comum-pertencer

Sem nos darmos conta, já interpretamos agora o tó autó, o mesmo. Interpretamos a mesmidade como comum-pertencer [NT: Zusammengehörigkeit traduzimos aqui por comum-pertencer. Com esta expressão, quer-se acentuar: a) que ser e pensar estão imbricados numa reciprocidade; b) que, através deste recíproco pertencer-se, fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo.]. Facilmente se representa este comum-pertencer no sentido da identidade, pensada mais tarde e universalmente conhecida. Que, entretanto, poderia impedir-nos de fazê-lo? Nada menos que o princípio mesmo que lemos em Parmênides. Pois ele diz outra coisa, a saber: ser pertence – com o pensar – ao mesmo. O ser é determinado a partir de uma identidade, como um traço desta identidade. Pelo contrário, a identidade, mais tarde pensada na metafísica, é representada como um traço do ser. Portanto, não podemos querer determinar a partir da identidade representada metafisicamente aquela que Parmênides nomeia.

A mesmidade de pensar e ser, que fala na proposição de Parmênides, vem de mais longe que a da identidade metafísica que emerge do ser e é determinada como um traço dele.

A palavra-guia, na proposição de Parmênides, tó autó, o mesmo, permanece obscura. Deixamo-la assim. Aceitamos, porém, o aceno da proposição em que a palavra-guia forma o início.

Entretanto, já fixamos a mesmidade de pensar e ser como o comum-pertencer de ambos. Isto foi apressado, talvez mesmo forçado. Devemos fazer reverter isto que foi resultado da pressa. Disso também somos capazes, na medida em que não tomamos como definitivo o mencionado comum-pertencer e não o arvoramos em explicação definitiva e decisiva da mesmidade de pensar e ser.

Se pensamos o comum-pertencer [NT: Através do deslocamento do acento principal de um para outro elemento da palavra composta, Heidegger procura destacar os dois sentidos que nela quer ler. Comum-pertencer (Zusammengehörigkeit) mostra possível sentido hegeliano da identidade entre ser e pensar, ser e homem: identidade, resultado de um processo, de uma mediação conduzindo a uma síntese. Comum-pertencer (Zusammengehörigkeit) aponta para um âmbito (o mesmo) do qual fazem parte homem e ser; é a identidade heideggeriana que resulta do passo de volta. A diversa leitura da palavra Zusammengehörigkeit procura mostrar os dois caminhos – ambos recusando a identidade como estático traço do ser; um em direção de um télos (fim), de uma síntese suprema (Hegel), outro em direção da arkhé (começo), do fundamento. Para Heidegger trata-se de um Rück-gang (re-gresso), para Hegel de um Fort-gang (pro-gresso). Ou compreende Hegel o pensamento como um movimento “ambidirecional” (gegenläufige Bewegung) de progresso e regresso, como expressamente diz na lógica “que o pro-gresso na filosofia é um re-gresso”? (Ver a excelente obra de L. Bruno Puntel, Analogia und Geschichtlichkeit, I, ed. Herdar, Freiburg, 1969.)] como de costume, então, como já mostra a ênfase dada à primeira parte da expressão, o sentido do pertencer é determinado a partir da comunidade, quer dizer, a partir de sua unidade. Neste caso, “pertencer” significa: integrado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo múltiplo, reunido para a unidade do sistema, mediado pelo centro unificador de uma adequada síntese. A filosofia representa este comum-pertencer como nexus e connexio, como a necessária junção de um com o outro.

Entretanto, o comum-pertencer pode também ser pensado como comum-pertencer. Isto quer dizer: a comunidade é agora determinada a partir do pertencer. Neste caso, então, sem dúvida, permanece aberta a questão do significado de “pertencer” e como somente a partir dele se determina a comunidade que lhe é própria. A resposta a esta questão está mais próxima do que pensamos, sem que, no entanto seja óbvia. É suficiente agora que esta indicação nos faça notar a possibilidade de não mais representar o pertencer a partir da unidade da comunidade, mas de experimentar esta comunidade a partir do pertencer. Mas esta indicação não se esgota num vazio jogo de palavras que algo inventa, a que falta qualquer apoio num estado de coisas verificável.

Assim realmente parece, até que concentramos o olhar e deixamos falar as coisas. O pensamento em um comum-pertencer no sentido de comum-pertencer surge da consideração de um estado de coisas, que já foi mencionado. É, evidentemente, difícil concentrar-se nele, por causa de sua simplicidade. Podemos, entretanto, ver este estado de coisas mais de perto, se atentarmos para o seguinte: na elucidação do comum-pertencer como comum-pertencer, já tínhamos, seguido o aceno de Parmênides, em mente tanto pensar como ser, portanto, aquilo que reciprocamente se pertence no seio do mesmo.

