Excertos de “Aprendendo a pensar”, Tomo I.
Por muito repetir-se já se vulgarizou dizer que vivemos na era atômica. O que significa, porém, chamar uma época da história da humanidade de era atômica? À primeira vista exprime o domínio planetário da ciência. A energia do átomo, descoberta pela ciência e controlada pela técnica , constitui o sistema de forças, que doravante determinará a construção da existência e o curso da história. Numa progressão sempre crescente, o homem moderno se vê cercado cada vez mais dos produtos e artefatos da ciência. A ponto de o físico alemão Werner Heisenberg (Das Naturbild der heutigen Physik, Hamburgr 1955, p.14) escrever que num futuro não muito distante os aparelhos e instrumentos técnicos serão partes integrantes do homem, como a teia é parte da aranha e a concha do caramujo. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Esse, porém, é apenas o sentido de superfície, não o significado profundo do domínio da ciência. Não é essa a razão de existirmos na era atômica nem é por isso que a idade moderna se chama a época da ciência e da técnica . Esses títulos, de que hoje em dia se usa e abusa com tanta irreflexão, possuem um significado eminentemente histórico-ontológico. A nossa era é científica em sua essencialização. Vivemos na idade da ciência, porque é a ciência que determina o ser e a verdade do real. Porque a ciência é o meio em que se faz a experiência e se entende o sentido de tudo aquilo que é. O elemento, em que se decide o destino da história humana. A ciência é hoje a forma, que informa toda a nossa compreensão e avaliação da realidade, independente e qualquer que seja nossa atitude frente a esse ou àquele resultado científico. Quer atribuamos à ciência valor humano, quer lho neguemos, quer vejamos nela apenas algo indiferente para os valores, a ciência determina sempre o sentido do ser que somos e do ser que não somos. Decide da concepção da verdade em que vivemos, nos movemos e existimos. É que a informação científica não constitui um simples efeito, uma mera consequência dos resultados e conclusões científicas. É antes o espaço de essencialização da própria ciência, que continua aumentando o vigor de seu predomínio ainda quando alguns de seus resultados, tidos como contrários a ideais dos vários humanismos, são impugnados cientificamente pelas respectivas ideologias. Pois então a ciência não faz senão consolidar-se, de vez que o mecanismo de seu vigor tanto mais se afirma quanto mais impera de modo velado e implícito. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Na idade da ciência e técnica essas risadas atingiram um número sem conta. Todas elas, porém, se fundam na constatação simples e convincente, que já Rogério Bacon assim exprimiu no Opus Maius: “Si bene inspicis, philosophia nullius est utilitatis”: “Se bem se examina, a filosofia não é de utilidade alguma”. Com ela não se pode compreender nada. Na Einführung in die Metaphysik diz Heidegger que essa constatação, muito em voga nas esferas dos homens de ciência, é a expressão fiel da verdade. É tão verdadeira, que quem procurar mostrar o contrário e quiser provar que com filosofia se pode fazer alguma coisa, lhe presta um des-serviço. Pois contribui para aumentar ainda mais a confusão reinante, de que se pode avaliar a filosofia segundo os critérios práticos com os quais se julga da utilidade de automóveis ou da eficácia de antibióticos! Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Mas as coisas não são assim tão simples. Se ele frequentou uma escola, já perdeu a inocência pré-científica. Já entrou em contacto com o mundo da ciência, ainda que tenha sido de um modo primário e inocente, aprendendo apenas a ler, escrever e contar. Se não frequentou nenhuma escola, sabe ao menos que a infinidade dos instrumentos e produtos de seu mundo são descobertas e invenções da ciência. De há muito o mundo, em que vivemos, deixou de ser a natureza intacta e virginal do selvagem. Já nem é mais a paisagem bucólica, cultivada pela habilidade camponesa e artesã. É a natureza violada pelas invenções industriais, dominada pelos recursos da técnica . A cada passo encontramos documentos, que testemunham esse domínio da ciência. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
O que significa essa presença inevitável do homem moderno na esfera de domínio da ciência? Participa realmente da vida científica pelo fato de viver às voltas com os produtos da técnica , por repetir de modo semi-inconsciente as linguagens e formulações de uma literatura popular? — Ninguém ousará afirmá-lo com seriedade. Isso todavia não destrói o fato real e inconteste de já não viver mais inteiramente fora da ciência. De já ter perdido a inocência do selvagem. De existir imerso numa tradição cultural, que inclui uma longa história da ciência. Nesse sentido todos os homens da era atômica possuem sempre uma ideia, quando nada, uma ideia de papel do que seja ciência. Se bem se analisa essa imersão histórica do homem, desfaz-se por si mesma a contradição, em que à primeira vista parecemos cair. Dizíamos, de início, que o homem pode, mas não deve necessariamente existir na paisagem da ciência. A ciência não é um fenômeno existencial constitutivo do homem enquanto homem. Não possui a mesma categoria do trabalho, amor e domínio. E precisamente por isso é que o acesso à ciência é sempre um problema de solução difícil. De outro lado, porém, a análise de nossa situação histórica parece revelar o contrário. Já não há nenhuma esfera inteiramente livre do poder científico. A chamada vida pré-científica está toda imbuída de ciência. Trata-se contudo de uma simples aparência. A presença universal da ciência é uma determinada condição histórica, nunca uma estrutura existencial necessária. Trata-se de um fato, que, assim como todo “factum” é uma forma de “facere”, é sempre feito. Um feito, sem dúvida, de peso irresistível, instaurado por determinada configuração das forças históricas, impulsionado por decisões originárias da liberdade, mas mesmo assim, e por ser assim, um feito episódico. O que não nos dá a possibilidade de prever-lhe o futuro, de predizer-lhe profeticamente o fim, antes no-la nega em princípio. Dá-nos apenas a autoconsciência de que o homem, por ser simplesmente homem, não deve exercer sua humanidade na esfera da ciência, como tem de exercê-la na atmosfera do trabalho, do amor, da luta. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Nessas questões milenárias a filosofia se essencializa como ontologia, articulando a pré-compreensão do Ser no sistema dos conceitos transcendentais, que instauram na totalidade dos entes as regiões de objeto e os projetos de constituição das pesquisas científicas. Pois nas categorias ontológicas se desenvolve a interpretação do sentido da realidade e a concepção da essência da verdade, que empurram o dinamismo de sucessão das épocas históricas. Sendo a esteira, em que se desenrola historicamente o desejo originário de saber, a pré-compreensão do Ser não é um processo no cérebro de um mamífero inteligente. Não se trata do modo de o homem comportar-se e referir-se à essência daquilo que é. Trata-se antes de tudo da modalidade de o próprio Ser inserir-se na existência, reportando às oscilações de sua Verdade as vicissitudes e peripécias da história humana. É a maneira em que o Ser mesmo apela o homem, impelindo-o à sua luz temporal. Nada de mais profundo determina o vigor da existência do que esse apelo. As conhecidas auto-interpretações do homem, a antropológica, como “homo sapiens”, a psicológica, como “animal rationale”, a técnica , como “homo faber”, a socialista, como “operário da história”, permanecem todas, em profundeza e originariedade, muito aquém da ontológica, que o interpreta como o lugar da auto-revelação do Ser. O homem é o prisma do Ser. O receptor da mais antiga mensagem e da primeira de todas as revelações. É o ouvinte de um apelo, que rompe o silêncio da noite dos entes e compele o Filho de Prometeu a existir no testemunho do fogo do Ser, promovendo os significados das coisas. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Na existência o vigor desse apelo mora num pressentimento do próprio Ser, cuja originariedade, lançando-nos no campo de forças da filosofia, a subtrai a nosso controle. É por isso que a filosofia faz conosco tudo que somos, enquanto com ela nós não podemos fazer nada. Por se estruturar no jogo de referência e diferença entre Ser e homem, a filosofia se essencializa no paradoxo existencial. Aquele paradoxo, de que se serviu Nietzsche para mote de seu Zarathustra: “Ein Buch für alie und keinen”: “um livro para todos e para ninguém”! O mesmo vale da filosofia. É o destino de todos os homens e de nenhum. De todos, enquanto articula o fundamento em que o homem planta os alicerces de sua existência. De nenhum, enquanto, força de todo esforço, ela se esquiva em princípio a qualquer vontade de domínio do homem. Na filosofia se re-vela toda a potência e toda a impotência humana. Em seu espelho se reflete toda a envergadura da finitude. Onde o homem encontra palco para demonstrações de força, onde anda às voltas com os produtos de seu gênio dominador, lá descem sobre a filosofia as sombras do esquecimento. Um esquecimento que a era atômica potência ao máximo. Nenhuma outra idade experimentou e trabalhou tantos entes mas também se esqueceu tanto de perguntar pelo ser dos entes. Nenhuma outra época julgou tantas verdades mas também se incomodou tão pouco com a essência da verdade. Nenhum outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem, no entanto, preocupar-se com a questão sobre a mundanidade do mundo. O alarido da ciência, o roncar da técnica , enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, entorpece-nos as forças do espírito, deixando a filosofia adormecida numa paisagem de cogumelos atômicos. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Geralmente se opõe pressentimento a saber, ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber. No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber. Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência. É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
3) Não encontrando espaço de expansão para suas possibilidades de futuro, a juventude contesta e contradefine o sistema de controle em todos os níveis da linguagem: no verbal e imaginativo, no gestual e perceptivo, no situacional e coletivo. Pois é aqui, na dinâmica desta contradefinição, que se insere o uso de drogas e entorpecentes. O sentido hermenêutico do tóxico é, portanto, essencialmente ambíguo. Articula-se em duas dimensões. Mais profundamente exprime a dinamização de um projeto de jovialidade e de futuro. Mais na superfície, nos caminhos de sua concretização situacional, desvirtua-se num compromisso com a própria essência da sociedade afluente e da subjetividade moderna. Pois participa da mesma atitude de controle e domínio. É o esforço de controlar a própria jovialidade e de dominar o próprio futuro. É a tentativa de eliminar por uma técnica o próprio mistério do homem. O tóxico, que deveria ser meio de libertação da jovialidade, se transforma, pela dependência, que induz, na pior escravidão. Na escravidão de uma liberdade aparente e artificial. A conversão se torna aversão à jovialidade, a libertação se torna fuga do futuro, o misticismo se torna perda do destino próprio. Aprendendo a pensar I: Juventude e Tóxico
Não se trata de um propósito moderno de hoje. É um propósito velho de milênios. O que possui de sempre novo é apenas a necessidade de se propor sempre de novo, com a novidade de ser cada vez a primeira vez. A novidade, que a velhice milenar do pensamento nos põe a pensar hoje, como a primeira vez, é o sentido do cálculo, dominante na ciência e na técnica planetária de nossos dias. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
A falta de pensamento vive numa fuga. Na fuga da angústia de pensar. É tão angustiante pensar que não queremos nem ver nem reconhecer a indigência de pensamento. Chegamos até a negar-lhe a possibilidade de presença. Como é possível fugir de pensar numa época como a nossa, na era da ciência e da técnica ? Como se pode falar hoje em indigência de pensamento, quando por toda parte se multiplicam os sucessos do saber e cresce o interesse pelo conhecimento? O que não nos falta hoje é pensamento. Em nenhum outro tempo se planejou com tantas perspectivas, se investigou tão fartamente, se investiram tanta energia e recursos em pesquisas, como hoje em dia. Onde está a falta de pensamento? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Há séculos se vem operando gradativamente uma revolução radical em todos os parâmetros decisivos da história. O homem se vê cada vez mais transplantado numa outra realidade. É o transplante do pensamento que calcula. Dele nasce esta nova posição do homem no mundo e para “com o mundo que designamos com o título de moderno: idade moderna, ciência moderna, homem moderno, mundo moderno. Na voragem da modernidade impera o objeto, cuja objetividade ministram e administram a ciência e a técnica planetárias. Tudo é processado em reserva de controle e de domínio. A natureza já não é senão um gigantesco reservatório, a fonte dos recursos para a indústria moderna. O homem se reduz a um sistema fechado de energia que funciona tópica e economicamente. A linguagem se iguala às vicissitudes de língua e discurso que uma coordenação de eixos, sincrônico e diacrônico, vai destilando. A comunicação equivale às trocas de codificação e descodificação que, fazendo circular as informações, assegura um nivelamento assintótico dos repertórios. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Hoje, no entanto, ainda nos é dado um mundo trancado em sua auto-suficiência produtiva, onde o pensamento do sentido se retrai. Os discursos se entregam cada vez menos ao silêncio da fala. As coisas vão-se despindo de serenidade à proporção em que se revestem de velocidade. Tudo se torna fugaz, transitório, substituível. Só o cálculo, indiferente a qualquer empenho, permite diferir sempre mais e sempre novas diferenças de indiferença. E, no entanto, mesmo nesta paisagem sem sentido, a viagem do “e” ainda fala do sentido, ao colocar Filosofia e Psicanálise no curso da ciência e da técnica . Por quê? — Porque neste caso se torna cada vez mais inevitável a pergunta: O que acontece com a psicanálise de viagem pela paisagem do cálculo onde se recolhe hoje todo o vigor de nossa modernidade? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Resposta: Nos discursos teóricos e nos percursos clínicos, a psicanálise é um recurso constante ao sentido que nos ocorre no silêncio dos próprios cálculos diferenciais da ciência e da técnica . Nestas condições, pensar o sentido da psicanálise já não será apenas examinar experiências clínicas à luz das teorias psicanalíticas, nem somente criticar as teorias analíticas à luz de experiências clínicas. Pensar o sentido da psicanálise será, sobretudo, deixar-se questionar nas teorias e nas experiências clínicas pela provocação fundamental do “e”, que continuamente convoca ao silêncio do sentido tanto o discurso das teorias como o percurso das clínicas. Este pensar não é um fazer: nem o fazer de um meta-discurso, nem o fazer de um meta-percurso. É simplesmente um deixar fazer-se silêncio nos afazeres próprios da teoria, da clínica, do questionamento. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Para uma crítica epistemológica a insensatez do discurso teórico da psicanálise é consequência de uma ingenuidade metodológica fundamental. Não há produção de objeto na psicanálise. Os casos são apresentados numa língua técnica que confunde observação com interpretação estilizada. A falta completa de métodos adequados para testar hipóteses impede qualquer produção epistemológica de objeto. O resultado são protocolos, abundantes em hipóteses explicativas, mas carentes de fatos testados. Em consequência, as divergências de interpretação clínica e de endereço teórico tendem sempre para um impasse epistêmico. Assim as diferenças entre uma intrepretação fálica de um dado material clínico e uma interpretação kleiniana, que o refere diretamente ao seio, permanecem sem saída. Não há meio de se decidir o impasse. A interpretação em causa fica tão aberta como a pronúncia inglesa de tomate. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Limitadas pela identidade, as relações de identificação estão sempre sujeitas às tempestades de transferências e projeções, que a angústia de onipotência-impotência gera, de acordo com a maior ou menor tolerância às frustrações. A crítica das transferências e projeções, de um lado, e o desenvolvimento correspondente da habilidade técnica , de outro, produziram pouco a pouco o pensamento do cálculo, a forma de relacionamento adequada para se lidar com o inanimado. Na impossibilidade da identificação e na angústia das frustrações se constroem outros caminhos de conhecimento. Por observação, por tentativa e erro, por experimento se descobre o que fazer com o inanimado, se determina para que serve, de que é feito, como manipulá-lo, transformá-lo, adaptá-lo. Em sua origem, a ciência é um perfeito pensamento, que calcula. Seu vigor mora na oficina e no laboratório, onde o cálculo demonstra toda a eficiência, não perde tempo com a espera do inesperado, onde não há tempo a perder com interpretações, onde não interferem as transferências da angústia. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Que apelo de pensamento nos surpreende neste texto de Bion? Trata-se de uma condenação da ciência acusada de despersonalizar o homem e reduzi-lo a um autômato incapaz de relacionar-se com a vida de seus objetos? É uma denúncia da psicose de angústia do cálculo que resultaria de uma ansiedade de arriscar uma identificação com a morte na vida? Somos convidados a arremeter contra a ciência e a técnica para podermos viver? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Entender assim é unidimensionar ciência, técnica , psicose, cálculo, vida, morte, pensamento, psicanálise. Unidimensionar é correr apenas numa dimensão, seguindo o trilho de uma só bitola. Ora, enquanto discorremos numa bitola só, seja na do cálculo seja na do sentido, ainda não pensamos o bitolamento de nossos discursos. Presos à oposição de uma ou outra alternativa, ainda não chegamos à composição do pensamento. Pensar é compor oposições. No texto de Bion nos advém o apelo desta composição, o apelo de pensarmos a pertinência de cálculo e sentido. É o convite para encontrarmos na própria fraqueza e indigência de pensamento a festa e a fecundidade do sentido. Assim como para ser psicótico, o psicótico não é só psicótico, assim como para ser ciência, a ciência não é só ciência, assim como para ser técnica , a técnica não é só técnica , assim também para não ser só psicótico, o psicótico tem de ser psicótico, para não ser só ciência, a ciência tem de ser ciência, para não ser só técnica , a técnica tem de ser técnica . Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Para nós, filhos precoces do pensamento, tardos em pensar, os modelos e técnicas, as teorias e métodos do cálculo nos concernem no próprio sentido de nossa existência. Por isso sempre dizemos “sim” e “não” tanto ao cálculo, como ao sentido. Ao concordarmos e para concordarmos com o cálculo, somos acordados por um sentido incalculável. Nesta atitude os modelos e as teorias deixam de ser apenas ciência e técnica para virem a ser o envio de um sentido, que, retraindo-se, nos atrai. A transformação radical, operada em nossos relacionamentos pela modernidade, já não nos ameaça de morte. Aceitamos nossa mortalidade, como o dar-se de um sentido, que reivindica de novo todas as nossas possibilidades com a novidade de uma primeira vez. Se não sabemos o que nos concerne na transitoriedade de nosso mundo, se o sentido do predomínio do cálculo se retrai, é na angústia deste não-saber e deste retraimento que somos provocados a uma crescente libertação pela espera, na própria aceitação do cálculo, de um sentido inesperado. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
3. No século VI a religião, a política, a educação gregas exercem determinada consciência da poesia e mitologia. Houmeros tem Hellada pepaideuke. Prisma e espelho, nesta consciência se refletem e analisam as peripécias de verdade e não verdade da existência grega. Denunciando a miopia da consciência vigente, os primeiros pensadores se lançam a pensar reciprocamente as diferenças de religião e política, de educação e habilidade, de poesia e mito pela identidade do pensamento, pensando a com-pertinência de ser e pensar. Para nós, filhos do petróleo e da técnica , tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por que? – Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia, temos os olhos tão consumidos pelas utilidades que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, mas sobretudo porque, quando pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência, a técnica , o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda, nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não se poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é o útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que tijolo e cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável, caso já esteja acertado que crescer é aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado, o que é o homem. Realmente, pensar é contra-producente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Só não devemos entender o trágico no sentido filosófico da tradição. Neste sentido, tragédia é desgraça, a queda das alturas, a transformação súbita ou paulatina da glória em sofrimento. Trágico é o abandono desesperado do homem às forças da natureza, à vontade dos deuses, à fatalidade do destino. Onde impera a desolação, onde não há salvação humana possível, há tragédia. Apesar de fundamentais diferenças, os mistérios de Eleusis, a razão filosófica, a pregação do cristianismo, o poder da ciência, o progresso da técnica , a força do trabalho, a sociedade sem classes aceitaram este sentido de trágico e procuraram dar cobro à tragédia da condição humana com um evangelho de salvação. A situação de Jó, sentado num monturo de esterco a raspar as chagas do corpo, não é trágica. Jó não é um aniquilado. Vive da fé no Senhor: “O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor”. Em sua atitude de confiança não há tragédia. Tudo que lhe parece sem saída, possui um desígnio de salvação na sabedoria, na bondade e na justiça de Deus. Sempre que se crê numa salvação seja da parte da religião ou da filosofia, seja da parte da ciência ou do trabalho, seja da parte do progresso ou da sociedade, a existência perde os acentos trágicos, apesar de todo sofrimento, de toda desventura, de todas as lutas. Nenhuma dor é tão desesperada, nenhuma desgraça é tão desolada que já não haja salvação. O sentido filosófico de tragédia se orienta pelo homem. Restringe-se a determinada linguagem da condição humana. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Um pensamento originário é a coragem de descer às raízes das próprias possibilidades de pensar. Um pensamento originário é um pensamento radical. Procura interpretar os modos de ser da realidade, restituindo as estruturas de suas diferenças à identidade do mistério. O modo de ser, que nos apresenta como presente, não é originariamente um determinado presente cronológico. É tão antigo como a história. Algo, que é e sempre foi como é, por mais que se recue no tempo, é reconduzido ao vigor de um destino que estrutura a dimensão radical do Ser e por isso remonta para além de toda memória historiográfica. É a partir deste diapasão que nos fala o pensamento originário. O que é e como é o espaço-tempo de todas as coisas nas diferenças de seus modos presentes de ser é pensado num pensamento re-velador da identidade no mistério das dicotomias de ser e não ser, de movimento e permanência, de uno e múltiplo, de aparência e verdade. O propósito desta hermenêutica não é corrigir ou substituir-se à ciência. Nem mesmo é o diálogo pelo diálogo mas exclusivamente o que no diálogo se faz linguagem: a identidade que misteriosamente reivindica, de modo diferente, a nós modernos e aos gregos antigos, por ter aviado a aurora do pensamento no Dia do Ocidente. É na viagem deste Dia que o pensamento dos primeiros pensadores se faz originário. Originário não diz, portanto, uma determinação cronológica nem indica uma explicação diacrônica do modo de ser ocidental. Originária é a aurora em que a própria escuridão do Ser se dá em sempre novas vicissitudes de sua verdade, ora como pensamento ora como filosofia, ora como cristianismo ora como modernidade, ora como ciência ora como mito, ora como técnica ora como arte, ora como planetariedade ora como marginalidade, mas sempre em qualquer ora, tanto outrora como agora, só se dá enquanto se retrai como mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Nesta pressuposição reside a única mas também a deficiência fundamental da investigação de H. Cherniss, como se vê da seguinte caracterização: “Um dos métodos favoritos de Aristóteles é a tendência de desenvolver os antecedentes necessários ou as consequências necessárias de uma sentença antiga assim como de reconstruir o escopo original da doutrina em discussão e o sentido por ela visado”. Aristóteles não se propõe extrair a perspectiva originária do pensamento antigo nem apreender o significado pretendido pelo antigo pensador. Seu propósito é apenas descobrir o sentido filosoficamente destinado de uma doutrina, tirando-lhe as consequências que o avio de identidade do pensamento lhe envia nas diferenças entre as vias do princípio e os des-vios do ocaso. O que hoje como propósito se impõe ao pensamento é pensar nas diferenças entre o pensamento originário e o pensamento filosófico e suas decorrências (a ciência, a técnica , a poluição etc), o mistério da identidade no movimento da própria diferenciação histórica. Neste propósito nos valem mais os testemunhos de filósofos que pensam do que testemunhos de qualquer outra fonte, que não pensa. É o sentido filosófico do conselho dado por Hegel a seus ouvintes nos primeiros decênios do século XIX. Por não pensar o que faz, quando trata dos testemunhos de Aristóteles, é que Cherniss nega a existência de uma interpretação aristotélica e equipara o primeiro livro da Metafísica a toda passagem semelhante encontrada em qualquer lugar. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
A reflexão sobre a situação de nossa existência revela a consciência de uma unidade e de uma interrupção histórica. Sentimo-nos viandantes de um único Dia Histórico, que se estende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era atômica. Temos uma consciência nítida de nossa ruptura com a tradição e da diferença entre a manhã e a tarde da História Ocidental. Assim qualquer investigação se insere hoje necessariamente na época da técnica e da ciência. Época da ciência não é, para dizer com Kant, uma generatio aequivoca. Não nasceu por geração espontânea ex nihilo sui et subiecti, como diriam os aristotélicos latinos. Pertence a uma tradição milenária, da qual é uma transformação histórica. Quem hoje se empenha num problema filosófico, não pode impedir de achar-se no fim de jornada da grande tradição grega. Pois a metafísica grega não é algo, que num tempo foi, e agora já não é mais. Não se trata de um presente para sempre passado. É uni pretérito ainda hoje presente no vigor e no império da ciência e da técnica . E não só no sentido de que o homem moderno evoca e faz reviver por meio de reconstruções historiográficas o passado de sua história, mas no sentido existencial de constituir o próprio fundamento de seu modo de ser moderno. Heráclito e Parmênides, Platão e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes, Kant e Hegel, Marx e Nietzsche estão presentes, embora transformados pelo dinamismo de seu próprio princípio, no cérebro eletrônico, do qual depende hoje a segurança do Capitalismo e do Socialismo. A consciência dessa ruptura na unidade de uma tradição determina a situação de nossa existência, que impõe ao pensamento moderno a problemática central de suas reflexões. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende repetir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (die Vor-frage) sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Quer ele trate da Sentença de Anaximandro, como o “princípio” (der An-fang) de toda a sabedoria do Ocidente, ou se ocupe dos Fragmentos de Heráclito e Parmênides, nos quais “Ser e Pensar” se compenetram intrinsecamente (innig zusammen-gehoeren); seja que ele explique a Doutrina de Platão como uma “mudança na essencialização da verdade” (Wandel des Wesens der Wahrheit), da qual profluiu primeiramente a “não-essencialização da metafísica” (das Un-wesen der Metaphysik), ou seja, que exponha “a constituição onto-teo-lógica da metafísica” (die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik), que encerra em si a aporia (Verlegenheit) de toda a filosofia ocidental; quer interpretando a Crítica da Razão Pura de Kant, como uma “fundamentação da metafísica” (eine Grundlegung der Metaphysik) ou evocando a Lógica Hegeliana e o Nihilismo Nietzscheano, como a “consumação” (Vollendung) da Época metafísica da história do ser (Geschichte des Seins); quer esclarecendo a poesia (Dichtung) de Hölderlin, quer expondo o significado de Rilke ou um verso de Moerike para o “tempo da penúria” (dürftige Zeit), quer instituindo a questão sobre a técnica (die Frage nach der Technik) ou investigando a essencialização da linguagem (das Wesen der Sprache), etc. etc. sempre se propõe Heidegger a questão central do pensamento sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Esse propósito assumiu toda a clareza desejável desde a primeira página de Sein und Zeit: “Será que já temos uma resposta à questão sobre o que propriamente entendemos com a palavra “sendo”? — De forma alguma. Por isso se trata de pôr novamente a questão sobre o Sentido do Ser. Será que nos sentimos hoje perplexos em não compreendermos a expressão, “Ser”? — De forma alguma. Por isso convém primeiramente despertar de novo uma sensibilidade para o sentido dessa questão. A elaboração! concreta da questão sobre o Sentido do Ser é o propósito do seguinte tratado. A interpretação do tempo, como o horizonte de toda compreensão do Ser, simplesmente constitui a sua meta provisória” (Sein und Zeit, p.l). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Com efeito o vigor histórico do esquecimento do Ser, que na era da técnica e da ciência atinge o paroxismo de sua virulência, opera na metafísica segundo a dialética de re-velação da diferença ontológica. Nela a Verdade do Ser, retraindo-se e velando-se em si, extrai e re-vela o ente na divergência e convergência entre fundamento e fundado. Jogado por tal dialética, o pensamento metafísico se edifica em duas dimensões. Enquanto estruturado na diferença lógica de ente e ser, reconduz o ente ao fundamento de possibilidade próximo em seu ser e remoto no ser supremo. Essa estrutura é a dimensão do pensado no pensamento metafísico. De vez que, por pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico não pensa a diferença ontológica como diferença, a dimensão do pensado é a dimensão do esquecimento do Ser. Por outro lado, uma vez que, para pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico já está determinado pela diferença ontológica, a recondução do ente a seu ser implica a configuração lógica da diferença. Essa implicação não é um nada. É antes a dimensão do não-pensado no pensamento metafísico. Assim o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da tradição ocidental exclui diretamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a dimensão do não-pensado que outra coisa não é senão a dimensão da Verdade do Ser. Por isso diz Heidegger “o não-pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento”. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
No modo cotidiano de ser só vemos na linguagem o instrumento. Uma técnica de comunicação, que nos apresenta, já prontas para o uso, as distinções com que operamos nas situações concretas da vida. Essa linguagem cotidiana não é a essencialização originária da linguagem. É apenas a forma mais frequente de sua presença. A compreensão do Ser, que aqui se articula, entretanto, não é apenas ingênua e primitiva. Uma longa história de pensamento metafísico a precedeu, interpretando instrumentalmente a linguagem na lógica e gramática da tradição. Hoje operamos de modo inconsciente com distinções, que, num supremo esforço de reflexão, foram criadas e estabelecidas pela metafísica. Nos quadros dessa interpretação se movem os recursos e as regras lingüísticas, que hoje determinam as qualidades do estilo. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Pensar é articular o destino do Ser e esse se dá num vigor “epocal”. O pesamento dos pensadores não é, em sua Essência, a estrutura em que eles pensam as referências de ser e ente. É o que eles procuram articular com essa estrutura. Em tudo que dizem, eles querem dizer a Essência do pensamento que se lhes destinou. Daí ser um desconhecimento da dialética “epocal” do destino todo e qualquer esforço de se refutar um pensamento bem como toda tentativa de entendê-lo fora de sua Essência, segundo qualquer jogo de interesses alheios à sua articulação destinada. E se trata de um desconhecimento que se ignora como desconhecimento, por ser já, em si mesmo, um destino “epocal” do esquecimento do Ser. É o tipo do desconhecimento que, predominantemente, se impõe, como conhecimento, na época da técnica e da ciência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
A época da técnica e da ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade-subjetividade do ente como na subjeti-vidade-objetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor. A arte, a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vigência da correlação de subjetividade e objetividade, que hoje vai atingindo o paroxismo, é, pensada como “época”, o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se derrama a escuridão da “Noite Histórica” na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua humanidade, “erra”, sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetividade. A “época” da técnica e da ciência é o império do homem a-pátrida em sua Essência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
2. Desta perspectiva, Heidegger e Wittgenstein aparecem cada um numa luz diferente. Heidegger é o tipo do filósofo alemão. Especulativo, de formação clássica e filológica, empenha-se em repetir toda a tradição metafísica, visando não competir mas despedi-la. Neste empenho, a ciência moderna, em seu modo de reflexão técnico-matemático rigoroso, não lhe serve de modelo mas de sintoma: com o desenvolvimento planetário da técnica , a metafísica celebra, na decadência vigente do pensamento, o maior triunfo de seu domínio histórico. — Wittgenstein é o lógico da língua técnico-científica. Antiespeculativo por excelência, seu Tractatus e as Investigações Filosóficas valem como documentos clássicos da Filosofia Analítica nos círculos do que se poderia chamar de Epistemologia Dogmática. A mentalidade antiespeculativa, que desde Ockham através de Hobbes, Locke e Hume veio dominando o nominalismo inglês, e a crítica fundada na análise lógica da língua, que começou a florescer com Boole, Frege, Russell, Peirce e Moore, convergiram em Wittgenstein numa suspeita cética: toda metafísica, sendo destituída de sentido, é, na acepção própria do termo, uma insensatez, oriunda de uma incompreensão lógica da língua de nossos discursos. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
Hoje a tempestade nos chega, pelo vigor planetário da Linguagem, na civilização da ciência e da técnica . Nos vórtices da planetariedade toda diferença entre Pensamento e Ciência é uma função de referência. Pois sempre de alguma maneira pertence a toda ciência uma semântica. Semântica é a articulação de fatos referenciais com fatos referenciados que uma sintaxe possibilita e exerce. Destituído de semântica, o Pensamento se apresenta como alguma coisa de estranho em nosso tempo e sua tempestividade. É por esta estranheza, por ser daquelas causas, cujo destino é nunca poder encontrar ressonância semântica em seu próprio tempo que o pensamento de Heidegger é intempestivo. Daí toda a incompreensão por parte da ciência e da filosofia. Pertence à atualidade de seu pensamento ser incompreendido pela exatidão de qualquer cálculo. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Na perspectiva do sistema de comunicação estamos ligados ao mundo pelos sentidos. Tudo que imaginamos, construímos ou descobrimos, resulta de uma elaboração longamente sentida de nossa sensibilidade. A tecnologia é a expressão fundamental desta elaboração. Toda técnica constitui uma projeção extensiva de uma função humana, embora nem sempre seja tão visível como a relação martelo-mão. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa
Historicamente a tecnologia, enquanto projeção sensível, é muito mais do que simples extensão dos sentidos. Toda técnica , além de permitir um progresso material, introduz uma reestruturação global e profunda de todo o comportamento humano. Neste sentido, a história da humanidade é um jogo sem fim, a tensão sempre renovada das tecnologias: “Toda extensão, diz McLuhan, seja da pele (as roupas, a casa), seja das mãos (as ferramentas), seja dos pés (os veículos), afeta o homem em sua totalidade: atinge em sua estrutura global o psíquico, o físico e o social”. Para se compreender a História, é preciso analisar, numa espécie de processo de desmontagens, as estruturações técnicas em que o homem foi entrando, e entrando bem. Deve-se despi-lo, numa espécie de strip-tease histórico, não só do avião e da carroça mas dos sapatos, das cidades, do papiro, do alfabeto, de toda projeção tecnológica que constitui o seu “meio”, este elemento marinho em que se acha mergulhado a ponto de se esquecer de suas origens. McLuhan analisa os dois processos básicos desta estruturação mecânica da história ocidental: o alfabeto e a impressão. É a segunda tese. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa
A história do Ocidente se implanta numa. dissociação de vida e trabalho. Antes do alfabeto não havia separação. É que o homem não estava cindido. Os sentidos se achavam em perfeita harmonia entre si e dentro do todo. Com o alfabeto, no entanto, a visão começa a impor-se aos outros sentidos, desenvolvendo-se desproporcional e exageradamente. Uma letra, uma palavra, uma frase são extensões do olho. A forma escrita não apresenta nenhuma relação direta com a realidade. Separam-se rhema e pragma. O olho transmite ao cérebro um símbolo cifrado que o cérebro decifra. Durante milênios, o homem do Ocidente habituou-se a viver o mundo sob uma forma artificial que separa palavra e realidade. O meio de ligação com o real é a relação olho x cérebro em detrimento dos demais sentidos. Esta técnica alfabética age sobre a própria vivência, impondo-lhe uma cisão artificial, em todas as suas integrações. O pensamento separa-se do sentimento, fazendo-se progressivamente racional, linear, sequencial. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa
A situação histórica da humanidade ocidental se vem constituindo e determinando em nosso século por uma explosão de experiências, cada vez mais aceleradas: a rapidez no desenvolvimento das ciências e no progresso da técnica , a velocidade na repetição de duas guerras mundiais de uma virulência destruidora desconhecida, a radicalidade na transformação das normas, dos usos e modos de convivência, a exigência violenta, com suas respectivas repressões, de uma mudança urgente e brusca nas estruturas sociais. Todas estas experiências históricas são outros tantos modos de o homem projetar possibilidades de sua humanidade. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Teoria e técnica são como as escadas. Só se consegue subir à poesia pela escada da língua e do discurso. Mas nunca se chegará à poesia se desde o primeiro degrau de competência e desempenho não se for jogando fora a escada. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada depois de se ter sido colhido pela poesia. A língua e o discurso se tornam veículos da viagem poética quando a viagem libertar os viajantes dos veículos. A poesia é então a Linguagem da paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística
É que descobrir que uma coisa, além de si mesma, apresenta outra, em razão de uma isomorfia de estrutura em todos os níveis dos fatos, é descobrir a mecânica da representação. O grilo não cabia em si. Dispunha de uma mecânica universal a que nada poderia resistir. Aprendeu a falar, pois era a mecânica da linguagem. Aprendeu a cantar, pois era a mecânica da música. Aprendeu a calcular, pois era a mecânica da técnica . Aprendeu a controlar, pois era a mecânica do poder. Aprendeu a conhecer, pois era a mecânica da ciência. Antes o grilo não tinha nem coisas. Agora surge-lhe o mundo, a totalidade dos fatos. Toda a clareira da Floresta ficou grilada de mecânica. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem
Heráclito: Se esta é a experiência ocidental, outra, bem outra é a experiência grega da autoridade histórica da aparência. Sempre de novo, com a novidade de ser cada vez a primeira vez, os Gregos tiveram de acolher a aparência em todas as suas conquistas: os deuses e a polis, o templo e o trágico, os jogos e as artes, a poesia e o pensamento, tudo isso eles criaram no meio da aparência, dominados pela aparência, levando a sério a aparência, conhecendo-lhe na carne a autoridade. Basta lembrar a estória de Édipo. De início, salvador é senhor de Tebas, no esplendor da fama e na graça da aparência, vai sendo deslocado progressivamente desta aparência, que não constitui uma mera impressão subjetiva de Édipo a seu respeito mas a atmosfera, o luar em que aparece toda a paisagem de sua existência, até que, por fim, se lhe re-vele o ser, o não-ser e a aparência, como assassínio do pai e des-re-speitador da mãe. O percurso entre o princípio e o fim é o curso de um único combate de velamento e des-velamento entre as potências de ser, não ser e aparência. Com toda a paixão de quem é grego, empenha-se Édipo em acolher todo este combate para, nesta acolhida, conquistar o país de sua paisagem e assim deixar ser na angústia da finitude toda a sua fisionomia e toda a sua grandeza humana. / Diana: Em seu poder, o Ocidente não ama o trabalho. O ocidental não gosta de trabalhar por não se con-sentir a afeição da técnica , da disciplina, do instrumento. É o que Hölderlin nos convida a pensar, quando diz: se “a popularidade dos Gregos é a ternura, a popularidade do Ocidente é a secura!” Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito
Heráclito: Como é possível separar-se trabalho, obra, técnica , instrumento e disciplina? E como alguém poderá con-sentir-se afeição? E a secura não pode vir a ser uma ternura? Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito
É difícil para o homem de um mundo transiente e profano aceitar as inúmeras definições, os muitos dogmas, as qualificações, cânones, constituições, sentenças, decisões, regras, ordenações, resoluções, leis, respostas, preceitos, mandamentos de uma Teologia, como a Linguagem salvífica de Deus. Tudo isso lhe parece demasiado antropomórfico e complicado para ser o modo necessário e divino com que Deus se revela a si mesmo como Deus. Será que se pode condenar simplesmente esta resistência como materialismo e racionalismo, como má-fé e ateísmo? Sem dúvida, o homem do mundo transiente e profano é racionalista e ateu mas apenas no âmbito do mundo. No espaço de suas atividades não admite a presença de forças numinosas. Tudo que encontra a seu alcance, é material de transformação para a técnica , é objeto de pesquisa para a ciência. Mas no âmbito de sua existência ele sente e cultiva o Mistério. Respeita e venera o incompreensível. — E é precisamente por isso que resiste e recusa uma teologia. Ela se lhe afigura demasiado complexa para ser divina. Ela sabe demais sobre o mistério de Deus. Fala demais sobre o inefável. E não lhe soa convincente recorrer à revelação de verdades para se construir um sistema de dogmas e apresentá-los em definições como mistérios. Para ele o mistério de Deus é insondável e impenetrável, é singulare tantum, e por isso os muitos mistérios revelados, estes pluralia tantum não lhe parecem senão resultado da complicação de uma dialética humana emaranhada em suas próprias malhas. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia
10. No tocante à diferença entre autoridade e poder, esta provocação nos chega hoje na virulência da funcionalidade de tudo e de todos. Em seu processo de elaboração, o Ocidente aciona a integração das possibilidades humanas numa estrutura que submete a seu serviço todas as estruturações possíveis da humanidade. A vida desta estrutura é a força da igualdade. No movimento de sua tendência absorvente, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A sua verdade é una, universal, necessária. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber, na técnica , a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da funcionalidade, que atinge hoje o paroxismo de suas virtualidades. Pois o que vale são as funções. Tudo, que preencher a mesma função, se equivale. Na procura da função universal se concentram todos os esforços da modernidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
A perspectiva de diferença do presente diálogo é constituida pelo Pensamento Essencial (das wesentliche Denken) de Martin Heidegger. Em seu processo de elaboração, o Ocidente é o movimento de integração das possibilidades do homem numa estrutura determinada, que submete a seu serviço todas as demais estruturas possíveis de hominização. O característico desta estrutura é a identidade “lógica” de racionalidade e animalidade. Segundo a tendência absorvente de sua virulência, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A verdade é una, universal e necessária. Sua essência está na adequação como na lógica reside o seu lugar gerador. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber, na técnica , a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da Metafísica que atinge sua plenitude no Espírito Absoluto. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
O regresso parte da situação atual e é uma passagem da tecnologia da sociedade industrializada (funcionalização, automação, burocratização, massificação, mundo dessacralizado) para a Essência profunda da técnica . Esta é a estrutura metafísica onde o Ser é esquecido enquanto diferença. Trata-se de um vigor Histórico que aprofunda seu domínio no mundo técnico, alçando-se cada vez mais a um nível planetário. Sua grande potência Histórica é fazer secar a fonte das forças capazes de individuar os perigos de sua dominação.” Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
O regresso é assim “ein langer Weg”, um longo caminho. E um longo caminho no meio de uma noite Histórica. O Pensamento Essencial trabalha na caminhada deste caminho de cuja duração e persistência não se conhece a medida. “Der Schritt zurueck verlangt eine Dauer und Ausdauer, deren Mass wir nicht kennen. A noite Histórica por onde caminha o caminho do regresso, é o império técnico do niilismo. Daí o primeiro passo da caminhada consistir em ultrapassar o niilismo da técnica , ingressando no vigor de sua Essência: “Die Einkehr in sein Wesen ist der erste Schritt durch den wir den Nihilismus hinter uns lassen”. Nesse ingresso se opera uma tomada de consciência da metafísica implícita no sistema de controle. Trata-se de explicitar como o mundo técnico leva à plenitude de seu vigor Histórico a estrutura onto-teo-lógica da metafísica do Absoluto. Para isso há de se promoverem as forças do Pensamento Essencial. É que a decadência do pensamento já atingiu tal profundeza que grande é o risco de os homens perderem a força necessária para perceberem a decadência e avaliá-la como decadência: “Der geistige Verfall der Erde ist so weit fortgeschritten, dass die Voelker die letzte geistige Kraft zu verlieren drohen, die es ermoeglicht, den (im Bezug auf das Schicksal des “Seins” gemeinten) Verfall auch nur zu sehen und als solchen abzuschaetzen”.” Assim a força historicamente determinante da estrutura onto-teo-lógica foi impedindo progressivamente a presença de Deus na História do Ocidente, mobilizando em seu lugar a dinâmica técnica do Absoluto. A chave, portanto, para se compreender por que Deus não se identifica com o Absoluto da metafísica do Espírito “”e por que o Pensamento Essencial não pode pensar Deus como o Absoluto e por conseguinte tem de silenciar sobre Deus nos dá a própria estrutura da metafísica. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto