Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.
Nessas questões milenárias a filosofia se essencializa como ontologia, articulando a pré-compreensão do Ser no sistema dos conceitos transcendentais, que instauram na totalidade dos entes as regiões de objeto e os projetos de constituição das pesquisas científicas. Pois nas categorias ontológicas se desenvolve a interpretação do sentido da realidade e a concepção da essência da verdade, que empurram o dinamismo de sucessão das épocas históricas. Sendo a esteira, em que se desenrola historicamente o desejo originário de saber, a pré-compreensão do Ser não é um processo no cérebro de um mamífero inteligente. Não se trata do modo de o homem comportar-se e referir-se à essência daquilo que é. Trata-se antes de tudo da modalidade de o próprio Ser inserir-se na existência, reportando às oscilações de sua Verdade as vicissitudes e peripécias da história humana. É a maneira em que o Ser mesmo apela o homem, impelindo-o à sua luz temporal. Nada de mais profundo determina o vigor da existência do que esse apelo. As conhecidas auto-interpretações do homem, a antropológica, como “homo sapiens”, a psicológica, como “animal rationale”, a técnica, como “homo faber”, a socialista, como “operário da história”, permanecem todas, em profundeza e originariedade, muito aquém da ontológica, que o interpreta como o lugar da auto-revelação do Ser. O homem é o prisma do Ser. O receptor da mais antiga mensagem e da primeira de todas as revelações. É o ouvinte de um apelo, que rompe o silêncio da noite dos entes e compele o Filho de Prometeu a existir no testemunho do fogo do Ser, promovendo os significados das coisas. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Geralmente se opõe pressentimento a saber, ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber. No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber. Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência. É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Assim se estrutura o seguinte uso terminológico: ente é tudo que é; ser (com minúscula), o fato e o modo de ser do ente, enquanto ente; Ser (com maiúscula), a diferença ontológica, fundamento de possibilidade do ser do ente; Verdade ou Sentido (com maiúscula) do Ser, a iluminação da diferença referente, em que o ente se revela, em seu ser, como ente; existência, o modo de ser do homem, que é o espaço, onde se instaura a revelação da diferença; História (com maiúscula), as vicissitudes da Verdade do Ser, que, instaurando-se na existência, institui a verdade dos entes, cujas variações lhes constituem a história; Essencializar exprime o processo ontológico em que o ente, na instauração existencial, revela o seu ser, isto é, se essencializa (com minúscula). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Já dessa explicação de termos meramente formal se pode ver que as três perguntas acima formuladas sobre o destino das diversas determinações do ser do ente, nos vários períodos da metafísica, articulam dialeticamente entre si os três momentos centrais: o ente em seu ser, o homem em sua existência e o Ser em sua Verdade , numa única questão: a questão sobre a diferença ontológica, como tal. Durante todo o decurso da história do Ocidente a diferença constitui sempre o fundamento esquecido e não pensado de todo o pensamento metafísico. O famoso esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit) não é outra coisa do que o esquecimento da diferença ontológica. Para Heidegger ela constitui o que é mais digno de ser posto em questão (das Fragwürdigste) e investigá-la é a preocupação central e única de toda a sua filosofia, como ainda veremos. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
O comércio com os entes, de que necessita o homem para existir, se sustenta e articula numa pré-compreensão multiforme da Verdade do Ser, vigente na dimensão da linguagem, por cuja força o homem sempre usa a palavra “é”. Chama as pessoas e coisas de entes. Com elas se comunica em termos de essência e existência, de constância e mutabilidade, de ser e não-ser, de poder e dever ser, de ser verdadeiro e falso, de vir a ser e sempre ser, de ser presente, passado e futuro. Em todas essas locuções o homem apreende e compreende, colhe e escolhe, une e reúne, confere e difere tudo que lhe advém da totalidade do ente sob o vigor da Verdade do Ser, explicitamente indeterminada mas de extensão e compreensão inesgotável. O termo transcendência indica essa excelência do homem de ultrapassar e superar a obscuridade do ente, com o qual constantemente se comunica em sua existência, iluminando-lhe o sentido, tornando-lhe transparente o ser na luz da Verdade . Já o fato de se usar uma mesma palavra, a saber, luz, para significar tanto um fenômeno externo, a luz do sol, como um fenômeno interno, a luz da verdade, mostra de alguma maneira que o sol não se encontra de modo absoluto e exclusivo fora do homem nem que a verdade se acha de modo absoluto e exclusivo dentro do homem, mas que primária e originariamente o homem sempre existe no mundo, enquanto o transcende, e o mundo sempre transcende, enquanto nele existe. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
2. Os Termos da Questão do Ser: A problemática da tensão de imanência e transcendência na existência humana se agita antes do problema clássico da analogia. Investiga o fundamento de possibilidade no qual somente toda analogia pode mover-se e o homem pode existir metafisicamente. Já na conclusão de sua tese de habilitação ao magistério, Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Skotus (A Doutrina das Categorias e da Significação de Duns Escoto), Heidegger levanta o problema da tensão da existência, que, em Sein und Zeit (Ser e Tempo) e nas obras posteriores será determinado e articulado como a questão central de seu pensamento, a questão sobre o Sentido e a Verdade do Ser: como se deverá pensar, em sua estrutura ontológica, a essencialização da existência humana, que recolhe a individualidade de suas atitudes, sempre condicionadas historicamente pela situação de tempo e espaço, na universalidade de um sentido? Quais são as condições de possibilidade da existência humana, como tensão entre imanência e transcendência, entre ente e ser? Como se comporta a filosofia com a sua própria história? Como se deve conceber a essencialização da verdade, que exige para se edificar um lugar e um momento próprio na história? Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Com a publicação dos escritos posteriores já não cabe dúvida de que a filosofia heideggeriana é uma reflexão sempre mais exclusiva sobre a essencialização da verdade do ente como a Verdade do Ser. A existência humana se agita dentro da tensão entre imanência e transcendência, porque o homem existe, enquanto in-siste no domínio da Verdade do Ser, isto é, na vicissitude instaurada pela diferença irredutível e referência necessária entre ente e ser. A tarefa do pensamento não é procurar sair desse círculo de diferença e referência e sim nele ingressar de maneira a poder regressar até a fonte originária de sua tensão e unidade. A imanência da existência, que testemunha a indigência do homem de in-sistir no mundo dos entes para poder existir, é o índice de uma outra indigência. Da indigência ainda mais profunda, por constituir-lhe todo o ser, de in-sistir nas vicissitudes da Verdade do Ser, sem nunca poder possuí-la e dominá-la. Que o homem só possa transcender o mundo dos entes na medida em que nele se encarna e mergulha, já mostra a finitude inexpugnável de sua transcendência. Ele só consegue atingir a verdade do ente, enquanto habita a luz do Ser, na qual o ente se manifesta como tal. Assim até no mais elevado grau de sua potência, na própria excelência de seu ser o homem permanece sempre um ente sensível. Um ente, que deve receber de outro as virtualidades de sua própria humanidade. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferença ontológica, inclui sempre uma irredutibilidade ao ente. Nunca poderá ser objetivado. Nunca poderá ser encontrado nem como ente, nem com o ente, nem dentro do ente. Nunca poderá ser constatado a modo de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina o ente segundo determinada figura de sua Verdade . Esse jogo híbrido de retraimento e manifestação, de luz e sombra, de velar e re-velar constitui a essencialização de sua Verdade , tal como os gregos a pensaram originariamente na a-létheia. Dessa dinâmica surge a constituição dos períodos de sua fulguração, como épocas da Verdade do Ser. A palavra época não apresenta aqui a função “tética” da consciência transcendental, inerente ao termo husserliano, epoche. É antes pensada a partir da tendência do Ser, de re-velar o ente na medida em que se vela e retrai em si mesmo. A época é sempre uma configuração histórica do esquecimento do Ser. Ora, sendo a existência o espaço aberto por essa configuração epocal, a Verdade do Ser está mais de posse do que na posse do homem e por isso mesmo é sempre esquecida na história de sua essencialização. O homem só pode principiar a investigar o ente como tal, a fim de, adequando-se a seu ser, tomá-lo por medida e critério da existência, porque a Verdade do Ser já antes dele se tinha apoderado e o havia destinado em determinada época de sua fulguração. Numa época em que a significação do ente enquanto ente é estruturada na diferença entre fundamento e fundado. Isso quer dizer: a essencialização do pensamento ocidental, em que a existência do Ocidente toma consciência de si mesma, é absorventemente lógica no sentido de edificada na interdependência de fundamento e fundado. E por ser lógica é de modo igual ôntica e teísta. É igualmente ôntica, porque o ser é o fundamento do ente “on”. É igualmente teísta, porque, por necessidade da própria fundamentação, o ente só será realmente fundamentado, se se fundar num último fundamento, que exclua a possibilidade e necessidade de ulterior fundamentação. Esse fundamento supremo é o absoluto, o theós. Assim, tendo principiado com o esquecimento do Ser, a história da metafísica desdobra, em todos os períodos de seu desenvolvimento, numa multiplicidade de formas, essa constituição onto-teo-lógica. É originariamente uma época da Verdade do Ser, na qual a investigação do ente, enquanto ente em sua totalidade e no supremo fundamento de sua fundação, reivindica para si o direito de conduzir o homem à verdade correta, imutável, necessária e certa. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
3. O Modo de Investigação da Questão do Ser: De vez que a Verdade do Ser nunca é direta mas apenas obliquamente acessível à reflexão, enquanto, isto é, retraindo-se em si mesma, ilumina o ente em determinada figura de referência e diferença com seu ser, a história da existência se tem processado no espaço metafísico, instaurado por esse esquecimento. Nessas condições existenciais toda tentativa de pensar a Verdade do Ser em si mesma só poderá realizar-se numa reflexão sobre a essencialização da verdade do conhecimento, vigente na história da metafísica. O único caminho para retornar ao domínio da Verdade originária é o da superação da metafísica. Faz-se necessário que o pensamento retroceda à dimensão escondida em que, desde o princípio, se tem processado e ainda hoje se processa a história da metafísica, e procure re-cuperar todos os passos dessa grande marcha de progresso a partir de sua proveniência. Destarte para satisfazer a tarefa e o apelo de um pensamento originário, isto é, de um pensamento que pensa a origem de sua própria essencialização, a Filosofia heideggeriana se vê compelida a re-pensar e interpretar toda a história da existência como a história metafísica do esquecimento do Ser. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende repetir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (die Vor-frage) sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Quer ele trate da Sentença de Anaximandro, como o “princípio” (der An-fang) de toda a sabedoria do Ocidente, ou se ocupe dos Fragmentos de Heráclito e Parmênides, nos quais “Ser e Pensar” se compenetram intrinsecamente (innig zusammen-gehoeren); seja que ele explique a Doutrina de Platão como uma “mudança na essencialização da verdade” (Wandel des Wesens der Wahrheit), da qual profluiu primeiramente a “não-essencialização da metafísica” (das Un-wesen der Metaphysik), ou seja, que exponha “a constituição onto-teo-lógica da metafísica” (die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik), que encerra em si a aporia (Verlegenheit) de toda a filosofia ocidental; quer interpretando a Crítica da Razão Pura de Kant, como uma “fundamentação da metafísica” (eine Grundlegung der Metaphysik) ou evocando a Lógica Hegeliana e o Nihilismo Nietzscheano, como a “consumação” (Vollendung) da Época metafísica da história do ser (Geschichte des Seins); quer esclarecendo a poesia (Dichtung) de Hölderlin, quer expondo o significado de Rilke ou um verso de Moerike para o “tempo da penúria” (dürftige Zeit), quer instituindo a questão sobre a técnica (die Frage nach der Technik) ou investigando a essencialização da linguagem (das Wesen der Sprache), etc. etc. sempre se propõe Heidegger a questão central do pensamento sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Esse propósito assumiu toda a clareza desejável desde a primeira página de Sein und Zeit: “Será que já temos uma resposta à questão sobre o que propriamente entendemos com a palavra “sendo”? — De forma alguma. Por isso se trata de pôr novamente a questão sobre o Sentido do Ser. Será que nos sentimos hoje perplexos em não compreendermos a expressão, “Ser”? — De forma alguma. Por isso convém primeiramente despertar de novo uma sensibilidade para o sentido dessa questão. A elaboração! concreta da questão sobre o Sentido do Ser é o propósito do seguinte tratado. A interpretação do tempo, como o horizonte de toda compreensão do Ser, simplesmente constitui a sua meta provisória” (Sein und Zeit, p.l). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Em razão de a diferença ontológica vigorar num esquecimento reduplicativo de si mesma, a questão sobre o Sentido do Ser não pode ser hoje posta senão na própria luz em que se ilumina a história da metafísica. Porque esquecemos tanto a diferença ontológica como que a esquecemos, só se poderá investigar a Verdade e o Sentido do Ser numa superação da tradição. Essa superação não é uma negação. Não pretende destruir e aniquilar a metafísica. Pretendê-lo não seria apenas uma pretensão infantil mas um esforço Münchhauseneano, que se atropelaria em seu próprio tropel. Pois, ignorando a história do Ser, esquecer-se-ia do que é mais digno de ser pensado. No livro Was heisst Denken? (O que significa pensar?) mostra Heidegger como o esquecimento do Ser da metafísica é a maior provocação para o pensamento: “em nossos tempos, que tanto dão a pensar, o que mais provoca o pensamento é não pensarmos ainda”. A superação da metafísica é, no fundo, uma recuperação originária do esquecimento do Ser. Isso significa: a superação procura enuclear a essencalização da metafísica e traçar desse modo os limites de suas possibilidades. A superação reconduz