compreensão de ser

Seinsverständnis

1. “Ser” {CH: o ente, a entidade} é o conceito “mais universal”: to on esti katholou malista panton. Illud, quod primo cadit sub apprehensione, est ens, cuius intellectus includitur in omnibus, quaecumque quis apprehendit. “Uma COMPREENSÃO DE SER já está sempre incluída em tudo que se apreende no ente”. A “universalidade” de “ser”, porém, não é a do gênero. “Ser” não delimita a região suprema do ente, pois esse se articula conceitualmente segundo gênero e espécie: oute to on genos. A “universalidade” do ser “transcende” toda universalidade genérica. Segundo a terminologia da ontologia medieval, “ser” é um “transcendens”. A unidade desse “universal” transcendental frente à multiplicidade dos conceitos reais mais elevados de gênero foi entendida já por Aristóteles como unidade da analogia. Com essa descoberta, Aristóteles apresentou em nova base o problema do ser, apesar de toda a dependência do questionamento ontológico de Platão. No entanto, ele também não esclareceu a obscuridade desses nexos categoriais. A ontologia medieval discutiu variadamente o problema, sobretudo nas escolas tomista e escotista, sem, no entanto, chegar a uma clareza de princípio. E quando, por fim, Hegel determina o “ser” como o “imediato indeterminado” e coloca essa determinação à base de todas as ulteriores explicações categoriais de sua Lógica, ele ainda permanece na mesma direção da antiga ontologia com a diferença de que abandona o problema já colocado por Aristóteles da unidade do ser face à multiplicidade das “categorias” reais. Quando se diz, portanto: “ser” é o conceito mais universal, isso não pode significar que o conceito de ser seja o mais claro e que não necessite de qualquer discussão ulterior. Ao contrário, o conceito de “ser” é o mais obscuro. STMSC: §1

3. O “ser” é o conceito evidente por si mesmo. Em todo conhecimento, enunciado ou relacionamento com os entes e em todo relacionar-se consigo mesmo, faz-se uso de “ser” e, nesse uso, compreende-se a palavra “sem mais”. Todo mundo compreende: “o céu é azul”, “eu sou feliz”, etc. Mas essa compreensibilidade comum demonstra apenas a incompreensão. Revela que um enigma já está sempre inserido a priori em todo ater-se e ser para o ente como ente. Por vivermos sempre numa COMPREENSÃO DE SER e o sentido de ser estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade, demonstra-se a necessidade de princípio de se retomar a questão sobre o sentido de “ser”. STMSC: §1

Enquanto busca, o questionar necessita de uma orientação prévia do que se busca. Para isso, o sentido de ser já nos deve estar, de alguma maneira, à disposição. Já se aludiu que sempre nos movemos numa COMPREENSÃO DE SER. É dela que brota a questão explícita do sentido de ser e a tendência para o seu conceito. Não sabemos o que diz “ser”. Mas já quando perguntamos o que é “ser”, mantemo-nos numa compreensão do “é”, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse “é”. Nós nem sequer conhecemos o horizonte em que poderíamos apreender e fixar-lhe o sentido. Essa compreensão vaga e mediada de ser é um fato. STMSC: §2

Por mais que a COMPREENSÃO DE SER oscile, flutue e se mova rigorosamente no limiar de um mero conhecimento da palavra esse estado indeterminado de uma COMPREENSÃO DE SER já sempre à disposição é, em si mesmo, um fenômeno positivo que necessita de esclarecimento. Contudo, uma investigação sobre o sentido de ser não pode pretender dar uma tal explicação no início. A interpretação dessa compreensão mediana de ser só pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito de ser. É à luz desse conceito e dos modos de compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que significa essa COMPREENSÃO DE SER obscura e ainda não esclarecida e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido de ser. STMSC: §2

A COMPREENSÃO DE SER vaga e mediana pode também estar impregnada de teorias tradicionais e opiniões sobre o ser, de modo que tais teorias constituam, secretamente, fontes da compreensão dominante. O que se busca no questionar de ser não é algo inteiramente desconhecido, embora seja, numa primeira aproximação, algo completamente inapreensível. STMSC: §2

Na questão sobre o sentido de ser não há “círculo vicioso” e sim uma curiosa “retrospecção ou prospecção” do questionado (o ser) sobre o próprio questionar, enquanto modo de ser de um ente determinado. Ser atingido essencialmente pelo questionado pertence ao sentido mais autêntico da questão do ser. Isso, porém, significa apenas que o ente, dotado do caráter da presença [Dasein], traz em si mesmo uma remissão talvez até privilegiada à questão do ser. Com isso, no entanto, não se prova o primado ontológico de um determinado ente? Não se dá preliminarmente {CH: novamente como na p. 32 uma simplificação essencial, embora pensando adequadamente. Presença não é um caso de ente para a abstração representativa do ser. Mas a estância da COMPREENSÃO DE SER} o ente exemplar que deve desempenhar o papel de primeiro interrogado na questão do ser? No que se discutiu até aqui nem se provou o primado da presença [Dasein] e nem se decidiu nada sobre uma função possível ou necessária do ente a ser interrogado como o primeiro. O que se insinuou foi apenas um primado da presença [Dasein]. STMSC: §2

A questão do ser visa, portanto às condições a priori de possibilidade não apenas das ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao fazê-lo, sempre já se movem numa COMPREENSÃO DE SER. A questão do ser visa às condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas. Por mais rico e estruturado que possa ser o seu sistema de categorias, toda ontologia permanece, no fundo, cega e uma distorção de seu propósito mais autêntico se, previamente, não houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido de ser e não tiver compreendido esse esclarecimento como sua tarefa fundamental. STMSC: §3

A presença [Dasein] não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da presença [Dasein] a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presença [Dasein] se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A COMPREENSÃO DE SER é em si mesma uma determinação de ser da presença [Dasein] {CH: ser aqui não apenas como ser do homem (existência). Isso se esclarece pelo seguinte: o ser-no-mundo abriga em si a remissão da existência ao ser em seu todo: COMPREENSÃO DE SER}. O privilégio ôntico que distingue a presença [Dasein] está em ela ser ontológica. STMSC: §4

Ser ontológico ainda não diz aqui elaborar uma ontologia. Por isso, se reservarmos o termo ontologia para designar o questionamento teórico explícito do sentido de ser, então deve-se chamar este ser-ontológico da presença [Dasein] de pré-ontológico. Isso, no entanto, não significa simplesmente sendo onticamente um ente, mas sendo no modo de uma COMPREENSÃO DE SER. STMSC: §4

As ciências são modos de ser da presença [Dasein], nos quais ela também se relaciona com entes que ela mesma não precisa ser. Pertence, porém, essencialmente à presença [Dasein]: ser em um mundo. Assim, a COMPREENSÃO DE SER, própria da presença [Dasein], inclui, de maneira igualmente originária, a compreensão de “mundo” e a COMPREENSÃO DO SER dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo. Dessa maneira, as ontologias que possuem por tema os entes desprovidos do modo de ser da presença [Dasein] se fundam e motivam na estrutura ôntica da própria presença [Dasein], que acolhe em si a determinação de uma compreensão pré-ontológica de ser. STMSC: §4

