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A primeira das duas discussões em Santa Cruz foi aquela em que Hubert Dreyfus apresentou “A origem da obra de arte” de Heidegger, advertindo de saída que aquilo que Heidegger chama obra de arte (“deixar a verdade acontecer”, segundo ele) não é encontrável em tudo o que chamamos obras de arte e, além disso, pode ser encontrado em coisas que não chamamos obras de arte. (Embora isso seja obscuro, vale a pena prosseguir um pouco com o pensamento nesse sentido dada sua oposição ao que é, acredito eu, a atual visão reinante (10) — entre filósofos? entre críticos? — de que tudo e qualquer coisa e nada além do que alguma “comunidade” chame — ou institucionalize como — arte — ou “obra de arte”— seja arte.) Dreyfus mencionou, entre outros pontos, que para Heidegger os pensadores também fazem o trabalho de deixar a verdade acontecer. Numa intervenção, eu disse que alguma coisa desse tipo em minha leitura de Emerson me sugerira um encadeamento de perguntas: Isso significa que arte e filosofia (e o que quer mais que execute esse “trabalho”) seriam agora idênticas? Então Heidegger está propondo que o destino da filosofia esteja ligado (agora? novamente?) ao destino da arte? E a nossa relação com Heidegger, é (ou deve ser) a mesma que temos com a arte? Como devemos compreender um (este) trabalho à medida que é realizado nesse texto (de Heidegger)? O trabalho de seu texto diz e/ou mostra que em sua obra é a da filosofia e/ou da arte? Heidegger não é consistentemente cuidadoso em negar que a poesia e a filosofia são idênticas? (Ele preocupa-se em negar que religião e filosofia sejam a mesma coisa, presumivelmente considerando que a filosofia é incapaz de reconhecer a religião — do modo como essa opera — como algo que propicia o aparecimento da verdade, digamos, por autoridade ou revelação. Então, a filosofia pode reconhecer o trabalho da política — e em que medida definimos a maldição de Heidegger ao dizer que ele assim percebeu a política — como propiciadora do aparecimento da verdade?)
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Perguntei anteriormente se e como devemos ver “A origem da obra de arte” de Heidegger como um apelo pela inclusão de seu próprio texto entre as obras que invoca enquanto realizadoras do trabalho da arte, ou seja, deixando, nelas, a verdade acontecer. “Deixar a verdade acontecer”, presumivelmente, não é apenas um modo malicioso de descrever justamente as coisas que os universitários devem (são obrigados a?) fazer, falar a verdade e defendê-la. É algo mais? (O saber será algo mais do que justificar como verdadeiras as próprias crenças?) Os professores, em geral, não precisam nem desejam sempre negar, como Heidegger, que um certo fervor ou pathos que reconhecem em seus textos deve ser entendido como expressão de juízo moral ou aspiração religiosa. Perguntamos: Qual é a socialidade ou genialidade^ do texto de Heidegger? (Utilizo estas palavras do Atheneaum para enfatizar a continuidade entre as ideias de Heidegger sobre trabalho e poiesis e as do Athenaeum. Por outro lado, já de volta a Boston, posso mostrar que avancei um pouco em L’absolu littéraire, embora ainda sofrendo daquilo que parece ser uma procrastinação do conhecimento e que parece requerer de misteriosas permissões de conhecer.)
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Sobre o fervor, ou pathos, de Heidegger, chamo a atenção apenas para o trabalho que ele associa aos nomes de dois filósofos, Parmênides e Heráclito. Parmênides é aludido na pergunta de Heidegger (na seção intitulada “A coisa e a obra”): “O que parece mais fácil do que deixar uma entidade ser apenas a entidade que é?” (Isto é, suponho que essa pergunta contenha uma versão antiga de palavras que Heidegger atribui a Parmênides e que desenvolverá nos últimos capítulos de O que se chama pensar? — “deixar estar diante de nós” — frase que justaponho, na palestra “Declinando do declínio”, àquela de Wittgenstein, “deixar tudo como é” (p. 49).) A insinuação da pergunta de Heidegger “O que parece mais fácil (…)?” é que nós estamos num estado de parecer e de facilidade, e que fazer parte da sociedade desse escritor, sermos gerados por ele, significa reconhecermos a nós mesmos enquanto tal. Suponho que isso seja uma alusão à questão, em Ser e tempo, de nossa mediocridade e inautenticidade. (19) O tema está proposto já nas páginas iniciais de seu trabalho sobre a origem da obra de arte onde, fazendo uma pausa “em nossa tentativa de delimitar entidades que têm o modo de ser de uma coisa, em contraste àquelas que têm o modo de ser de uma obra”, Heidegger observa, exatamente como se fosse um ponto óbvio de nossa nomenclatura, “Um homem não é uma coisa”. Não será nossa tarefa, aqui, considerar que essa obra de Heidegger, diferentemente de Ser e tempo, de uma década antes, está pedindo a si mesma uma interpretação do modo de ser de “um homem”, do humano? No entanto, ao incluir entre os trabalhos que realizam o trabalho “da arte”, “A origem…” declara-se como obra humana, para ocupar seu lugar em relação à fala humana. Devemos supor que, para Heidegger, o efeito dessas obras sobre nós é precisamente o de uma revelação — a revelação de nossa humanidade. Então será assim que “A origem…” declara sua diferença em relação a Ser e tempo — como se estivesse realizando aquilo que, em Ser e tempo, é apenas teorizado? (Para prosseguir nessa questão, teríamos que saber onde buscar a fonte, em Ser e tempo, de seu próprio fervor — uma questão recorrente, em meu pensamento, ao tentar localizar, em “Declinando do declínio”, a fonte do fervor de Investigações filosóficas. Na profundidade desse problema (o qual, no entanto, pode ser descartado) que emerge na leitura tanto de Heidegger como de Wittgenstein, talvez resida, em minha opinião, o ponto da mais íntima afinidade entre os dois.)
Ao afirmar a necessidade “de visualizar, de uma nova forma, o advento da verdade na obra”, Heidegger “deliberadamente escolhe uma obra que não pode ser atribuída à arte representacional… um templo grego”. E ele diz: “O templo, permanecendo ali, dá em primeiro lugar às coisas a aparência delas e, aos homens, a visão de si mesmos”. Assim, além de sermos seres para quem as coisas podem “parecer fáceis” (algo que não corresponde ao ser das coisas, as quais entretanto têm suas (respectivas) aparências, suas “faces visíveis”), somos seres “de visão”, de projetos, temos coisas em vista — em suma, somos seres que temos o que pensar, “matéria” diferente da matéria inerte; seres, insisto, para quem as coisas e os seres contam. (“O que importa” é o tópico de minha segunda “Carus Lectures”, que enfoca a exposição de Kripke sobre o tópico das regras em Wittgenstein, um assunto abordado na primeira das minhas presentes palestras (pp. 53-4). Que o trabalho de “As origens…” seja uma contribuição ao trabalho de (auto-) interpretação do ser do humano confirma-se ao final do parágrafo sobre o templo, com sua referência ao Fragmento 53 de Heráclito: (20)
Na tragédia nada é representado ou produzido, mas se trava a batalha dos novos deuses contra os velhos. [O sentido da primeira oração nesta tradução (inglesa) me escapa. Prefiro retraduzir auf- e vorfuhren desta forma: “Na tragédia nada é erigido ou demonstrado” — ou seja, em contraste com o templo e em contraste com outras obras linguísticas.] Enquanto a obra linguística tem sua origem no discurso do povo, a tragédia não fala sobre esta batalha, mas transforma o discurso das pessoas de tal forma que agora cada palavra essencial leva adiante a batalha, e decide sobre o sagrado e o profano, o grande e o pequeno, o corajoso e o covarde, o nobre e o baixo, o senhor e o escravo.
Aqui há instâncias suficientes para que uma “obra linguística” adquira fervor — no mínimo, moral. Mas aceitaremos que na obra de Heidegger “cada palavra essencial leva adiante a batalha?” Sabemos quais são as palavras nela assinaladas como essenciais? São aquelas com uma história filosófica estampada em sua face? (A ideia de que a obra filosófica requer uma transfiguração de “cada palavra” está presente em “Self-reliance” de Emerson: “Cada palavra que eles dizem nos aflige”. A mesma ideia está ainda em pauta na segunda dessas palestras e é um tema que perpassa a primeira das minhas “Carus Lectures”.) Podemos nos considerar como parte da socialidade ou congenialidade do texto de Heidegger se não soubermos que nossas palavras (que certa vez fizeram parte do “discurso do povo”) encontram-se agora transformadas? Qual é a prova desse conhecimento? Em que palavras poderei expressá-lo? Ou, em que relação (transformada) com as minhas palavras? Será que alguma aspiração ou motivação (“fervor”) contraída desse texto de Heidegger contaria corno uma aspiração ou motivação para o trabalho da filosofia, se não produzirmos respostas a tais questões? O que constitui o “ensinamento” desse trabalho?