a metafísica para onde sua essencialização provoca. Pois o esquecimento do Ser é a própria dimensão, que, escondendo a si mesma, protege a verdade da metafísica, possibilitando-lhe a investigação do ente enquanto ente. Entendida assim epocalmente a superação não depõe a metafísica mas a repõe em sua constante verdade, recompondo-lhe a essencialização originária. Não se trata de progredir além para um domínio ulterior e sim regredir aquém para o espaço anterior da metafísica. Nesse sentido o exórdio da metafísica é o ponto de partida inevitável e obrigatório de toda investigação sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Essa necessidade não é extrínseca. A superação não só tem que falar a linguagem em vigor e servir-se de seus títulos e de sua gramática para tornar-se inteligível dentro dos limites da filosofia vigente. É antes de tudo uma necessidade intrínseca, inerente à própria dialética do movimento de superação. Pois a metafísica é “uma fase eminente e a única até agora visível da História do Ser” e por isso o único espaço de qualquer retorno à sua Verdade . Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Para se compreender o itinerário do pensamento de Heidegger é de suma importância o significado dialético desse exórdio da metafísica. Uma profunda ambigüidade penetra todos os passos da questão sobre o Sentido do Ser, forçando-lhe a investigação numa marcha, cujo movimento é, a um tempo, pro-jetivo e re-gressivo. É pro-jetivo, enquanto, procurando superar a metafísica, pro-speta pensar a Verdade do Ser na sua configuração epocal de esquecimento. Nesse sentido parte e. retira o primeiro impulso de uma experiência prévia do termo de seu movimento. É re-gressivo, enquanto volta sobre esse ponto de partida para dilucidar a dimensão originária e a proveniência de seu vigor na vicissitude da Verdade do Ser. Na marcha desse duplo movimento o projeto é determinado pelo re-gresso, porquanto o retorno à Verdade do Ser, como a dimensão de origem e proveniência do esquecimento do Ser, é a única maneira de se fazer a experiência da metafísica por sua própria essencialização esquecida. A ambigüidade aqui reinante se prende à necessidade de mover-se sempre no horizonte da metafísica. Já ter que se falar de ser e ente, de superação e retorno, de fundamento e condição de possibilidade, de transcendência e imanência, todos esses, títulos pertencentes ao âmbito da metafísica, agrava de tal ambigüidade a investigação do Ser, que só aparece um pouco da dimensão da Verdade do Ser, totalmente diversa. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Os escritos posteriores, atribuídos ao chamado Segundo ou Último Heidegger desde Platons Lehre von der Wahrheit (Doutrina Platônica da Verdade ), empreendem a etapa regressiva do movimento de superação, mostrando que o esquecimento em vigor na metafísica provém de uma iluminação originária da Verdade do Ser, que é a figura epocal da vicissitude histórica, instaurada no princípio da existência grega. À luz dessa iluminação se vê que a remeditação dos primeiros escritos não se iguala a nenhuma determinação metafísica. Assim Wesen e Existenz (essencialização e existência) em Sein und Zeit não são a “essência” e “existência” da metafísica. É que o pro-jeto de elaboração a partir da metafísica empreendido em Sein und Zeit já é conduzido pelo regresso à proveniência originária da própria metafísica. A desconsideração dessa necessidade e tensão no itinerário do pensamento de Heidegger levou a tantas incompreensões e fez muitos intérpretes distinguirem dois Heidegger, opondo os escritos do Segundo ou Último aos escritos do Primeiro. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
4. O Lugar da Introdução à Metafísica: A obra apresentada agora em tradução portuguesa se enquadra dentro do pensamento de Heidegger na passagem do primeiro para o segundo movimento. Como as Preleções de Hegel são indispensáveis para a compreensão de suas obras sistemáticas, assim também o presente curso de preleções é imprescindível para se penetrar na oscilação dialética da superação da metafísica no pensamento de Heidegger. Escrita em 1935, a Introdução à Metafísica descreve o espaço de movimento da superação, dando os passos decisivos do retorno às origens do esquecimento do Ser da metafísica. Retomando o conteúdo do escrito, Vom Wesen der Wahrheit (Da Essencialização da Verdade ), conferência pronunciada já em 1930, Heidegger mostra como as raízes mais profundas do mundo moderno se foram implantando, através do processo de constituição histórica, num esquecimento sempre mais acentuado do Ser. A metafísica é o fundamento em que se edifica toda a civilização Ocidental. A tecnocracia desenfreada, o império. da ciência, a estetificação da arte, a fuga dos deuses, a massificação do homem, a organização planetária, a disposição da natureza, os estados totalitários, a despotencialização do espírito, todas essas manifestações do mundo ocidental são criações e obras do predomínio da metafísica. O esquecimento do Ser não é um episódio da vida intelectual de filósofos. É o destino histórico da existência do Ocidente, cuja máxima virulência moderna constitui um apelo. O homem da era atômica, ator e vítima de uma Época sem memória para o Ser, é constantemente provocado a recobrar essa memória, que lhe dará as forças para instaurar um Novo Dia Histórico. A Noite Longa, que a experiência da História de Hölderlin sente iniciar-se com os tempos modernos, é o espaço de restauração das forças do Ser para o amanhecer de uma outra época. Assim a Introdução à Metafísica é a preparação de uma superação, que não substima o que o homem do Ocidente tem pensado e construído. Visa ao contrário recuperar o Sentido do Ser necessariamente esquecido no destino da tradição histórica. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Semelhante a todos os escritos de Heidegger a Introdução à Metafísica é de grande densidade de conteúdo e de um caráter socrático vigoroso. Abrange desde reflexões filológicas sobre as palavras mais corriqueiras da linguagem até análises penetrantes da realidade político-social de seu tempo. Com o crescer da familiaridade do conteúdo se vai revelando aos poucos o desenrolar de toda a dialética da Verdade do Ser nas diversas configurações existenciais de sua essencialização metafísica. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
5. A Hermenêutica da Introdução à Metafísica: Concebida como um retorno à fonte originária de sua essencialização, a superação da metafísica e por conseguinte a investigação da questão sobre o sentido e a Verdade do Ser parece reduzir-se a um simples renascimento do pensamento pré-socrático. À primeira vista a Introdução dá a aparência de não ser senão um esforço de tradução e interpretação filosófica da doxografia primitiva dos gregos. Em todos os capítulos as questões são sempre conduzidas através de pacientes discussões sobre a significação originária de determinadas palavras entre os primeiros filósofos gregos. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Todo esse processo de desfiguração não foi um acaso, nem se trata de um processo, que poderia ter sido sustado. É o vigor do próprio esquecimento do Ser que se destina historicamente durante toda a época da metafísica. Nesse sentido o retorno às origens da metafísica não é um esforço para fazer renascer o pensamento pré-socrático, como pretendia Nietzsche. É a imposição de um pensamento de essencialização (— das wesentliche Denken, diz Heidegger —), um pensamento, isto é, que a partir da própria essencialização da metafísica procura superar-lhe o esquecimento da Verdade do Ser. Por isso a Hermenêutica, que na Introdução conduz à dimensão originária da Essencialização do Ser, não se identifica com nenhuma hermenêutica científica, em cuja luz aparecerá sempre arbitrária e deturpadora. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Com efeito o vigor histórico do esquecimento do Ser, que na era da técnica e da ciência atinge o paroxismo de sua virulência, opera na metafísica segundo a dialética de re-velação da diferença ontológica. Nela a Verdade do Ser, retraindo-se e velando-se em si, extrai e re-vela o ente na divergência e convergência entre fundamento e fundado. Jogado por tal dialética, o pensamento metafísico se edifica em duas dimensões. Enquanto estruturado na diferença lógica de ente e ser, reconduz o ente ao fundamento de possibilidade próximo em seu ser e remoto no ser supremo. Essa estrutura é a dimensão do pensado no pensamento metafísico. De vez que, por pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico não pensa a diferença ontológica como diferença, a dimensão do pensado é a dimensão do esquecimento do Ser. Por outro lado, uma vez que, para pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico já está determinado pela diferença ontológica, a recondução do ente a seu ser implica a configuração lógica da diferença. Essa implicação não é um nada. É antes a dimensão do não-pensado no pensamento metafísico. Assim o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da tradição ocidental exclui diretamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a dimensão do não-pensado que outra coisa não é senão a dimensão da Verdade do Ser. Por isso diz Heidegger “o não-pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento”. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
A dialética de presença e ausência da Verdade do Ser na História da metafísica é o que distingue a Hermenêutica da Introdução de qualquer hermenêutica científica. Essa se limita, em e por força de sua própria essencialização metafísica, ao pensado pelos filósofos da tradição. Visa com todo o rigor imposto por essa limitação reconstruir o que foi pensado. Para ela legado e pensado coincidem. Aquela, procurando pensar a essencialização da metafísica, situa-se aquém desses limites, na dimensão do não-pensado mas legado pelo pensamento da tradição. Visa uma “re-petição” do passado-presente, embora não pensado pelos filósofos da tradição. É uma hermenêutica que é o Hermes do não-pensado, isto é, que interpreta o pensado pela mensagem do não-pensado. A hermenêutica científica não é mais rigorosa. É apenas mais limitada do que a Hermenêutica da Introdução. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
A discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos. O humanismo deixa de ser um valor indiscutível e, portanto, um trauma para o pensamento. Transforma-se na maior provocação para pensar na medida em que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes históricas da Verdade do Ser. Redimensionar o humanismo significa então superar-lhe as raízes num pensamento que é essencial por pensar a proveniência de sua própria Essência, isto é, por pensar a proveniência da Essência do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, en-cobrir essa proveniência, o humanismo, não só como designação, mas principalmente como visão e esforço, é um lucus a non lucendo. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Daí a tese do Sein und Zeit de que, edificando-se num esquecimento do Ser, a metafísica exige ser re-pensada no fundamento de sua possibilidade e assim superada em seu esquecimento. O primeiro esforço nesse sentido é procurar arrancar o ser do homem à interpretação metafísica, re-pensando-o em relação ao Ser. Assim os termos Essência, Existência, Dasein, Substância, usados em Sein und Zeit, não visam a pensar o homem por seus significados metafísicos e em conseqüência não se identificam com a essentia, a existentia, o Dasein e a substância da metafísica e do humanismo. Procuram antes pensar a essencialização do homem dentro da referência do Ser e o fazem, como o espaço de articulação (Da-) da Verdade do Ser (Sein). Ora, uma vez que, de um lado, a grandeza e a dignidade do homem se essencializam originariamente nessa re-ferência e, de outro, o humanismo, em sua virulência metafísica, não a questiona nem a pensa, a tarefa imposta a um Pensamento Essencial é abandonar o humanismo, para, pensando a Verdade do Ser, tornar-se essencialmente humano. Na preparação desta tarefa concentram-se as investigações de Sein und Zeit. Por tais esclarecimentos Sobre o Humanismo é o passaporte para a dimensão onde se move o pensamento de Heidegger ao nível da Analítica Existencial. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
O contexto, a que corresponde o Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein, é constituído e dominado pelo poder da epistemologia. No vigor de sua constituição, a epistemologia recebe a força de si mesma de uma de-cisão bem determinada sobre a Verdade e de uma determinação de-cidida da Essência da Linguagem. No espaço aberto por esta de-cisão se desenvolve a estrutura do discurso científico na medida em que se esconde no surto antimetafísico da epistemologia uma certa metafísica da Linguagem. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
9. O Tractatus não é uma corrente de discursos, que pretendesse demonstrar teses segundo uma ordem hipotáti-ca ou para tática de argumentação. É que todo discurso está ordenado à organização lógica de fatos relativos a um conhecimento objetivo do mundo. O pensador não quer provar nada. Visa tão-somente a re-velar nas funções da língua o vigor do pensamento e assim denunciar a ilusão de se lhe atribuir o registro próprio da ciência. O projeto do Tractatus é inteiramente despojado de qualquer pretensão científica. A vitalidade de seus aforismos não pode ser determinada como um sistema de sentenças. Só fatos são suscetíveis de discurso. Uma sentença não pode exprimir senão um fato, simples ou complexo. Como o autor de Delfos, o pensador não afirma nem nega coisa alguma. Ele apenas assinala, enviando-nos à viagem de todas as nossas línguas. A metafísica tem sido vítima de seus próprios encantos. Mobilizada pelo narcisismo metafísico, a epistemologia se encantou pelos encantos metafísicos de uma antimetafísica. A metafísica cai sob a crítica da epistemologia por pretender pensar a Essência da realidade num discurso. A epistemologia, usando a arma da crítica sem fazer a crítica da arma, recai na metafísica, por não pensar a Verdade da Essência e assim desconhecer que há um pensamento mais originário do que o pensamento discursivo. É o que nos sugere o Tractatus de Wittgenstein: “Meine Saetze erlaeutern dadurch, dass sie der, welcher mich versteht, am Ende als unsinnig erkennt, wenn er durch sie — auf ihnen — über sie hinausgestiegen ist. (Er muss sozusagen die Leiter wegwerfen, nachdem er auf ihr hinausgestiegen ist). Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
O Divino, diz Hölderlin, só retorna no tempo devido, “in richtiger Zeit”. Este é o tempo da sagração do mundo. O novo advento não depende do homem. Depende de Cristo. O que resta ao homem é apenas preambular a fé, convertendo-se para sua Essência. Nesta conversão recupera a sensibilidade para o mistério de Existência, o destino do Ser, que em irrupções súbitas de sua Verdade abre os caminhos da História dos entes. Converter-se é mudar de pensar. Cumpre abandonar o pensamento esquecido na objetividade dos entes e absorto na eficiência do real para se poder recuperar a serenidade do Pensamento Essencial, que pensa a Verdade do Ser, prorrompendo em adventos repentinos sobre a essência dos entes. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
Antes de responder e para poder simplesmente perguntar, o pensamento tem de pensar primeiro e sobretudo o que há com este “é” que se evoca necessariamente quando se pensa que o Ser é ou não é Deus. Pois há uma seqüência irreversível no itinerário do pensamento: a inteligência da divindade e deidade só é conhecida em sua verdade originária pelo advento cairológico, o Ser. Heidegger o exprimiu numa passagem já célebre da Carta sobre o Humanismo: “Erst aus der Wahrheit des Seins lásst sich das Wesen des Heiligen denken. Erst aus dem Wesen des Heiligen ist das Wesen von der Gottheit zu denken. Erst im Licht des Wesens von der Gottheit kann gedacht und gesagt werden, was das Wort “Gott” nennen soll”. (Brief über den “Humanismus”, in: Martin Heidegger, Wegmarken, Frankfurt a.M., Vittorio Klostermann, 1967, p.181.) “Não é senão a partir da Verdade do Ser que se poderá pensar a Essência do Sagrado. Não é senão a partir da Essência do Sagrado que se há de pensar a Essência da deidade. Não é senão na luz da Essência da deidade que se poderá pensar e dizer o que a palavra “Deus” há de evocar”. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
O Cristianismo des-mascarou o antropomorfismo do politeísmo pagão e o substituiu pelo monoteísmo de um Deus pessoal. Por outro lado, a Esquerda Hegeliana desmascarou o antropocentrismo radical do monoteísmo cristão e o substituiu pelo materialismo ateu de uma humanidade desalienada. Por mais diversos e inversos que sejam, um e outro esforço se fizeram e se fazem na força da mesma estrutura onto-teo-lógica da metafísica. Questionar a originariedade do politeísmo, do monoteísmo e do materialismo, quanto à divindade de Deus e quanto à humanidade do homem, não significa tentar em vão fazer regredir ou progredir a história. Significa seguir o apelo cairológico, de pensar o processo histórico à luz da Verdade enigmática do Ser. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
As mesmas cadeias lógicas, que unem a estrutura di-mórfica da metafísica ao humanismo, ligam-na também ao monoteísmo. E assim como o humanismo masca e mascara a experiência originária do homem com o Ser, assim também o monoteísmo metafísico diverte e perverte a experiência originária do homem com o Divino. Ora, o Divino constitui o horizonte pluridimensional da deidade, o elemento misterioso onde poderá haver uma cor-respondência com Deus e os Deuses. Por isso o Pensamento Essencial procura sua Verdade fora da dualidade metafísica do teísmo e ateísmo. O ateísmo moderno não passa de uma conseqüência do cristianismo. É o cristianismo perfeitamente humanizado, isto é, no fundo totalmente descristianizado. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
Esforçando-se por retirar o enorme entulho da metafísica, o Pensamento Essencial se mantém equidistante do cristianismo e de seu reverso, o ateísmo, a fim de poder fazer a experiência da dessacralização, o horizonte comum de todos os modernos. A passagem, que conduz do Deus impessoal dos filósofos ao Deus pessoal do cristianismo, esta passagem considerada à luz da Verdade esquecida do Sagrado é tão ilusória como a passagem, que leva do humanismo da substância ao humanismo do sujeito. Heidegger lembra que a categoria de pessoa não é menos carregada das potências metafísicas de dessacralização e desumanização do que as categorias de objeto e de coisa. O Deus, para cujo nome o Pensamento Essencial procura a devida linguagem, não é, portanto, nem o Deus de Hegel nem o de Kierkegaard. É o Deus Divino de Jesus Cristo, que justamente por não ser da metafísica não pode ser também nem o Deus da religião do Absoluto nem o Deus da religião do Paradoxo. Tanto num como no outro caso, o pensamento fica enredado numa aberração não pensada do Ser, a cuja rede se atrelam então as disputas históricas sobre os preâmbulos da fé, sobre o Deus dos geómetras e o Deus dos cristãos, sobre a desmitização, sobre a dialética e o retorno sublimado do reprimido. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
1. Pela diferença entre o poder da instituição e a autoridade do mistério, procuraremos questionar a institucionalização do Cristianismo na Igreja de Roma. Este propósito exige que, na questão da institucionalidade, nos coloquemos nós mesmos em questão. Questionar a si mesmo em tudo e em todos é a religiosidade própria do pensamento. Pois, questionando, o pensamento declina todo poder para, re-clinando-se na autoridade do não-poder, inclinar-se ao mistério da Verdade . Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
Aos judeus, que no Mistério da fé creram em Cristo; disse Jesus: “Se ficardes na identidade de minha Linguagem, sereis na Verdade meus discípulos e assim nascereis com a Verdade e a Verdade trazer-vos-á a liberdade” (Jo 8,32). O Cristianismo se dá no horizonte da fé. A fé é o Mistério da Linguagem de Cristo, cuja identidade abrange toda revelação de Deus e toda religiosidade humana. Esta fé se foi irradiando a partir da Igreja Primitiva pela pregação e escritura da palavra. Numa e noutra a Linguagem de Cristo se fez e se faz língua e história da salvação. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
26. Este modo de pensar objetivo não se dá conta da radicalidade do Mistério enquanto pensa. E por isso não percebe o sentido da diferença enviada à Igreja de Roma pela identidade do Mistério de Cristo. A exclusividade e universalidade, que a consciência da Igreja de Roma atribui à Igreja de Cristo, é uma diferença da própria identidade do Cristianismo. O homem não escolhe mas é escolhido pelo, Mistério de sua fé. O cristão não é cristão por ter perdido a fé em seu poder e a encontrado no poder de Cristo. O cristão é cristão por ter perdido a fé em qualquer poder e encontrado no Mistério de Cristo o não-poder da autoridade. É o mistério profundo da pobreza que levou São Francisco a exclamar: “Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quae vos, caríssimos fratres meos, heredes et reges regni caelorum instituit, pauperes rebus fecit, virtutibus sublimavit. Haec sit portio vestra, quae perducit in ferram viventium. Cui, dilectissimi fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pro nomine Domini nostri Iesu Christi in perpetuum sub caelo habere velitis” (Regra de São Francisco de Assis). Colhendo-nos na liberdade da Verdade de Cristo, o envio do Mistério na fé não pressupõe a liberdade de escolher, dá, ao contrário, a liberdade de acolher as diferenças da humanidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
27. Se o Mistério de Cristo se envia na identidade de todas as religiões, se a autoridade de sua Verdade é a paz na liberdade do amor de todos os homens, se a catolicidade de sua Igreja reside precisamente em encontrar Cristo em todas as diferenças, qual será então o sentido da consciência de universalidade da fé cristã, que sempre a empenhou num esforço missionário? Que apelo do Mistério convoca os cristãos a institucionalizarem a comunhão na fé numa sociedade e nela exercerem o martírio de seu testemunho? Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
A universalidade da fé cristã não é uma universalidade abstrata, que do poder de atropelar as diferenças extrai uma unidade, onde tudo se equivale. Esta universalidade é um número. Supõe uma isomorfia de estrutura que garante funções iguais numa multiplicidade de coisas. Para Hegel, universalidade ab-strata é “die Nasen zählen”, contar os narizes. A universalidade da fé cristã é a universalidade con-creta, pois con-crescit, nasce com a renúncia a todo poder, por já se ter sempre entregue à luz obscura do Mistério. Esta universalidade é autoridade. Supõe uma Verdade que liberte para a interioridade nos vórtices de todas as diferenças. Na dinâmica da universalidade concreta do Mistério, o cristão não sente nas diferenças de sua fé a exclusão mas a inclusão de todas as outras possibilidades de crer. A identidade o leva às outras diferenças pela e para a aceitação da pobreza de suas próprias diferenças. Assim longe de impedir, o penhor da identidade em todas as religiões impele o cristão ao empenho missionário. As missões não existem para os fiéis dobrarem os infiéis às suas diferenças, para os cristãos converterem os não-cristãos ao poder de suas línguas, mas para fiéis e infiéis, cristãos e não-cristãos reconduzirem suas diferenças de poder e língua à Autoridade e à Linguagem do Mistério. O sentido, pois, da consciência de universalidade da fé cristã é a perda de toda consciência do poder; é a obediência à pobreza de uma universalidade con-creta; é a liberdade de deixar o Mistério ser Mistério, para se vir a ser um instrumento de sua paz: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz”. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
c) Cristo enviou seu Espírito de Verdade à Igreja toda. Por isso a Presença do Espírito Santo não pode ser reduzida aos presentes do magistério. Ademais o espírito de cada presente do magistério não é só a presença mas também ausência do Espírito Católico de Cristo. Por isso na medida em que se igualasse o dogma aos presentes do magistério, restringir-se-ia a Presença do Espírito ao espírito do presente, numa igualdade sem mistério. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
A metafísica é teológica porque é lógica. Mas por que é lógica a metafísica? Esta questão já não se põe verdadeiramente como questão no horizonte da reflexão metafísica. Para ser questionada em sua Verdade , supõe que o pensamento se encontre além da dinâmica de fundamentação, fora da força determinante da lógica. Trata-se de uma questão que só se movimenta no âmbito de experiência de um Pensamento Essencial. A metafísica é lógica, quer, então, dizer que a Verdade do Ser se destinou na figura do Logos, isto é, na dinâmica de fundamentação, reivindicando todas as forças de criação Histórica para o Absoluto da razão e sua racionalidade. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto