compreensão do ser

Seinsverständnis

Interpelar algo enquanto algo não significa ainda necessariamente: compreender o assim interpelado em sua essência. A compreensão do ser (logos num sentido bem amplo), que previamente ilumina e orienta todo o comportamento para o ente, não é nem um captar o ser como tal nem um reduzir ao conceito o assim captado (logos no sentido mais estrito – conceito “ontológico”). A compreensão do ser, ainda não reduzida ao conceito, designamos, por isso, compreensão pré-ontológica ou também ontológica, em sentido mais amplo. Conceituar o ser pressupõe que a compreensão do ser se tenha elaborado a si mesma e que tenha transformado propriamente em tema e problema o ser nela compreendido, projetado em geral e de alguma maneira desvelado. Entre compreensão pré-ontológica do ser e expressa problematização da conceituação do ser, há muitos graus. Um grau característico é, por exemplo, o projeto da constituição do ser do ente, através do qual é, concomitantemente, delimitado um determinado campo (natureza, história) como área de possível objetivação através do conhecimento científico. A prévia determinação do ser (que-ser e como-ser) da natureza em geral se fixa nos “conceitos fundamentais” da respectiva ciência. Nestes conceitos são, por exemplo, delimitados espaço, lugar, tempo, movimento, massa, força, velocidade; todavia, a essência do tempo, do movimento, não é propriamente problematizada. A compreensão ontológica do ente puramente subsistente é aqui reduzida a um conceito, mas a determinação conceitual de tempo e lugar etc., as definições, são reguladas, em seu ponto de partida e amplitude, unicamente pelo questionamento fundamental que na respectiva ciência é dirigido ao ente. Os conceitos fundamentais da ciência atual não contêm, nem já os “autênticos” conceitos ontológicos do ser do respectivo ente nem podem estes ser simplesmente conquistados por uma “adequada” ampliação daqueles. Muito antes, devem ser conquistados os originários conceitos ontológicos antes de toda definição científica dos conceitos fundamentais, de tal modo que, a partir daqueles, se torne possível estimar de que maneira restritiva e, em cada caso, delimitadora a partir de um ponto de vista, os conceitos fundamentais das ciências atingem o ser, somente captável em conceitos puramente ontológicos. O “fato” das ciências, isto é, conteúdo fático de compreensão do ser que elas necessariamente encerram, como qualquer comportamento para com o ente, não é nem instância fundadora para o a priori nem a fonte do conhecimento do mesmo, mas é apenas uma possível e motivadora orientação que aponta para a originária constituição ontológica, por exemplo, de história ou de natureza, orientação que ainda, por sua vez, deve permanecer submetida a constante crítica, que já recebeu os pontos que tem em mira da problemática fundamental de todo o questionamento do ser do ente. [MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]


As ciências são modos de ser da presença [Dasein], nos quais ela também se relaciona com entes que ela mesma não precisa ser. Pertence, porém, essencialmente à presença [Dasein]: ser em um mundo. Assim, a compreensão de ser [Seinsverständnis], própria da presença [Dasein], inclui, de maneira igualmente originária, a compreensão de “mundo” e a compreensão do ser [Seinsverständnis] dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo [innerweltlich]. Dessa maneira, as ontologias que possuem por tema os entes desprovidos do modo de ser [Seinsart] da presença [Dasein] se fundam e motivam na estrutura ôntica [ontisch] da própria presença [Dasein], que acolhe em si a determinação de uma compreensão pré-ontológica [vorontologisch] de ser. STMSCC: §4

Em consequência, a presença [Dasein] possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes. O primeiro é um primado ôntico [ontisch]: a presença [Dasein] é um ente determinado [Bestimmtheit] em seu ser pela existência [Existenz]. O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação de existência [Existenz], a presença [Dasein] é em si mesma “ontológica”. Pertence à presença [Dasein], de maneira igualmente originária, e enquanto constitutiva da compreensão da existência [Existenz], uma compreensão do ser [Seinsverständnis] de todos os entes que não possuem o modo de ser [Seinsart] da presença [Dasein]. A presença [Dasein] tem, por conseguinte, um terceiro primado, que é a condição ôntico-ontológica da possibilidade [Möglichkeit] de todas as ontologias. Desse modo, a presença [Dasein] se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. STMSCC: §4

Todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes “depende” da escolástica medieval. Essa descoberta [entdecken], porém, não diz nada do ponto de vista filosófico, enquanto permanecer obscura a influência fundamental exercida pela ontologia medieval na determinação ou na não-determinação posterior da res cogitans. Só será possível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido [Sinn] e os limites da antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão [Frage] do ser. Em outras palavras, a destruição [Destruktion] se vê colocada diante da tarefa de interpretar o solo da antiga ontologia à luz [Licht] da problemática da temporaneidade [Temporalität]. Torna-se, assim, evidente [63] que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo “mundo” e pela “natureza” em seu sentido [Sinn] mais amplo, retirando de fato a compreensão do ser [Seinsverständnis] a partir do “tempo”. A determinação do sentido [Sinn] do ser como parousia e ousia, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa “vigência [Anwesenheit]”, representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em seu ser como “vigência [Anwesenheit]”, isto é, a partir de determinado [Bestimmtheit] modo do tempo, do “atualmente presente”. STMSCC: §6

A presença [Dasein] se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade [Möglichkeit] que ela é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser. Este é o sentido [Sinn] formal da constituição existencial da presença [Dasein]. Nele, porém, encontra-se a indicação [Aufschluss] de que, para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser [NH: melhor: de sua compreensão do ser [Seinsverständnis]] deve ser desenvolvida a partir da existencialidade [Existenzialität] de sua existência [Existenz]. Isso porém não quer dizer construir a presença [Dasein] a partir de uma determinada [Bestimmtheit] ideia [Idee] possível de existência [Existenz]. Ao contrário, no ponto de partida da análise, não se pode interpretar a presença [Dasein] pela diferença [Unterschied] de um modo determinado [Bestimmtheit] de existir [existieren]. Deve-se, ao invés, descobri-la pelo modo indeterminado em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes [zunächst und zumeist], ela se dá. Esta indiferença [Gleichgültigkeit] da cotidianidade [Alltäglichkeit] da presença [Dasein] não é um nada negativo, mas um caráter fenomenal [phänomenal] positivo deste ente. É a partir deste modo de ser [Seinsart] e com vistas a este modo de ser [Seinsart] que todo e qualquer existir [existieren] é assim como é. Denominamos esta indiferença [Gleichgültigkeit] cotidiana [alltäglich] da presença [Dasein] de medianidade [Durchschnittlichkeit]. STMSCC: §9

Por outro lado, na tendência corretamente compreendida de toda “filosofia da vida [Leben]” séria e científica – em que a palavra vida [Leben] diz algo como a botânica das plantas – subsiste implicitamente a tendência para uma compreensão do ser [Seinsverständnis] da presença [Dasein] [NH: não!]. O que chama atenção, e nisso está sua radical deficiência [NH: não apenas isso, mas a questão [Frage] da verdade [Wahrheit] é totalmente e, em sua essência, insuficiente], é não se questionar ontologicamente a própria “vida [Leben]” como um modo de ser [Seinsart]. [90] STMSCC: §10

O mundo ele mesmo não é um ente intramundano [innerweltlich], embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano [innerweltlich] só possa mostrar-se porque mundo “se dá” . Como, porém, “dá-se” mundo? Se a presença [Dasein] se constitui onticamente pelo ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] e se também pertence essencialmente ao seu ser uma compreensão do ser [Seinsverständnis] de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica [vorontologisch], que pudesse dispensar uma visão [Sicht] ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] que se acha na ocupação [Besorgen] do ente intramundano [innerweltlich], ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse fenômeno [Phänomen] sempre se apresenta numa visão [Sicht] pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal visão [Sicht], mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença [Dasein], no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento [Zeug] manual [zuhanden], não possui uma possibilidade [Möglichkeit] ontológica em que, de certo modo, a mundanidade [Weltlichkeit] se lhe evidencia junto com o ente intramundano [innerweltlich] da ocupação [Besorgen]? STMSCC: §16