Se compreendermos o pensar como a característica do homem, então refletimos sobre um comum-pertencer que se refere a homem e ser. No mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? Quem ou o que é o homem? Qualquer um vê facilmente que, sem a suficiente resposta a estas perguntas falta-nos o chão em que possamos decidir algo seguro sobre o comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questionarmos desta maneira ficamos presos à tentativa de representar a comunidade de homem e ser como uma integração e de dispor esta ou a partir do homem ou a partir do ser e assim explicitá-la. Nisto os conceitos tradicionais de homem e ser formam os pontos de apoio para a integração de ambos.

E que seria se nós, em vez de continuamente representarmos uma coordenação de ambos, para refazer sua unidade, prestássemos uma vez atenção se e como nesta comunidade está, antes de tudo, em jogo um recíproco-pertencer? Existe até a possibilidade de entrever, ainda que a distância, o comum-pertencer de homem e ser já na determinação tradicional de sua essência. Até que ponto?

O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como a pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O homem é propriamente esta relação de correspondência, e é somente isto. “Somente” não significa limitação, mas uma plenitude. No homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta ao ser, porque a ele está entregue como propriedade. E o ser? Pensemos o ser em seu sentido primordial como presentar. O ser se presenta ao homem, nem acidentalmente nem por exceção. Ser somente é e permanece enquanto aborda o homem pelo apelo. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento enquanto presentar. Tal presentar necessita o aberto de uma clareira e permanece assim, por esta necessidade, entregue ao ser humano, como propriedade. Isto não significa absolutamente que o ser é primeira e unicamente posto pelo homem. Pelo contrário, torna-se claro.
Homem e ser estão entregues reciprocamente um ao outro como propriedade. Pertencem um ao outro. Deste pertencer-se reciprocamente homem e ser receberam, antes de tudo, aquelas determinações de sua essência, nas quais foram compreendidas metafisicamente pela filosofia.

Este preponderante comum-pertencer de homem e ser é por nós teimosamente ignorado enquanto tudo representarmos em seqüências e mediações, seja com ou sem dialética. Então encontramos apenas encadeamentos que ou são urdidos por iniciativa do ser ou do homem e apresentam o comum-pertencer de homem e ser como entrelaçamento.

Não penetramos ainda no comum-pertencer. Como, porém, acontece uma tal entrada? Pelo fato de nos distanciarmos da atitude do pensamento que representa. Este distanciar-se se verifica como um salto. Ele salta, afastando-se da comum representação do homem como animal rationale, que na modernidade tornou-se sujeito para seus objetos. O salto distancia-se ao mesmo tempo do ser. Este, entretanto, é interpretado desde os primórdios do pensamento ocidental como fundamento em que todo o ser do ente se funda.

Para onde salta o salto, se se distancia do fundamento? Salta num abismo (sem-fundamento)? [NT: O salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-grund), é o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser. Compreende-se isto quando se lê em O Princípio da Razão: ‘Ser e fundamento pertencem à unidade. Do fato de fazer parte do ser o fundamento recebe sua essência. E vice-versa, da essência do fundamento surge o domínio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (’são’) o mesmo, não o igual, o que já indica a diversidade dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento. Ser ‘é’ essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um fundamento que o fundamente. O fundamento fica, desta maneira, afastado do ser. O fundamento fica ausente do ser. No sentido de uma tal ausência de fundamento do ser, o ser ‘é’ sem-fundamento (ab-grund), abismo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo sem-fundamento’. (Der Satz vom Grund, pp. 92-91)]. Sim, enquanto apenas representarmos o salto e isto no horizonte do pensamento metafisico. Não, enquanto saltamos e nos abandonamos. Para onde? Para lá onde já fomos admitidos: ao pertencer ao ser. O ser mesmo, porém, pertence a nós; pois somente junto a nós pode ele ser como ser, isto é, pre-sentar-se.

Assim, pois, torna-se necessário um salto para se experimentar o comum-pertencer de homem e ser, propriamente. Este salto é a subitamente da entrada não mediada naquele pertencer cuja missão é dispensar uma reciprocidade de homem e ser e instaurar a constelação de ambos. O salto é a súbita penetração no âmbito a partir do qual homem e ser desde sempre atingiram juntos a sua essência, porque ambos foram reciprocamente entregues como propriedade a partir de um gesto que dá. A penetração no âmbito desta entrega como propriedade dis-põe e harmoniza a experiência do pensar. Estranho salto, que provavelmente nos convencerá que ainda não nos demoramos bastante ali, onde propriamente já estamos. Onde estamos nós? Em que constelação de ser e homem? [MHeidegger – Identidade e Diferença 175]