Casanova (2014) – interpretação

(Casanova2014)

Em nossas compreensões medianas, tendemos a pensar que o horizonte de realização da interpretação já se encontra desde o princípio dado nos textos e que a tarefa da interpretação poderia ser, com isso, reduzida ao movimento atento de acompanhamento da relação causal entre as diversas proposições aí existentes com vistas à apreensão do sentido nelas contido. Essa posição usual pode ser até certo ponto problematizada, na medida em que se afirma o caráter incontornável da interferência subjetiva no processo interpretativo e em que se procura descobrir então no próprio sujeito da interpretação critérios válidos para a constituição de uma lida objetiva com os textos e com os estados de coisa teóricos em geral. Interpretar um texto passa a ser, nesse caso, obedecer aos procedimentos fundados na racionalidade subjetiva e em seu modo de conduzir a análise das conexões entre objetos. Todavia, tanto a nossa postura usual quanto a sua problematização subjetiva passam ao largo do conteúdo próprio ao horizonte em jogo em uma verdadeira confrontação. É isso que podemos perceber claramente a partir de uma reflexão um pouco mais incisiva. Quando abrimos um texto, nunca estamos completamente livres de toda e qualquer pressuposição, de modo que possamos nos entregar de peito aberto à atividade de recolher o sentido das palavras, das frases, do todo. Ao contrário, já sempre nos movimentamos a partir de uma compreensão prévia que abre inicialmente o campo para o transcurso normal da atividade da leitura, já sempre nos orientamos por uma perspectiva prévia que recorta o campo dado de antemão e propicia a constituição de um caminho particular, e já sempre trazemos conosco, além disso, uma série de conceitos previamente definidos com os quais operamos normalmente de maneira irrefletida. Sem essas estruturas prévias, não poderíamos sequer nos aproximar de um livro, e a leitura nunca chegaria efetivamente a ter lugar. No entanto, se apesar disso pressupomos a subsistência simplesmente dada do texto e de seu sentido, é porque a semântica sedimentada de nosso mundo fático possui para nós uma concretude tão intensa que dota todos os fenômenos em geral de uma obviedade inconteste. Tal como se encontra formulado de maneira expressa em uma passagem central do parágrafo de Ser e tempo que trata da relação entre compreensão e interpretação: “Interpretação não é nunca a apreensão desprovida de pressupostos de algo previamente dado. Se a concreção particular da interpretação no sentido da exata interpretação textual gosta de recorrer àquilo que ‘se encontra aí presente’, então isso que ‘se encontra’ inicialmente ‘aí presente’ não é outra coisa senão a opinião prévia não discutida e óbvia do intérprete (…).”1 Não passa, em suma, de ingenuidade pensar que uma confrontação possa ocorrer a partir do puro esforço de reconstrução dos significados e dos sentidos de um texto dado. De acordo com um velho princípio hermenêutico, interpretar implica incessantemente ver mais do que aquilo que se acha expresso no texto e mesmo do que aquilo que o próprio autor estava em condições de formular como as suas intenções específicas.2 Mas se não há como descobrir a verdade de uma obra por meio de uma entrega fundamental à própria letra do texto e se toda confrontação interpretativa exige um horizonte específico para a sua realização, então a ideia de um sujeito da interpretação se insere, por assim dizer, naturalmente. Nós mesmos falamos anteriormente sobre perspectivas prévias e sobre o recorte particular que propicia o surgimento de um caminho determinado de leitura. Tudo isso parece apontar necessariamente para a presença de um sujeito da interpretação, que precisa encontrar de algum modo em si mesmo um caminho de superação do fosso que o separa do texto e acessar em um campo de jogo por ele mesmo construído o sentido lógico das proposições, se é que ele deve realmente escapar aí de toda contingência interpretativa. A questão é que a cisão entre subjetividade e objetividade não dá conta de maneira alguma daquilo que realmente interessa nesse caso. Para além da oposição entre uma objetividade em si mesma dada e uma subjetividade regulada por determinados princípios lógicos há o mundo, no qual os sujeitos em geral podem assumir determinados comportamentos e os entes podem vir ao seu encontro como objetos, como utensílios, como instituições sociais, números etc. Esse ponto fica claro a partir de uma consideração mais detida das estruturas prévias vigentes em toda interpretação.