A abertura [Erschliessen] da co-presença [Mitdasein] dos outros, pertencente ao ser-com [Mitsein], significa: na compreensão do ser [Seinsverständnis] da presença [Dasein] já subsiste uma compreensão dos outros, porque seu ser é ser-com [Mitsein]. Como todo compreender [Verstehen], esse compreender [Verstehen] não é um conhecer [Erkennen] nascido de uma tomada de conhecimento [Erkenntnis]. É um modo de ser [Seinsart] originariamente existencial que só então torna possível conhecer [Erkennen] e tomada de conhecimento [Erkenntnis]. Este conhecer-se está fundado no ser-com [Mitsein] que compreende originariamente. Ele se move, de início, segundo o modo de ser [Seinsart] mais imediato do ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] que é com, no conhecer [Erkennen] compreensivo do que a presença [Dasein] encontra e do que ela se ocupa na circunvisão [Umsicht] do mundo circundante [Umwelt]. A partir da ocupação [Besorgen] e do que nela se compreende é que se pode entender a ocupação [Besorgen] da preocupação [Fürsorge]. O outro se descobre, assim, antes de tudo, na preocupação [Fürsorge] das ocupações [Besorgen]. STMSCC: §26

Como já se indicou na análise anterior, o fenômeno [Phänomen] da comunicação [Mitteilung] deve ser compreendido num sentido [Sinn] ontologicamente amplo. A “comunicação [Mitteilung]” de enunciados, por exemplo, a reportagem, é um caso especial de comunicação [Mitteilung], apreendida fundamentalmente como existencial. Nela se constitui a articulação da convivência [Miteinandersein] que compreende. É ela que cumpre a “partilha” da disposição [Befindlichkeit] comum e da compreensão do ser-com [Mitsein]. Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito [Subjekt] para o interior de outro sujeito [Subjekt]. A co-presença [Mitdasein] já se revelou essencialmente na disposição [Befindlichkeit] e compreender [Verstehen] comuns. O ser-com [Mitsein] é partilhado “expressamente” na fala [Rede]. Isso significa: o ser-com [Mitsein] já é, só que ainda não partilhado porque não apreendido e apropriado [Geeignetheiten]. STMSCC: §34

De fato, apenas enquanto a presença [Dasein] é, ou seja, a possibilidade [Möglichkeit] ôntica [ontisch] de compreensão de ser [Seinsverständnis], “dá-se” ser. Se a presença [Dasein] não existe, também nem “independência”, nem “em si” podem “ser”. Eles não seriam nem compreensíveis, nem incompreensíveis. O ente intramundano [innerweltlich] também não poderia ser descoberto nem permanecer oculto. Então nem se poderia dizer que o ente é ou não é. Agora pode-se realmente dizer que, enquanto houver compreensão de ser [Seinsverständnis] [281] e com isso compreensão do ser [Seinsverständnis] simplesmente dado [Vorhandenheit], então o ente prosseguirá a ser. STMSCC: §43

O que se busca é responder à questão [Frage] do sentido [Sinn] do ser em geral e, antes disso, a possibilidade [Möglichkeit] de elaborar radicalmente essa questão [Frage] fundamental [NH: pela qual, porém, a “ontologia” também se transforma (cf. Kant e o problema da metafísica, seção IV)] de toda ontologia. Liberar o horizonte em que o ser em geral é, de início, compreensível equivale, no entanto, a esclarecer a possibilidade [Möglichkeit] da compreensão do ser [Seinsverständnis] em geral, pertencente [303] à constituição desse ente que chamamos de presença [Dasein]. Como momento de ser essencial da presença [Dasein], a compreensão de ser [Seinsverständnis] só se deixa esclarecer radicalmente caso o ente que a possua seja interpretado originariamente na perspectiva de [woraufhin] seu ser. STMSCC: §45

O com a caracterização da originariedade [Ursprünglichkeit] das ideias de uma “má” a e “boa” consciência já se decidiu também acerca da distinção entre uma consciência que censura retroativamente e adverte previamente. Na verdade, a ideia [Idee] da consciência que adverte parece ser a que mais se aproxima do fenômeno [Phänomen] do fazer apelo [Ruf]… Com esta, ela tem a em comum o caráter de referência [Verweisung] prévia. No entanto, essa concordância não passa de aparência. A experiência de uma consciência que adverte só vê a voz orientada para o ato da vontade [Wille], frente ao qual ela deve resguardar-se. Enquanto interdição do que se quer, a advertência só é possível porque o apelo [Ruf] “que adverte” almeja o poder-ser [Seinkönnen] da presença [Dasein], ou seja, a compreensão do ser [Seinsverständnis] e estar em dívida [Schuld] aonde “o que se quer” pode romper-se. A consciência que adverte tem a função de regulamentar, momentaneamente, o ficar livre de culpabilizações. A experiência de uma consciência “que adverte” apenas revê a tendência de apelo da consciência [Gewissensruf], quando ela permanece nos limites da compreensibilidade [Verständigkeit] do impessoal [das Man]. STMSCC: §59

A compreensão do apelo da consciência [Gewissensruf] desvela [enthüllen] a perdição [Verlorenheit] no impessoal [das Man]. A decisão [Entschlossenheit] recupera a presença [Dasein] para o seu poder-ser [Seinkönnen] si-mesma. [389] mais próprio [eigentlich]. É na compreensão do ser-para-a-morte [Sein zum Tode] enquanto possibilidade [Möglichkeit] mais própria que o poder-ser [Seinkönnen] próprio [eigentlich] torna-se totalmente transparente [durchsichtig] em sua propriedade [Eigentlichkeit]. STMSCC: §62

A própria “objeção do círculo”, contudo, provém de um modo de ser [Seinsart] da presença [Dasein]. A compreensibilidade [Verständigkeit] do empenho impessoal [das Man] nas ocupações [Besorgen] permanece, necessariamente, estranha a toda espécie de projeto [Entwurf], sobretudo de um projeto [Entwurf] ontológico, porque ela, “em princípio”, se fecha para ele. Quer “teórica”, quer “praticamente”, a compreensibilidade [Verständigkeit] só se ocupa dos entes passíveis de serem supervisionados pela circunvisão [Umsicht]. O distintivo da compreensibilidade [Verständigkeit] reside em pretender fazer somente a experiência “fatual” de A um ente para poder esquivar-se [Ausweichen] a uma compreensão do ser [Seinsverständnis]. Ela desconhece que mesmo para se fazer a experiência “fatual” de um ente é preciso já se ter compreendido o ser, não obstante sem conceituá-lo. A compreensibilidade [Verständigkeit] não compreende o compreender [Verstehen]. E por isso ela também precisa, necessariamente, dar como “violento” a tanto o que está além de seu âmbito de compreensão como o próprio [eigentlich] estar além. STMSCC: §63

Na compreensão de ser [Seinsverständnis], que, enquanto compreender [Verstehen], pertence à existência [Existenz] da presença [Dasein], abriu-se algo como “ser”. Embora não concebida, a abertura [Erschliessen] preliminar de ser possibilita que, como ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] existente, a presença [Dasein] possa relacionar-se com o ente que vem ao encontro [begegnen] dentro do mundo [innerweltlich] e também consigo mesma, enquanto existente. Mas como é simplesmente possível na presença [Dasein] a compreensão do ser [Seinsverständnis] em sua abertura [Erschliessen]? Pode-se responder a esta questão [Frage], remontando-se à constituição ontológica originária da presença [Dasein] que compreende ser? A constituição ontológico-existencial da totalidade da presença [Dasein] funda-se na temporalidade [Zeitlichkeit]. Desta forma, é um modo originário [ursprünglich] de temporalização [Zeitigung] da própria temporalidade [Zeitlichkeit] ekstática que deve tornar possível o projeto [Entwurf] ekstático do ser em geral. Como se há de interpretar esse modo de temporalização [Zeitigung] da temporalidade [Zeitlichkeit]? Haverá um caminho que conduza do tempo originário [ursprünglich] para o sentido [Sinn] do ser? Será que o próprio [eigentlich] tempo se revela como horizonte do ser? [535] STMSCC: §83