Em consequência, a presença [Dasein] possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes. O primeiro é um primado ôntico: a presença [Dasein] é um ente determinado em seu ser pela existência. O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação de existência, a presença [Dasein] é em si mesma “ontológica”. Pertence à presença [Dasein], de maneira igualmente originária, e enquanto constitutiva da compreensão da existência, uma COMPREENSÃO DO SER de todos os entes que não possuem o modo de ser da presença [Dasein]. A presença [Dasein] tem, por conseguinte, um terceiro primado, que é a condição ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias. Desse modo, a presença [Dasein] se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. STMSC: §4

O primado ôntico-ontológico, demonstrado para a presença [Dasein], poderia induzir a se pensar que esse ente é também o primeiro do ponto de vista ôntico-ontológico. E isso não apenas no sentido de uma apreensão “imediata” do próprio ente, mas também no tocante a um dado preliminar, igualmente “imediato”, de seu modo de ser. Na verdade, a presença [Dasein] não somente está onticamente próxima ou é o mais próximo. Nós mesmos a somos cada vez. Apesar disso, ou justamente por isso, é o que está mais distante do ponto de vista ontológico. Sem dúvida, pertence a seu ser mais próprio dispor de uma compreensão de si mesmo e manter-se desde sempre numa certa interpretação de seu ser. Mas com isso não se afirma, de modo algum, que essa interpretação pré-ontológica de seu ser, que lhe é próxima, possa servir de fio condutor adequado, como se tal COMPREENSÃO DE SER tivesse de nascer de uma reflexão ontológica e temática sobre sua constituição ontológica mais própria. Ao contrário, de acordo com um modo de ser que lhe é constitutivo, a presença [Dasein] tem a tendência de compreender seu próprio ser a partir daquele ente com quem ela se relaciona e se comporta de modo essencial, primeira e constantemente, a saber, a partir do “mundo” {CH: isto é, aqui, a partir do que é simplesmente dado}. Na própria presença [Dasein] e, assim, em sua COMPREENSÃO DE SER, reside o que ainda demonstraremos como reflexo ontológico da compreensão de mundo sobre a interpretação da presença [Dasein]. STMSC: §5

A presença [Dasein] sempre dispõe de uma rica e variada interpretação de si mesma, à medida que uma COMPREENSÃO DE SER não apenas lhe pertence, como já se formou ou deformou em cada um de seus modos de ser. Seguindo caminhos diversos e em extensões diferentes, a psicologia filosófica, a antropologia, a ética, a “política”, a poesia, a biografia e historiografia já pesquisaram as atitudes, potências, forças, possibilidades e envios da presença [Dasein]. Resta, porém, a pergunta: Será que essas interpretações se fizeram de maneira tão originariamente existencial como talvez tenham sido originariamente existenciárias? Ambas as maneiras não precisam coincidir necessariamente, embora também não se excluam. Uma interpretação existenciária pode exigir uma análise existencial quando se compreende a necessidade e possibilidade do conhecimento filosófico. Somente depois de se elaborar, de modo suficiente, as estruturas da presença [Dasein], seguindo uma orientação explícita do problema de ser, é que os resultados obtidos até aqui poderão receber uma justificação existencial. STMSC: §5

Em alguns acenos mostrou-se que, como constituição ôntica, pertence à presença [Dasein] um ser pré-ontológico. A presença [Dasein] é de tal modo que, sendo, realiza a compreensão de algo como ser. Mantendo-se esse nexo, deve-se mostrar que o tempo é o de onde a presença [Dasein] em geral compreende e interpreta implicitamente o ser. Por isso, deve-se conceber e esclarecer, de modo genuíno, o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação de ser. Para que isso se evidencie, torna-se necessária uma explicação originária do tempo enquanto horizonte da COMPREENSÃO DE SER a partir da temporalidade, como ser da presença [Dasein], que se perfaz no movimento de COMPREENSÃO DE SER. No todo dessa tarefa, também se inclui a exigência de se delimitar e distinguir o conceito de tempo, assim conquistado, da compreensão vulgar de tempo, que veio se explicitando numa interpretação do tempo, consolidada em seu conceito tradicional, desde Aristóteles até depois de Bergson. Nessa tarefa, deve-se esclarecer que e como esse conceito e a compreensão vulgar do tempo brotam e derivam da temporalidade. Com isso, restitui-se ao conceito vulgar de tempo seu próprio direito, por oposição à tese de Bergson, para quem o tempo indicado nesse conceito é espaço. STMSC: §5

Toda investigação, e não apenas a investigação que se move no âmbito da questão central do ser, é sempre uma possibilidade ôntica da presença [Dasein]. O ser da presença [Dasein] tem o seu sentido na temporalidade. Esta, por sua vez, é também a condição de possibilidade da historicidade enquanto um modo de ser temporal da própria presença [Dasein], mesmo abstraindo da questão do se e como a presença [Dasein] é um ente “no tempo”. A determinação de historicidade se oferece antes daquilo a que se chama de história (acontecimento pertencente à história universal). Historicidade indica a constituição de ser do “acontecer”, próprio da presença [Dasein] como tal. É com base na historicidade que a “história universal”, e tudo que pertence historicamente à história do mundo, torna-se possível. Em seu ser fático, a presença [Dasein] é sempre como e “o que” ela já foi. Explicitamente ou não, a presença [Dasein] é sempre o seu passado e não apenas no sentido do passado que sempre arrasta “atrás” de si e, desse modo, possui, como propriedades simplesmente dadas, as experiências passadas que, às vezes, agem e influem sobre a presença [Dasein]. Não. A presença [Dasein] “é” o seu passado no modo de seu ser, o que significa, a grosso modo, que ela sempre “acontece” a partir de seu futuro. Em cada um de seus modos de ser e, por conseguinte, também em sua COMPREENSÃO DE SER, a presença [Dasein] sempre já nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdada da tradição. De certo modo e em certa medida, a presença [Dasein] se compreende a si mesma de imediato a partir da tradição. Essa compreensão lhe abre e regula as possibilidades de seu ser. Seu próprio passado, e isso diz sempre o passado de sua “geração”, não segue, mas precede a presença [Dasein], antecipando-lhe os passos. STMSC: §6

Todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes “depende” da escolástica medieval. Essa descoberta, porém, não diz nada do ponto de vista filosófico, enquanto permanecer obscura a influência fundamental exercida pela ontologia medieval na determinação ou na não-determinação posterior da res cogitans. Só será possível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido e os limites da antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão do ser. Em outras palavras, a destruição se vê colocada diante da tarefa de interpretar o solo da antiga ontologia à luz da problemática da temporaneidade. Torna-se, assim, evidente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo “mundo” e pela “natureza” em seu sentido mais amplo, retirando de fato a COMPREENSÃO DO SER a partir do “tempo”. A determinação do sentido do ser como parousia e ousia, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa “vigência”, representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em seu ser como “vigência”, isto é, a partir de determinado modo do tempo, do “atualmente presente”. STMSC: §6

Essa interpretação grega de ser foi desenvolvida sem nenhuma consciência explícita de seu fio condutor, sem saber e, sobretudo, sem compreender a função ontológica do tempo e sem penetrar no fundamento de possibilidade dessa função. Ao contrário: o próprio tempo é considerado como um ente entre outros, buscando-se apreender a estrutura de seu ser no horizonte de uma COMPREENSÃO DE SER orientada, implícita e ingenuamente, pelo próprio tempo. STMSC: §6

Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes – é ontologia. Ao esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia fundamental, que possui como tema a presença [Dasein], isto é, o ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da questão sobre o sentido de ser em geral {CH: ser – de modo algum um gênero; o ser não é para o ente em sua generalidade; o “em geral” = katholou = no todo de: ser dos entes; sentido da diferença}. Da própria investigação resulta que o sentido metodológico a da descrição fenomenológica é interpretação. O logos da fenomenologia da presença [Dasein] possui o caráter de hermeneuein. Por meio deste hermeneuein anunciam-se o sentido próprio de ser e as estruturas fundamentais de ser que pertencem à presença [Dasein] como COMPREENSÃO DE SER. Fenomenologia da presença [Dasein] é hermenêutica no sentido originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar. Desvendando-se o sentido de ser e as estruturas fundamentais da presença [Dasein] em geral, abre-se o horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein]. A hermenêutica da presença [Dasein] torna-se também uma “hermenêutica” no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. E, por fim, visto que a presença [Dasein], enquanto ente na possibilidade da existência possui um primado ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica da presença [Dasein] como interpretação ontológica de si mesma adquire um terceiro sentido específico – embora primário do ponto de vista filosófico –, o sentido de uma analítica da existencialidade da existência. Trata-se de uma hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da presença [Dasein] como condição ôntica de possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada na hermenêutica da presença [Dasein], a metodologia das ciências históricas do espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido derivado. STMSC: §7

A presença [Dasein] se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ela é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser. Este é o sentido formal da constituição existencial da presença [Dasein]. Nele, porém, encontra-se a indicação de que, para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser {CH: melhor: de sua COMPREENSÃO DO SER} deve ser desenvolvida a partir da existencialidade de sua existência. Isso porém não quer dizer construir a presença [Dasein] a partir de uma determinada ideia possível de existência. Ao contrário, no ponto de partida da análise, não se pode interpretar a presença [Dasein] pela diferença de um modo determinado de existir. Deve-se, ao invés, descobri-la pelo modo indeterminado em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se dá. Esta indiferença da cotidianidade da presença [Dasein] não é um nada negativo, mas um caráter fenomenal positivo deste ente. É a partir deste modo de ser e com vistas a este modo de ser que todo e qualquer existir é assim como é. Denominamos esta indiferença cotidiana da presença [Dasein] de medianidade. STMSC: §9

Por outro lado, na tendência corretamente compreendida de toda “filosofia da vida” séria e científica – em que a palavra vida diz algo como a botânica das plantas – subsiste implicitamente a tendência para uma COMPREENSÃO DO SER da presença [Dasein] {CH: não!}. O que chama atenção, e nisso está sua radical deficiência {CH: não apenas isso, mas a questão da verdade é totalmente e, em sua essência, insuficiente}, é não se questionar ontologicamente a própria “vida” como um modo de ser. STMSC: §10

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no ser-no-mundo em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço. STMSC: §12

Mas será que a determinação desta constituição de ser, fornecida até aqui, não se move exclusivamente em proposições negativas? Só ouvimos o que não é este ser-em, pretensamente fundamental. De fato. Mas esta predominância de caracteres negativos não é mero acaso. Ao contrário, indica a peculiaridade do fenômeno e, portanto, num sentido autêntico e correspondente ao próprio fenômeno, algo de positivo. A demonstração fenomenológica do ser-no-mundo tem o caráter de uma recusa de encobrimentos e distorções porque este fenômeno já é sempre, de certo modo, “visto” em toda presença [Dasein]. E isto ocorre porque ele participa da constituição fundamental da presença [Dasein] na medida em que, com o seu ser, já se abriu à sua própria COMPREENSÃO DE SER. O fenômeno é, porém, na maioria das vezes, profundamente mal compreendido ou insuficientemente interpretado {CH: de fato! Ele não é absolutamente na medida do ser}, do ponto de vista ontológico. Todavia, a esse “ver de certo modo e na maioria das vezes compreender mal” também se funda na constituição de ser da presença [Dasein] ela mesma, segundo a qual a presença [Dasein], numa primeira aproximação, compreende ontologicamente a si mesma (e, portanto, também o seu ser-no-mundo) a partir dos entes e de seu ser, que ela mesma não é, mas que lhe vêm ao encontro {CH: uma significação retroativa} “dentro” de seu mundo. STMSC: §12

Embora em toda abertura e explicação de ser o tema seja propriamente o ser, o ente sempre acompanha previamente a tematização. No âmbito da presente análise, o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante. Aqui, o ente não é objeto de um conhecimento teórico do “mundo” e sim o que é usado, produzido, etc. O ente que assim vem ao encontro é visualizado pré-tematicamente por um “conhecimento” que, sendo fenomenológico, aspira primordialmente ao ser e, partindo dessa tematização de ser, tematiza igualmente o ente em causa. Essa interpretação fenomenológica não é, pois, um conhecimento de propriedades entitativas dos entes, mas uma determinação da estrutura de seu ser. Enquanto investigação do ser, ela realiza, porém, de maneira explícita e autônoma, a COMPREENSÃO DE SER que, desde sempre, pertence à presença [Dasein] e se “aviva” em todo modo de lidar com o ente. O ente fenomenologicamente pré-temático, ou seja, o usado, o que se acha em produção, torna-se acessível ao transferirmo-nos para tais ocupações. A rigor, seria errôneo falar de transferência, pois não precisamos nos transferir para esse modo de ser e de lidar da ocupação. A presença [Dasein] cotidiana já está sempre nesse modo quando, por exemplo, ao abrir a porta, faço uso do trinco. Para se conquistar um acesso fenomenológico ao ente que assim vem ao encontro, é preciso, contudo, afastar as tendências de interpretação afluentes e concorrentes que encobrem o fenômeno dessa “ocupação”. Pois o que com isso se encobre é, sobretudo, o ente tal como ele, a partir de si mesmo, vem ao encontro na ocupação e para ela. Esses desvios capciosos aparecem quando, agora numa investigação, perguntamos: Que ente há de ser pré-tematizado e estabelecido como base pré-fenomenal? STMSC: §15

O mundo ele mesmo não é um ente intramundano, embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano só possa mostrar-se porque mundo “se dá”. Como, porém, “dá-se” mundo? Se a presença [Dasein] se constitui onticamente pelo ser-no-mundo e se também pertence essencialmente ao seu ser uma COMPREENSÃO DO SER de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica, que pudesse dispensar uma visão ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o ser-no-mundo que se acha na ocupação do ente intramundano, ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse fenômeno sempre se apresenta numa visão pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal visão, mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença [Dasein], no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento manual, não possui uma possibilidade ontológica em que, de certo modo, a mundanidade se lhe evidencia junto com o ente intramundano da ocupação? STMSC: §16

Na interpretação provisória da estrutura de ser do manual (dos “instrumentos”), tornou-se visível o fenômeno da referência, se bem que de maneira tão esquemática, que é preciso acentuar a necessidade de se descobrir o fenômeno apenas indicado em sua proveniência ontológica. Tornou-se também claro que referência e totalidade referencial são, em algum sentido, constitutivas da própria mundanidade. Até o presente momento, vimos o mundo evidenciar-se somente para e em determinados modos da ocupação no mundo circundante do que está à mão, e este com sua manualidade. Quanto mais aprofundarmos, portanto, a COMPREENSÃO DE SER deste ente intramundano, tanto mais ampla e segura tornar-se-á a base fenomenal para a liberação do fenômeno do mundo. STMSC: §17

Poder-se-ia ficar tentado a ilustrar o papel primordial do sinal na ocupação cotidiana para a própria compreensão do mundo com o uso abundante de “sinais”, característico da presença [Dasein] primitiva, ou seja, com o fetiche e a magia. Decerto, a criação de sinais à base desse tipo de uso de sinais não se faz segundo uma intenção teórica nem através de uma especulação teórica. O uso de sinais permanece inteiramente no âmbito de um ser-no-mundo “imediato”. Num exame mais minucioso, porém, torna-se claro que a interpretação de fetiche e magia feita pela ideia de sinal não é, de modo algum, suficiente para apreender o modo de “estar à mão” dos entes que vêm ao encontro no mundo primitivo. No que concerne ao fenômeno do sinal, poder-se-ia fazer a seguinte interpretação: para o homem primitivo, o sinal e o assinalado coincidem. O próprio sinal pode representar o assinalado não somente no sentido de substituí-lo, mas, sobretudo, no sentido de que o próprio sinal é sempre o assinalado. Essa estranha coincidência de sinal e assinalado não reside, contudo, em a coisa sinal já ter feito a experiência de uma certa “objetivação”, sendo experimentada como pura coisa e, desse modo, transferida com o assinalado para o mesmo âmbito ontológico do simplesmente dado. A “coincidência” não é identificação do que antes estava isolado mas um sinal que ainda-não-está-livre do designado. Esse uso de sinal desaparece inteiramente em ser para o assinalado, a ponto de ainda não se poder separar um sinal como tal. A coincidência não se funda numa primeira objetivação mas na total falta de objetivação. Isso significa, no entanto, que os sinais não foram descobertos como instrumento e que, por fim, o “manual” intramundano ainda não possui de forma alguma o modo de ser do instrumento. Presumivelmente, esse diapasão ontológico (manualidade e instrumento), bem como a ontologia da coisalidade, não podem contribuir em nada para uma interpretação do mundo primitivo. Se, no entanto, uma COMPREENSÃO DE SER é constitutiva da presença [Dasein] primitiva e do mundo primitivo em geral, então torna-se ainda mais urgente a elaboração da ideia “formal” de mundanidade, ou seja, de um fenômeno que é de tal maneira passível de modificações que todos os enunciados ontológicos, seja no contexto fenomenal prefixado do que ainda não é isso ou do que já não é mais isso, recebam um sentido fenomenal positivo a partir do que não é. STMSC: §17

Mas o que significa dizer que a perspectiva para a qual se libera, pela primeira vez, o ente intramundano deve estar previamente aberta? Ao ser da presença [Dasein] pertence uma COMPREENSÃO DE SER. Compreensão tem o seu ser num compreender. Se convém essencialmente à presença [Dasein] o modo de ser-no-mundo, é que compreender ser-no-mundo pertence ao teor essencial de sua COMPREENSÃO DE SER. A abertura prévia da perspectiva, em que acontece a liberação dos entes intramundanos que vêm ao encontro, nada mais é do que o compreender de mundo com que a presença [Dasein], enquanto ente, já está sempre em relação. STMSC: §18

O deixar e fazer previamente junto… com… funda-se num compreender de algo como deixar e fazer em conjunto, numa COMPREENSÃO DE SER e estar junto e de estar com de uma conjuntura. Isso e o que lhe subjaz mais remotamente como o ser para isso, em cuja conjuntura se dá o em virtude de para onde retorna, em última instância, todo para quê (Wozu), tudo isso já deve estar previamente aberto numa compreensibilidade. Mas em que a presença [Dasein] se compreende pré-ontologicamente como ser-no-mundo? Ao compreender o contexto de remissões supramencionado, a presença [Dasein] já se referiu a um ser para, a partir de um poder ser explícito ou implícito, próprio ou impróprio, em virtude do qual ela mesma é. Assim, delineia-se um ser para isso, como possível estar junto de um deixar e fazer em conjunto, o qual estruturalmente deixa e faz entrar junto com alguma coisa. A partir de um em virtude de, a presença [Dasein] sempre se refere ao estar com de uma conjuntura, ou seja, já permite sempre, em sendo, que o ente venha ao encontro como manual. A perspectiva dentro da qual se deixa e se faz o encontro prévio dos entes constitui o contexto em que a presença [Dasein] se compreende previamente segundo o modo de referência. O fenômeno do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura. A estrutura da perspectiva em que a presença [Dasein] se refere constitui a mundanidade do mundo. STMSC: §18

A presença [Dasein] está originariamente familiarizada com o (contexto) em que, desse modo, ela sempre se compreende. Tal familiaridade com o mundo não exige, necessariamente, uma transparência teórica das remissões que constituem o mundo como mundo. Na familiaridade com o mundo, constitutiva da presença [Dasein] e que também constitui a COMPREENSÃO DE SER da presença [Dasein], funda-se a possibilidade de uma interpretação ontológico-existencial explícita dessas remissões. Tal possibilidade pode ser apreendida expressamente quando a própria presença [Dasein] assume a tarefa de interpretar originariamente o seu ser e suas possibilidades ou até o sentido de ser em geral. STMSC: §18

A abertura da co-presença [Dasein] dos outros, pertencente ao ser-com, significa: na COMPREENSÃO DO SER da presença [Dasein] já subsiste uma compreensão dos outros, porque seu ser é ser-com. Como todo compreender, esse compreender não é um conhecer nascido de uma tomada de conhecimento. É um modo de ser originariamente existencial que só então torna possível conhecer e tomada de conhecimento. Este conhecer-se está fundado no ser-com que compreende originariamente. Ele se move, de início, segundo o modo de ser mais imediato do ser-no-mundo que é com, no conhecer compreensivo do que a presença [Dasein] encontra e do que ela se ocupa na circunvisão do mundo circundante. A partir da ocupação e do que nela se compreende é que se pode entender a ocupação da preocupação. O outro se descobre, assim, antes de tudo, na preocupação das ocupações. STMSC: §26

Do ponto de vista ontológico, o ser para os outros é diferente do ser para coisas simplesmente dadas. O “outro” ente possui, ele mesmo, o modo de ser da presença [Dasein]. No ser-com e para os outros, subsiste, portanto, uma relação ontológica entre presenças. Essa relação, pode-se dizer, já é cada vez constitutiva da própria presença [Dasein], a qual possui por si mesma uma COMPREENSÃO DE SER e, assim, relaciona-se com a presença [Dasein]. A relação ontológica com os outros torna-se, pois, projeção do próprio ser para si mesmo “num outro”. O outro é um duplo de si mesmo. STMSC: §26

A abertura do pre [das Da] da presença [Dasein] no compreender é ela mesma um modo do poder-ser da presença [Dasein]. A abertura do ser em geral {CH: como ela está aí e o que significa ser?} consiste na projeção do ser da presença [Dasein] para o em virtude de e para a significância (mundo). No projetar de possibilidades já se antecipou uma COMPREENSÃO DE SER. Ser é compreendido {CH: não significa, porém, que o ser “seja” por graça do projeto} no projeto e não concebido ontologicamente. O ente que possui o modo de ser do projeto essencial de ser-no-mundo tem a COMPREENSÃO DE SER como um constitutivo de seu ser. O que anteriormente foi suposto de forma dogmática recebe agora sua demonstração a partir da constituição de ser em que a presença [Dasein] como um compreender é o seu pre [das Da]. Dentro dos limites dessa investigação, só se poderá alcançar um esclarecimento satisfatório do sentido existencial dessa COMPREENSÃO DE SER com base na interpretação temporânea de ser. STMSC: §31

O “círculo” do compreender pertence a estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da presença [Dasein], enquanto um compreender que interpreta. O ente em que esta em jogo seu próprio {CH: esse “seu próprio ser”, porém, é determinado em si pela COMPREENSÃO DE SER, isto é, por in-sistir na claridade da vigência em que nem a claridade como tal e nem a vigência como tal são temas de representação} ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. Deve-se, no entanto, observar que, se do ponto de vista ontológico, o “círculo” pertence a um modo de ser do que e simplesmente dado, deve-se evitar caracterizar ontologicamente a presença [Dasein] mediante esse fenômeno. STMSC: §32

O fenômeno da cópula mostra até que ponto esta problemática ontológica influi na interpretação do logos e, inversamente, até que ponto o conceito de “juízo” repercute, numa reação curiosa, na problemática ontológica. Este “elo” revela, em primeiro lugar, que já de saída se pressupõe evidente a estrutura sintética, mantendo-a, então, numa função decisiva na interpretação do logos. Entretanto, caso as características formais de “relação” e “ligação” não possam contribuir em nada para o fenômeno da análise do conteúdo estrutural do logos, então o fenômeno da cópula, em última instância, nada tem a ver com elo e ligação. O “é” e sua interpretação, quer se exprima linguisticamente ou se indique nas desinências verbais, só entra no contexto dos problemas da analítica existencial se os enunciados e a COMPREENSÃO DE SER forem em si mesmas possibilidades existenciais da própria presença [Dasein]. A elaboração da questão do ser (cf. parte I, seção III) vai encontrar-se, pois, novamente, dentro do logos com esse fenômeno ontológico característico. STMSC: §33

Como já se indicou na análise anterior, o fenômeno da comunicação deve ser compreendido num sentido ontologicamente amplo. A “comunicação” de enunciados, por exemplo, a reportagem, é um caso especial de comunicação, apreendida fundamentalmente como existencial. Nela se constitui a articulação da convivência que compreende. É ela que cumpre a “partilha” da disposição comum e da compreensão do ser-com. Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A co-presença [Dasein] já se revelou essencialmente na disposição e compreender comuns. O ser-com é partilhado “expressamente” na fala. Isso significa: o ser-com já é, só que ainda não partilhado porque não apreendido e apropriado. STMSC: §34

A expressão “falação” não deve ser tomada aqui em sentido pejorativo. Terminologicamente significa um fenômeno positivo que constitui o modo de ser do compreender e da interpretação da presença [Dasein] cotidiana. A fala, na maior parte das vezes, se pronuncia e já sempre se pronunciou. É linguagem. Ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão. Como um pronunciamento, a linguagem guarda em si uma interpretação da compreensão de presença [Dasein]. Assim como a linguagem, também essa interpretação não é algo simplesmente dado, mas o seu ser contém em si o modo de ser de presença [Dasein]. Dentro de certos limites e imediatamente, a presença [Dasein] está entregue à interpretação, na medida em que essa regula e distribui as possibilidades do compreender mediano e de sua disposição. Na totalidade de suas articulações de significado, o pronunciamento preserva um compreender do mundo que se abriu e, de maneira igualmente originária, um compreender da co-presença [Dasein] dos outros e do próprio ser-em. A compreensão que, assim, já se acha inserida no pronunciar-se refere-se tanto à descoberta já estabelecida e herdada dos entes como a cada COMPREENSÃO DE SER e às possibilidades e horizontes disponíveis para novas interpretações e novas articulações conceituais. Muito mais do que uma simples indicação do fato dessas interpretações da presença [Dasein], cabe agora questionar o modo de ser existencial da fala que se pronuncia e já se pronunciou. Se o modo de ser da fala não pode ser concebido como algo simplesmente dado, qual é então o seu ser e o que diz, em princípio, sobre o modo de ser cotidiano da presença [Dasein]? STMSC: §35

Pertence à estrutura ontológica da presença [Dasein] uma COMPREENSÃO DE SER. É sendo que a presença [Dasein] está aberta para si mesma em seu ser. A disposição e o compreender constituem o modo de ser dessa abertura. Existiria, pois, uma disposição compreensiva na presença [Dasein] em que ela estaria aberta para si mesma de modo privilegiado? STMSC: §39

Todo ente é independente de experiência, conhecimento e apreensão através do que ele se abre, descobre e determina. O ser, no entanto, apenas “é” no compreender {CH: mas esse compreender como escuta. Isso, no entanto, nunca significa que “ser” seja apenas “subjetivo” e sim ser (como ser dos entes) como diferença “na” presença [Dasein] enquanto ela é um projetar-se (do projeto)} dos entes a cujo ser pertence a uma COMPREENSÃO DE SER. O ser, portanto, pode não ser concebido, embora jamais seja inteiramente incompreendido. Na problemática ontológica, ser e verdade foram, desde a antiguidade, correlacionados, embora suas razões originárias permaneçam talvez encobertas. Nisso se comprova o nexo necessário entre ser e compreensão {CH: portanto: ser e presença [Dasein]}. A fim de se preparar de modo suficiente a questão do ser, é preciso, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o fenômeno da verdade. De imediato, esse esclarecimento se faz com base no que se obteve através da interpretação precedente dos fenômenos de abertura e descoberta, interpretação e enunciado. STMSC: §39

Devemos refletir, portanto: nesse testemunho, a presença [Dasein] pronuncia-se sobre si mesma de “modo originário”, não se determinando por interpretações teóricas e nem aspirando a isso. Ademais, deve-se observar que o ser da presença [Dasein] se caracteriza pela historicidade que, de todo modo, só deve ser comprovada ontologicamente. Se, com base em seu ser, a presença [Dasein] é “histórica”, então um enunciado oriundo de sua história e que a ela remete, sendo anterior a toda ciência, possui um peso particular, embora, sem dúvida, não seja um peso puramente ontológico. A COMPREENSÃO DE SER que se encontra na própria presença [Dasein] pronuncia-se pré-ontológicamente. No testemunho a seguir, deve-se evidenciar que a interpretação ontológica não é uma invenção. Como “construção” ontológica, ela possui o seu solo e, com este, os seus delineamentos elementares. STMSC: §42

A questão sobre o sentido de ser só é possível quando se dá uma COMPREENSÃO DE SER. A COMPREENSÃO DE SER pertence ao modo de ser deste ente que denominamos presença [Dasein]. Quanto mais originária e adequadamente se conseguir explicar esse ente, maior a segurança do alcance na caminhada rumo à elaboração do problema ontológico fundamental. STMSC: §43

No cumprimento das tarefas preparatórias da analítica existencial da presença [Dasein] surgiu a interpretação do compreender, do sentido e da interpretação. A análise da abertura da presença [Dasein] mostrou, além disso, que, nessa abertura e de acordo com a sua constituição fundamental de ser-no-mundo, a presença [Dasein] desvela-se, de modo igualmente originário, no tocante ao mundo, ao ser-em e ao ser-si-mesmo. Na abertura fática do mundo descobre-se ainda também o ente intramundano. Isso significa: o ser desse ente já é sempre de certo modo conhecido, embora não concebido ontologicamente de maneira adequada. A compreensão pré-ontológica de ser abrange, de certo, todo ente que se abriu na presença [Dasein] de modo essencial, apesar da COMPREENSÃO DE SER em si mesma ainda não conseguir se articular no mesmo grau com os diferentes modos de ser. STMSC: §43

A interpretação do compreender mostrou, ao mesmo tempo, que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela já se colocou na compreensão de “mundo”, segundo o modo de ser da decadência. Mesmo onde não se trata somente de uma experiência ôntica e sim de uma compreensão ontológica, a interpretação de ser orienta-se, de início, pelo ser dos entes intramundanos {CH: aqui deve-se separar: physis, idea, ousia, substantia, res, objetividade, ser simplesmente dado}. Com isso, salta-se por cima do ser do que, imediatamente, está à mão, concebendo-se primordialmente o ente como um conjunto de coisas simplesmente dadas (res). O ser recebe o sentido de realidade {CH: “realidade” como “atividade” e realitas como “coisidade”; posição intermediária do conceito kantiano de “realidade objetiva”}. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. De acordo com este deslocamento da COMPREENSÃO DE SER, a compreensão ontológica da presença [Dasein] volta-se para o horizonte desse conceito de ser. A presença [Dasein], assim como qualquer outro ente, é um real simplesmente dado. Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em consequência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica. Tal primazia obstrui o caminho para uma analítica da presença [Dasein] genuinamente existencial, turvando inclusive a visualização do ser dos entes intramundanos imediatamente à mão e forçando, por fim, a problemática de ser a tomar uma direção desviante. Os demais modos de ser determinam-se então de maneira negativa e privativa com referência à realidade. STMSC: §43

Com relação ao realismo, o idealismo possui uma primazia fundamental, por mais oposto {CH: a saber, à experiência ontológico-existencial} e insustentável que seja no que respeita aos resultados, desde que ele próprio não se compreenda equivocadamente como idealismo “psicológico”. Quando o idealismo acentua que ser e realidade apenas se dão “na consciência” (Bewusstsein), exprime, com isso, a compreensão de que o ser não deve ser esclarecido pelo ente. Como, porém, não se esclarece que aqui se dá uma COMPREENSÃO DE SER e o que diz ontologicamente essa compreensão, isto é, que ela pertence {CH: a presença [Dasein], porém, (pertence) à essência do ser como tal} à constituição de ser da presença [Dasein] e como ela é possível, o idealismo constrói no vazio a interpretação da realidade. Que não se pode esclarecer o ser pelo ente e que a realidade só é possível numa compreensão ontológica, isso não dispensa um questionamento do ser da consciência (Bewusstsein), da própria res cogitans. Como consequência à tese idealista, a própria análise ontológica da consciência (Bewusstsein) é pressignada como uma tarefa preliminarmente inevitável. Somente porque o ser é “na consciência” (Bewusstsein), ou seja, é compreensível na presença [Dasein], a presença [Dasein] pode compreender caracteres ontológicos como independência, “em si”, realidade em geral, e conceituá-los. Apenas por isso o ente “independente” pode fazer-se acessível como algo intramundano, que vem ao encontro na circunvisão. STMSC: §43

De fato, apenas enquanto a presença [Dasein] é, ou seja, a possibilidade ôntica de COMPREENSÃO DE SER, “dá-se” ser. Se a presença [Dasein] não existe, também nem “independência”, nem “em si” podem “ser”. Eles não seriam nem compreensíveis, nem incompreensíveis. O ente intramundano também não poderia ser descoberto nem permanecer oculto. Então nem se poderia dizer que o ente é ou não é. Agora pode-se realmente dizer que, enquanto houver COMPREENSÃO DE SER e com isso COMPREENSÃO DO SER simplesmente dado, então o ente prosseguirá a ser. STMSC: §43

A dependência caracterizada, não dos entes, mas do ser em relação à COMPREENSÃO DE SER, isto é, a dependência da realidade e não do real em relação à cura, assegura que a analítica da presença [Dasein] possa prosseguir sem resvalar numa interpretação não crítica que, guiada pela ideia de realidade, sempre de novo tenta se impor. Somente a orientação pela existencialidade, interpretada ontologicamente de modo positivo, pode garantir que, no decorrer da análise da “consciência” (Bewusstsein) e da “vida”, não se tome por base nenhum sentido indiferente de realidade. STMSC: §43

Que não se possa conceber o ente, dotado do modo de ser da presença [Dasein], a partir de realidade e substancialidade, isso exprimimos com a seguinte tese: a substância do homem é a existência. A interpretação da existencialidade como cura e a sua delimitação frente à realidade não significam, porém, o fim da analítica existencial. Ao contrário, permitem apenas que os imbricamentos problemáticos com a questão do ser e seus possíveis modos, assim como o sentido de tais modificações, possam emergir de maneira ainda mais aguda: o ente como ente só é acessível se uma COMPREENSÃO DE SER se dá; a COMPREENSÃO DE SER como ente só é possível se o ente possui o modo de ser da presença [Dasein]. STMSC: §43

Se verdade encontra-se, justificadamente, num nexo originário com o ser, então o fenômeno da verdade remete ao âmbito {CH: não apenas, mas no meio} da problemática ontológica fundamental. Desse modo, já não se deveria encontrar esse fenômeno no seio da análise fundamental preparatória, na analítica da presença [Dasein]? Que nexo ôntico-ontológico a “verdade” estabelece com a presença [Dasein] e com sua determinação ôntica, que chamamos de COMPREENSÃO DE SER? Será que tomando isso por base poder-se-ia mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo por que ser correlaciona-se necessariamente com verdade e vice-versa? STMSC: §44

O que, porém, no ordenamento dos contextos de fundação ontológico-existenciais ocupa o último lugar é o que, onticamente, vem em primeiro lugar e aparece antes de tudo. Quanto à sua necessidade, esse fato funda-se no modo de ser da própria presença [Dasein]. Ao empenhar-se na ocupação, a presença [Dasein] se compreende a partir do que vem ao encontro dentro do mundo. A descoberta inerente ao descobrimento se acha, inicialmente, no que se pronuncia dentro do mundo. Contudo, não apenas a verdade é encontrada como algo simplesmente dado. Também a COMPREENSÃO DE SER compreende, de início, todo ente como algo simplesmente dado. A mais próxima reflexão ontológica sobre a “verdade” que, de imediato, vem ao encontro onticamente, compreende o logos (enunciado) como logos tinos (enunciado sobre…, descoberta de…) e interpreta o fenômeno como algo simplesmente dado em sua possibilidade de ser simplesmente dado. Porque, no entanto, essa possibilidade é identificada com o sentido do ser em geral, a questão se esse modo de ser da verdade e sua estrutura que, de imediato, vêm ao encontro são originários ou não, não pode tornar-se viva. A própria COMPREENSÃO DE SER da presença [Dasein] que, de início, predomina e que, ainda hoje, não foi superada em seus fundamentos e explicitação, encobre o fenômeno originário da verdade. STMSC: §44

O ser da verdade encontra-se num nexo originário com a presença [Dasein]. E somente porque a presença [Dasein] é, enquanto o que se constitui pela abertura, ou seja, pelo compreender, é que se pode compreender ser, e uma COMPREENSÃO DE SER torna-se possível. STMSC: §44

O ser – e não o ente – só “se dá” porque a verdade é. Ela só é à medida e enquanto a presença [Dasein] é. Ser e verdade “são”, de modo igualmente originários. Só se pode questionar concretamente o que significa dizer o ser “é” e de onde ele deve {CH: diferença ontológica} se distinguir de todos os entes, caso se esclareça o sentido de ser e a envergadura da COMPREENSÃO DE SER. Só então pode-se discutir originariamente o que pertence ao conceito de uma ciência do ser como tal, de suas possibilidades e derivações. E na delimitação dessa investigação e de sua verdade é que se pode determinar ontologicamente a investigação como descoberta dos entes e de sua verdade. STMSC: §44

A resposta à questão do sentido do ser ainda precisa ser conquistada. Mas o que a análise fundamental da presença [Dasein], desenvolvida até aqui, preparou para a elaboração dessa questão? Mediante a liberação do fenômeno da cura, esclareceu-se a constituição de ser dos entes a cujo ser pertence uma COMPREENSÃO DE SER. O ser da presença [Dasein] foi, com isso, delimitado frente aos modos de ser (manualidade, ser simplesmente dado, realidade) que caracterizam os entes não dotados do caráter de presença [Dasein]. Elucidou-se o próprio compreender, garantindo-se, pois, a transparência metodológica do procedimento de compreensão e interpretação do ser. STMSC: §44

Se, com a cura, obteve-se a constituição de ser originária da presença [Dasein], então, sobre essa base, também se pode produzir o conceito da COMPREENSÃO DE SER subsistente na cura, ou seja, deve-se poder circunscrever o sentido do ser. Mas será que com o fenômeno da cura é e está aberta a constituição ontológico-existencial mais originária da presença [Dasein]? Será que a multiplicidade estrutural, que se encontra no fenômeno da cura, oferece a totalidade mais originária do ser da presença [Dasein] fática? Será que a investigação feita até aqui já permitiu ver o todo da presença [Dasein]? STMSC: §44

O que se busca é responder à questão do sentido do ser em geral e, antes disso, a possibilidade de elaborar radicalmente essa questão fundamental {CH: pela qual, porém, a “ontologia” também se transforma (cf. Kant e o problema da metafísica, seção IV)} de toda ontologia. Liberar o horizonte em que o ser em geral é, de início, compreensível equivale, no entanto, a esclarecer a possibilidade da COMPREENSÃO DO SER em geral, pertencente à constituição desse ente que chamamos de presença [Dasein]. Como momento de ser essencial da presença [Dasein], a COMPREENSÃO DE SER só se deixa esclarecer radicalmente caso o ente que a possua seja interpretado originariamente na perspectiva de seu ser. STMSC: §45

O esclarecimento da origem do “tempo”, “no qual” entes intramundanos vêm ao encontro, do tempo como intratemporalidade, revela uma possibilidade essencial de temporalização da temporalidade. Com isso, prepara-se a compreensão de uma temporalização ainda mais originária da temporalidade. Nela funda-se a COMPREENSÃO DE SER constitutiva do ser da presença [Dasein]. O projeto de um sentido do ser em geral pode cumprir-se {CH: vigência (advento e acontecimento)} no horizonte do tempo. STMSC: §45

O com a caracterização da originariedade das ideias de uma “má” a e “boa” consciência já se decidiu também acerca da distinção entre uma consciência que censura retroativamente e adverte previamente. Na verdade, a ideia da consciência que adverte parece ser a que mais se aproxima do fenômeno do fazer apelo… Com esta, ela tem a em comum o caráter de referência prévia. No entanto, essa concordância não passa de aparência. A experiência de uma consciência que adverte só vê a voz orientada para o ato da vontade, frente ao qual ela deve resguardar-se. Enquanto interdição do que se quer, a advertência só é possível porque o apelo “que adverte” almeja o poder-ser da presença [Dasein], ou seja, a COMPREENSÃO DO SER e estar em dívida aonde “o que se quer” pode romper-se. A consciência que adverte tem a função de regulamentar, momentaneamente, o ficar livre de culpabilizações. A experiência de uma consciência “que adverte” apenas revê a tendência de apelo da consciência, quando ela permanece nos limites da compreensibilidade do impessoal. STMSC: §59

Ao elaborar a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio, esta investigação se vê capacitada para delimitar o sentido ontológico do poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein]. Propriedade da presença [Dasein] agora não é mais uma expressão vazia e nem uma ideia inventada. Todavia, mesmo assim, o ser-para-a-morte próprio enquanto poder-ser todo de modo próprio, existencialmente deduzido, permanece um projeto puramente existencial, que ainda necessita de um testemunho da presença [Dasein]. Somente encontrando esse testemunho a investigação poderá satisfazer a demonstração, exigida por sua problemática, de um poder-ser todo da presença [Dasein] em sentido próprio, confirmado e esclarecido existencialmente. Pois só quando esse ente se tornar fenomenalmente acessível em sua propriedade e totalidade é que a questão do sentido ontológico desse ente, a cuja existência pertence toda e qualquer COMPREENSÃO DE SER, poderá alcançar um solo resistente. STMSC: §60

A compreensão do apelo da consciência desvela a perdição no impessoal. A decisão recupera a presença [Dasein] para o seu poder-ser si-mesma. mais próprio. É na compreensão do ser-para-a-morte enquanto possibilidade mais própria que o poder-ser próprio torna-se totalmente transparente em sua propriedade. STMSC: §62

Mas não será apenas elaborando-se a COMPREENSÃO DE SER constitutiva da presença [Dasein] que se poderá obter um esclarecimento ontológico da ideia de ser? Esta ideia, no entanto, só pode ser originariamente apreendida com base numa interpretação originária da presença [Dasein] feita pela ideia de existência. Por fim não se manifesta inteiramente que a elaboração ontológico-fundamental do problema se move num “círculo”? STMSC: §63

Sem dúvida, já na análise da estrutura do compreender mostrou-se que a deficiência constatada na expressão inadequada de “círculo” pertence à essência e à especificidade do próprio compreender. No entanto, a investigação deve retomar agora, explicitamente, o “argumento do círculo”, no tocante ao esclarecimento da situação hermenêutica da problemática ontológico-fundamental. A “objeção do círculo”, levantada contra a interpretação existencial, quer dizer: a ideia de existência e a ideia de ser são “pressupostas” e “segundo elas” interpreta-se a presença [Dasein] para então se conquistar a ideia de ser. Mas o que significa “pressupor”? Será que com a ideia de existência se estabelece, de início, uma sentença a partir da qual se deduz, mediante regras formais de consequência, outras sentenças sobre o ser da presença [Dasein]? Ou será que esse pré-supor possui o caráter de um projeto que compreende? Nesse caso, a interpretação formada no compreender daria a palavra ao que se deve interpretar para que ele mesmo decida como este ente fornece a constituição de ser, em virtude da qual se abriu no projeto de maneira formalmente indicativa? Será que no que concerne a seu ser, algum ente pode vir à palavra de outra maneira? Na comprovação de alguma coisa, a analítica existencial jamais pode “evitar” um “círculo” porque ela não faz, de modo algum, comprovações segundo as regras da “lógica de consequência”. Para pretensamente satisfazer o máximo rigor de uma investigação científica e evitar o “círculo”, a compreensibilidade coloca de lado nada menos do que a estrutura fundamental da cura. Originariamente constituída pela cura, a presença [Dasein] já sempre antecede-a-si-mesma. Sendo, ela sempre já se projetou para determinadas possibilidades de sua existência, projetando também, de forma pré-ontológica nesses projetos existenciários, a existência e o ser. Pode-se então recusar esse projetar-se essencial da presença [Dasein] à pesquisa que, sendo, como toda pesquisa, um modo de ser da abertura da presença [Dasein], quer elaborar e conceituar a COMPREENSÃO DE SER constitutiva da existência? STMSC: §63

A própria “objeção do círculo”, contudo, provém de um modo de ser da presença [Dasein]. A compreensibilidade do empenho impessoal nas ocupações permanece, necessariamente, estranha a toda espécie de projeto, sobretudo de um projeto ontológico, porque ela, “em princípio”, se fecha para ele. Quer “teórica”, quer “praticamente”, a compreensibilidade só se ocupa dos entes passíveis de serem supervisionados pela circunvisão. O distintivo da compreensibilidade reside em pretender fazer somente a experiência “fatual” de A um ente para poder esquivar-se a uma COMPREENSÃO DO SER. Ela desconhece que mesmo para se fazer a experiência “fatual” de um ente é preciso já se ter compreendido o ser, não obstante sem conceituá-lo. A compreensibilidade não compreende o compreender. E por isso ela também precisa, necessariamente, dar como “violento” a tanto o que está além de seu âmbito de compreensão como o próprio estar além. STMSC: §63

A análise da decisão antecipadora conduziu, ao mesmo tempo, para o fenômeno da verdade originária e própria. Já se mostrou como a compreensão ontológica, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes predominante, concebe o ser no sentido de algo simplesmente dado, encobrindo, dessa forma, o fenômeno originário da verdade. Se, no entanto, ser somente “se dá” na medida em que a verdade “é”, e a COMPREENSÃO DE SER sempre se modifica segundo o modo da verdade, então a verdade originária e própria deve garantir a compreensão de presença [Dasein] e de ser em geral. A “verdade” ontológica da análise existencial forma-se com base na verdade existenciária originária. No entanto, esta não precisa necessariamente daquela. A verdade mais originária, existencial e básica para a qual se encaminha a problemática de uma ontologia fundamental – preparando a questão do ser em geral – é a abertura do sentido ontológico da cura. Assim, para se liberar esse sentido, é preciso aprontar integralmente o conteúdo estrutural da cura. STMSC: §63

Rigorosamente, sentido significa a perspectiva do projeto primordial de um compreender ser. Com o ser deste ente que ele mesmo é, o ser-no-mundo compreende o ser dos entes intramundanos, de maneira igualmente originária, embora não temática e até indiferenciada, em seus modos primários de existência e realidade. Toda experiência ôntica de um ente, tanto a avaliação do que está à mão a numa circunvisão como o conhecimento científico de algo simplesmente dado, está sempre fundada em projetos mais ou menos transparentes do ser do respectivo ente. Mas estes projetos guardam em si uma perspectiva da qual se alimenta, por assim dizer, a COMPREENSÃO DE SER. STMSC: §65

Por que, na fala modificada, aquilo sobre o que se fala, no caso o martelo pesado, se mostra diferentemente? Isto não se deve nem a um afastamento do manuseio e nem a uma mera ofesconsideração do caráter instrumental deste ente, mas sim a uma “nova” reconsideração do manual que vem ao encontro como algo simplesmente dado. A COMPREENSÃO DE SER, que orienta o modo de lidar na ocupação com o ente intramundano, transformou-se. Mas será que uma atitude científica já se constitui por se “conceber” como simplesmente dado algo que, numa reflexão guiada pela circunvisão, está à mão? Ademais, um manual pode também converter-se em tema de investigação e determinação científicas como, por exemplo, a pesquisa de um mundo circundante, do ambiente dentro de uma biografia histórica. O nexo instrumental à mão todos os dias, sua origem histórica, sua valorização e seu papel fático na presença [Dasein], faz-se objeto da economia como ciência. Para poder tornar-se “objeto” de uma ciência, o que está à mão não precisa perder o seu caráter instrumental. A modificação da COMPREENSÃO DE SER não parece ser um constitutivo necessário da gênese da atitude teórica “frente às coisas”. Certamente, caso modificação signifique: troca do modo de ser deste ente que aí se encontra tal como o compreender o compreende. STMSC: §69

Visando a uma primeira caracterização da gênese da atitude teórica a partir da circunvisão, estabelecemos como base um modo de apreensão teórica dos entes intramundanos, a saber, a natureza física, em que a modificação da COMPREENSÃO DE SER equivale a uma transformação. No enunciado “físico”: “o martelo é pesado”, não apenas se deixa de ver o caráter de ferramenta deste ente que vem ao encontro, mas também o que pertence a todo instrumento à mão, a saber, o seu lugar. Este se torna indiferente. Não que o ente simplesmente dado perca o seu “local”. O lugar transforma-se em posição no espaço e no tempo, em um “ponto do mundo”, que não se distingue de nenhum outro. Isto implica que a multiplicidade de lugares delimitados no mundo circundante, própria do instrumento à mão, não se transforma apenas em puro sistema de posições, mas sim que se aboliram os limites do próprio ente do mundo circundante. Torna-se tema o universo dos seres simplesmente dados. STMSC: §69