Lembremo-nos rapidamente daquilo que foi dito anteriormente. Nós descrevemos o movimento da interpretação a partir da menção a certas estruturas prévias que transpassam de maneira determinante o próprio modo como a interpretação a cada vez acontece. Quando nos aproximamos de um texto, já sempre trazemos conosco uma compreensão prévia responsável pela abertura do contexto em que a leitura se dá, uma perspectiva prévia responsável pela articulação de um caminho particular em meio à leitura e uma conceitualidade prévia com a qual operamos constantemente durante a leitura. Essas estruturas prévias não subsistem em alguma dimensão inconsciente do sujeito da interpretação, mas se referem muito mais ao mundo fático em que nos encontramos de início e na maioria das vezes jogados. Dito de maneira ainda mais explícita: é o mundo que encerra em si as estruturas prévias que sustentam toda e qualquer possibilidade de interpretação, e as interpretações nunca se mostram a princípio senão como atualizações de sentidos e significações já abertas de algum modo em seu mundo. Antes da constituição dada do texto presente, antes da consciência de si do sujeito da representação e antes mesmo da relação possível entre um sujeito da interpretação e uma obra a ser interpretada há, portanto, a abertura prévia do mundo, a partir da qual todos esses fenômenos se mostram como fenômenos derivados. Bem, mas se toda interpretação já sempre se realiza em sintonia com certas estruturas prévias e se essas estruturas prévias remontam ao mundo fático no qual as respectivas interpretações têm lugar, então é preciso perguntar em que medida esse fato é decisivo para o problema do horizonte da confrontação heideggeriana com o pensamento nietzschiano. A resposta a essa pergunta acha-se presente na própria noção de estruturas prévias da interpretação.

Sempre nos movimentamos a partir de estruturas prévias que viabilizam o acontecimento da interpretação, mas não temos de início e na maioria das vezes nenhuma clareza quanto a isso. A evidência dessas estruturas é tão intensa que elas se veem normalmente obscurecidas em seu modo de ser próprio e são simplesmente tomadas como aquilo que é. Dessa forma, confundem-se em muito com a nossa própria identidade cotidiana e só muito raramente nos damos conta de seu caráter condicionado. Enquanto nos mantemos no interior dessas estruturas prévias sedimentadas, porém, permanecemos cegos para a sua vinculação a um mundo fático específico. Tudo se dá como se as compreensões e interpretações em geral não tivessem nenhuma relação com o mundo dessas compreensões e interpretações e como se elas se confundissem com o conjunto de nossas opiniões pessoais, com nossa visão de mundo. Poderíamos pensar, então, que o que estaria em questão para Heidegger seria chamar a atenção para a necessidade de uma conscientização quanto às estruturas prévias e aos pressupostos que constantemente trazemos conosco. Mas esse não é aqui de maneira alguma o caso. O ato de tomar consciência de nossos pressupostos é ainda muito pouco porque ele se mostra insuficiente para revelar a articulação originária desses pressupostos a um mundo fático determinado. E é exatamente isso que importa aqui: perceber que o mundo é sempre cointérprete em toda interpretação. É o mundo que se constitui como o horizonte a partir do qual toda e qualquer interpretação se realiza e pode se realizar. Diante dessa descoberta, poderíamos concluir e dizer que o horizonte hermenêutico da confrontação heideggeriana com o pensamento de Nietzsche seria dado pelo mundo a partir do qual Heidegger interpreta esse pensamento. Por mais que essa conclusão seja no fundo correta, contudo, ela padece de uma fatal imprecisão. O decisivo para Heidegger não é apenas acentuar a vinculação de toda interpretação ao seu mundo fático e expor por meio daí o mundo como horizonte hermenêutico fundamental. Em última instância, de modo consciente ou não, com total clareza ou com a empáfia das certezas cotidianas, uma mera submissão às estruturas prévias da interpretação sempre acaba por ratificar os sentidos sedimentados do mundo fático e por produzir, com isso, uma repetição do mesmo, uma espécie de déjà-vu. O que interessa a Heidegger é muito mais liberar as possibilidades de estruturação de novos mundos, de novas possibilidades interpretativas, de novos horizontes hermenêuticos. Essa liberação se mostra, no presente contexto, determinante para uma real apreensão da confrontação heideggeriana com Nietzsche.

 

  1. Martin Heidegger, Ser e tempo, p. 150.[↩]
  2. Essa é uma tônica dos trabalhos da hermenêutica heideggeriana e gadameriana, mas já se encontra formulada em Friedrich Schleiermacher.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress