Caron (2005:95-98) – o embate Heidegger e Husserl

destaque

Se a descoberta da fenomenologia foi decisiva para Heidegger, foi sobretudo pelo poder de problematização que ela despertou nele através do apelo único ou palavra de ordem (Ruf) da ausência de pressuposição, isto é, do retorno às próprias questões essenciais (zu den Sachen selbst! Husserl afirmava em 1910-1911), e não pela própria substância das preocupações estritamente husserlianas que fazem depender a ausência de pressuposição da experiência intuitiva: “Die Sachen seihst müssen wir fragen, são as próprias Coisas que devemos interrogar” diz Husserl, mas esta frase é imediatamente acompanhada nele por um corolário que Heidegger nunca deixará de achar incompatível com a exigência desta palavra de ordem, a saber, “Zurück zur Erfahrung, zur Anschauung, retour à l’expérience, à l’intuition”. Para Heidegger, o “princípio dos princípios” de Ideen I (§ 24), ou o princípio da evidência das Meditações cartesianas (§ 5), não se mantêm fiéis à célebre máxima de partida que ordena um regresso aos assuntos próprios do pensamento, e não o estreitamento do assunto do pensamento a uma zona de evidência intuitiva, porque o pensamento é capaz do mistério do ser, que é o obscuro por excelência: “Quanto mais claramente eu via isto, mais premente se tornava a questão: onde e como, de acordo com a palavra de ordem da fenomenologia, é determinado aquilo que deve ser experimentado como a própria questão (die Sache selbst)? É a consciência e a sua objetividade, ou é o ser do ser como desvelamento e velamento?
—-
Heidegger reconhece, portanto, que tem para com Husserl a dívida do acesso a uma questão: aquela — inteiramente renovada pelo esclarecimento das possibilidades próprias da consciência — da relação entre consciência e ser. A falta de uma interrogação ontológica em Husserl (falta reconhecida e reivindicada por ele próprio, que coloca a fenomenologia como ciência do ego transcendental perante a ontologia reduzida ao campo das ontologias regionais que se tornaram dependentes da estrutura egológica, sem que se considere a possibilidade de uma ontologia do ego transcendental ou da própria fenomenologia) é o correlato de uma absolutização do campo da consciência, considerado por Husserl suficiente para servir de fundamento a toda a ciência. Se a consciência é este campo suficiente, o próprio ser é objeto de redução, a questão do ser é posta entre parêntesis pela redução fenomenológica, e a questão da relação da consciência com o puro transcendente que é o ser não se coloca logicamente. Não há ser num regime de redução. Apenas e “infelizmente”, julga Heidegger, se a teoria da consciência transcendental, fundamento de todas as outras ciências, não for rigorosamente estabelecida em todo o seu poder de fundamentação — e como poderia ser se a questão do seu ser, e como poderia ser se a questão do seu ser, que é menos uma exigência epistemológica (da qual poderíamos eventualmente escapar) do que uma insatisfação da consciência em si mesma (da qual não podemos escapar), não pudesse evitar a sua redundância nativa em torno da questão do seu próprio ser — um dualismo de consciência e ser é restabelecido apesar da redução husserliana. Esta última retira o ser da equação para ver o ego intencional constituir o mundo na imanência e evidência das suas próprias experiências; mas — não colocando a questão do ser do ego, uma vez que este ego se tornou principial, uma vez que para Heidegger o ser previsto por Husserl não é considerado de outra forma que não o ser, e uma vez que o ego, diferente de qualquer ser, não pode, portanto, colocar a questão do seu ser sem dar a impressão de que confunde a causa com a consequência ou o constituído com o constituinte — esta redução não está imune a um ressurgimento da questão que a colocará: se o ser é um objeto imanente que dá sentido, como é que esse dar sentido não precede a procura de sentido da própria consciência transcendental? Heidegger não deixará de afirmar que Husserl não se interessa pelo problema da consciência constitutiva: “A questão primordial de Husserl não é de modo algum a do carácter de ser da consciência” 1.

Original

  1. GA20, p. 147.[↩][↩]
  2. Cf. in Cahier de l’Herne « Martin Heidegger », les Lettres à Husserl, Annexe I : « La question du mode d’être du constituant lui-même est incontournable ».[↩]
  3. C’est la célèbre maxime de l’article paru dans la revue λόγος en 1911 et repris sous le titre La philosophie comme science rigoureuse (cf. par exemple Husserliana (Hua XXV), p. 305 ou p. 340), mais cette maxime est déjà présente dans l’introduction des Recherches logiques (cf. § 7) avec le Prinzip der Voraussetzunglosigkeit.[↩]
  4. Cf. Hua XXV, p. 305 et p. 340; La philosophie comme science rigoureuse, p. 33-34 et 84.[↩]
  5. ZSD, p. 87; QIII et IV, p. 333.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress