal, foi determinado enquanto totalidade ontológica da presença [Dasein]. STMSC: §64
A estrutura ontológica desse ente, que eu mesmo sou, centra-se na autoconsistência da existência. Porque o si-mesmo não pode ser concebido nem como substância e nem como sujeito, estando fundado na existência, a análise do impropriamente-si-mesmo, isto é, do impessoal, foi totalmente abandonada ao fluxo da interpretação preparatória da presença [Dasein]. Tendo-se, agora, retomado expressamente o si-mesmo na estrutura da cura e, assim, da temporalidade, a interpretação temporal da autoconsistência e da CONSISTÊNCIA do não si-mesmo recebe uma gravidade própria. Ela necessita de um desenvolvimento temático especial. Contudo, ela não apenas propicia uma segurança correta contra os paralogismos e as questões ontologicamente inadequadas sobre o ser do eu, como também oferece, ao mesmo tempo, e de acordo com sua função central, uma visão mais originária da estrutura de temporalização da temporalidade. Esta se desvela como a historicidade da presença [Dasein]. A proposição: a presença [Dasein] é histórica confirma-se, do ponto de vista ontológico-existencial, como enunciado fundamental. Ela está muito distante de uma constatação meramente ôntica do fato de a presença [Dasein] se dar numa “história mundial”. A historicidade da presença [Dasein] é, porém, o fundamento de uma possível compreensão historiográfica que, por sua vez, comporta a possibilidade de uma elaboração explícita da historiografia como ciência. STMSC: §66
Já salientamos que os humores, não obstante conhecidos do ponto de vista ôntico, não são reconhecidos em sua função existencial originária. São considerados vivências fugazes que “dão cor” a todo o “estado d’alma”. O que, para uma simples observação, não passa de um aparecer e desaparecer fugaz pertence, no entanto, à CONSISTÊNCIA originária da existência. Mas o que pode haver de comum entre os humores e o “tempo”? Que estas “vivências” vêm e vão, que elas transcorrem “no tempo”, é uma constatação trivial; sem dúvida, e, na verdade, uma constatação ôntico-psicológica. A tarefa consiste, porém, em demonstrar a estrutura ontológica da afinação do humor em sua concreção existencial e temporal. Numa primeira aproximação, isso pode apenas significar: tornar visível, ao menos uma vez, a temporalidade do humor. A tese segundo a qual “disposição funda-se, primariamente, no vigor de ter sido” diz que o caráter existencial básico do humor é uma recolocação em… A recolocação não produz o vigor de ter sido, mas a disposição sempre revela, para a análise existencial, um modo do vigor de ter sido. A interpretação temporal da disposição não pode, portanto, pretender deduzir os humores da temporalidade e dissolvê-los em puros fenômenos de temporalização. Trata-se apenas de comprovar que os humores, no que e no modo em que “significam” existenciariamente, só são possíveis com base na temporalidade. A interpretação temporal limitar-se-á aos fenômenos já analisados do medo e da angústia. STMSC: §68
Com a análise da movimentação e permanência específicas e próprias do acontecer da presença [Dasein], a investigação retorna ao problema que foi tocado imediatamente antes de se liberar a temporalidade: a saber, retorna à questão da CONSISTÊNCIA do si-mesmo, determinado como o quem da presença [Dasein]. A autoconsistência é um modo de ser da presença [Dasein], fundando-se, por conseguinte, numa temporalização específica da temporalidade. A análise do acontecer conduz aos problemas de uma investigação temática da temporalização como tal. STMSC: §72
Interpretamos, porém, como historicidade própria o acontecer dessa decisão, ou seja, a retomada que, antecipadamente, transmite a herança de possibilidades. Será que é nela que reside a ex-tensão de toda a existência, originária, que nem se perde e nem necessita de um nexo? A decisão do si-mesmo contra a inconsistência da dispersão é, em si mesma, a CONSISTÊNCIA es-tendida na qual a presença [Dasein], enquanto destino, mantém “inseridos”, em sua existência, nascimento, morte e o seu “entre”. E isso de tal maneira que, nessa CONSISTÊNCIA, ela é o instante para a história do mundo de cada uma de suas situações. Na retomada, marcada pelo vigor de ter sido de um destino de possibilidades, a presença [Dasein] se recoloca “imediatamente” no ter sido antes dela, ou seja, no que é temporalmente ekstático. Com esta transmissão da herança, porém, o “nascimento”, provindo da possibilidade insuperável da morte, é então inserido na existência. E isto para que a existência possa assumir, com menos ilusões, o estar-lançado do próprio pre [das Da]. STMSC: §75
A decisão constitui a fidelidade da existência ao seu próprio si-mesmo. Enquanto decisão pronta a angustiar-se, a fidelidade também é o possível respeito frente à única autoridade que um existir livre pode ter, ou seja, frente às possibilidades de existência que podem ser retomadas. Do ponto de vista ontológico, seria um equívoco compreender a decisão como a “vivência” que só seria “real” enquanto “durasse” o “ato” da decisão. É na decisão que reside a CONSISTÊNCIA existenciária que, de acordo com a sua essência, já sempre adiantou cada instante possível que dela surge. Enquanto destino, a decisão é a liberdade para a renúncia, possivelmente imposta pela situação, a uma determinada decisão. Com isso, a CONSISTÊNCIA da existência não se interrompe, mas justamente se confirma no instante. A CONSISTÊNCIA não é construída mediante e a partir de uma concatenação de “instantes”. Ao contrário, estes surgem da temporalidade já estendida da retomada, porvindoura em seu ter sido. STMSC: §75
Caracterizamos, anteriormente, o existir próprio e impróprio no tocante aos modos de temporalização da temporalidade. Assim, a indecisão da existência imprópria se temporaliza numa atualização que não aguarda e que esquece. O indeciso se compreende a partir dos dados e a-casos mais próximos, que vêm ao encontro e variadamente se impõem nessa atualização. Perdendo-se na ocupação de múltiplos afazeres, o indeciso perde seu tempo. Por isso, a sua fala característica é: “eu não tenho tempo”. Da mesma forma que aquele que existe impropriamente sempre perde tempo e nunca “tem” tempo, também a temporalidade da existência própria se distingue por, na decisão, nunca perder tempo e “sempre ter tempo”. Pois, com referência à sua atualidade, a temporalidade da decisão tem o caráter de instante. A sua atualização própria do instante nas situações nunca predomina mas se sustenta no porvir do ter sido. A existência no modo do instante temporaliza-se como ex-tensão, inteiramente marcada pelo destino, no sentido da CONSISTÊNCIA (Ständigkeit) própria e histórica do si-mesmo. Portanto, a existência assim temporal tem, “constantemente” (ständig), seu tempo para aquilo que a situação dela exige. Destarte, a decisão só abre o pre [das Da] como situação. Assim o que se abre nunca é capaz de vir ao encontro do decidido de modo a poder perder o seu tempo com indecisão. STMSC: §79