Carneiro Leão – saber

Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.

Devido ao modo estranho de seu vigor a filosofia se vê relegada, na idade da ciência mais do que em qualquer outra idade, a uma posição marginal. Por isso se torna imperiosa a necessidade de se discutirem as relações entre filosofia e ciência. Pois só discussões dessa natureza poderão preparar o espírito do homem moderno para a grande decisão. A decisão sobre o sentido de sua existência, que toda época histórica sempre de novo impõe ao homem finito. Na era atômica se trata de uma decisão que interessa ao significado existencial-ontológico da ciência: será a ciência a suprema instância do saber humano ou haverá um outro saber mais originário em que se lançam os fundamentos, se traçam os limites e dessa maneira se assegura à ciência sua verdadeira eficácia? Para o destino histórico do homem moderno será necessário um tal saber originário ou poderá ser ele dispensado e largamente substituído? — É isso o que a presente conferência não diz mas procura dizer em tudo que diz ao discorrer sobre a posição da filosofia na idade da ciência. ; Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

É sempre um esforço penoso e muito difícil o acesso à ciência, apesar de toda a ajuda dos professores. O processo de aquisição da ciência descreve uma trajetória de crescentes graus de dificuldades: desde o saber pré ou extra-científico da criança até o saber profundo e transformado do especialista. Numa ciência temos que ser introduzidos. De antemão não já estamos em seus domínios. Não nascemos com nenhuma ciência inata. O homem pelo simples fato de ser homem ainda não é cientista. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Animal racional, o homem arde por necessidade de sua natureza, no desejo de saber . Numa sede insaciável de sempre mais conhecimentos. Para o homem finito não há saber que seja completo, definitivo, satisfatório. Que lhe apague a atração do desconhecido, que se contente consigo mesmo. Há homens que se contentam e que, logo satisfeitos, se instalam tranqüilamente numa distância respeitosa frente ao desconhecido. São as naturezas que herdaram pouco do fogo de Prometeu. Mas, em si mesmo, o saber humano como tal, justamente por ser finito, é sempre trabalhado por uma insatisfação sem fim: “no vigor de sua constituição ontológica todos os homens desejam ardentemente saber “, é a frase com que Aristóteles abre o Primeiro Livro da Metafísica. A ligação profunda entre saber e desejo, o nexo íntimo de razão e paixão não consiste numa mistura de faculdades inferiores e superiores da alma. Já em si mesmo o desejo de saber é o mais selvagem dos desejos e a razão, a mais violenta das paixões, muito embora a psicologia vulgar, concebendo a personalidade numa espécie de topografia de regiões altas e baixas, oponha a razão à paixão e cante os louvores do saber desapaixonado. Na verdade, porém, o saber humano é sempre carregado dinamicamente. Mas sua dinâmica não se reduz ao processo psíquico, à sucessão de atos e representações do pensamento. É a própria estrutura do saber em si mesma que nunca é estacionaria mas fundamentalmente revolucionária. É evidente que não se deve confundir a grandeza positiva da revolução do saber com uma outra grandeza. A grandeza negativa de outros usos da palavra revolução. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Nesse sentido o desejo de saber é um fenômeno central da existência, constitutivo do homem como homem. Mas não se deve identificar desejo originário de saber com ciência ocidental. Esta é apenas uma configuração histórica e sempre limitada daquele. Na era atômica, em que impera a informação da ciência, o saber constitutivo da existência vê sua dinâmica revolucionária ameaçada de cassação pela racionalidade científica. Trata-se, porém, de um esforço semelhante ao do Barão de Münchhausen, tentando arrancar-se do pântano pelos cabelos. Pois a ciência, longe de ser um fenômeno existencial necessário, já é em si mesma uma articulação histórica do próprio saber originário. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Toda trama de relações nunca se compõe apenas de dois termos. Pressupõe antes um terceiro fator, que serve de espaço comum à articulação das divergências e convergências entre os termos relacionados. No caso de ciência e filosofia é a existência humana, que, em seu desejo originário de saber , serve de ponto comum de referência. A identidade e diferença, a convergência e divergência entre ambas, se articulam em função da atitude do homem frente a elas. Na terra dos homens a ciência, não constituindo uma exteriorização essencial da existência, se afirma numa presença de fato, historicamente condicionada. Isso, a ciência. E a filosofia, como o homem se com-põe com ela em sua existência? Existirá ele de per si numa situação extra-filosófica ? ou enquanto existe, in-siste necessariamente no espaço da filosofia? Ou só edifica seu ser dentro da filosofia em virtude da mesma tradição cultural, que lhe impõe também a ciência? Haverá uma genealogia da filosofia de uma vida pré-filosófica, como há uma genealogia da ciência da vida pré-científica? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Essa luz estranha, que a filosofia irradia de si, não resulta, porém, de uma deficiência de conhecimentos. Não é, por saber mos pouca coisa, mas por saber mos muita coisa demasiado externa da filosofia, que encontramos dificuldade em pensar filosoficamente. Hoje conhecemos toda uma galeria historiográfica de grandes filósofos, um museu doutrinário, em que há concepções, opiniões e interpretações para todos os gostos, classificadas em rótulos precisos: realismo, idealismo, socialismo, criticismo, existencialismo, a lista de todos os ismos não têm fim. Se é verdade que em sua presença a filosofia não é uma ciência, não é menos verdade que em sua ausência o sistema dos ismos compõe uma ciência da pior espécie, a ciência de catalogar as doutrinas filosóficas, e a intitula de história da filosofia, muito embora de história e filosofia mesmo só haja o título. Pois saber filosofia não é apenas saber as sentenças dos filósofos, o que eles pensaram e disseram. É saber pensar e dizer o que lese quiseram pensar e dizer. Essa é para Kant, que certamente sabia filosofia, a máxima de toda reflexão filosófica. Máxima, que ele recordou a Eberhart e consortes com as palavras: “.. .muitos historiadores da filosofia… não percebem a intenção dos filósofos, por desprezarem a chave de toda interpretação filosófica, a essência da própria razão, e por isso não conseguem ver, por entre o que os filósofos disseram, o que quiseram dizer”. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

No primeiro livro da Metafísica Aristóteles esboça uma graduação das dimensões em que se articulam as possibilidades da sabedoria. Num primeiro grau a percepção sensível, “aisthesis”, se estende a todos os seres vivos. Localizada no espaço e situada no tempo a sensibilidade percebe apenas o que lhe é dado “hic et nunc”. Alguns seres vivos, porém, os animais, retém o conteúdo de suas percepções, integrando-os na síntese da memória, “mneme”, e nesse sentido já sabem mais, são mais sábios do que os vegetais. Os homens, além de sensibilidade e memória, dispõem ainda de experiência, “empeiria”, e pela experiência se lhes torna familiar uma prática no trato com as coisas, o que os gregos chamavam “techne” e que melhor do que “técnica” traduz a palavra portuguesa “perícia”. Da “techne” procede num plano superior a reflexão sobre os princípios constitutivos da existência, a “episteme”, cuja tradução por ciência é no mínimo desviante. Por fim coroando, como chave, toda a abóbada da sabedoria, a suprema forma de saber , o esforço pela “sophia”, a filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

O que Aristóteles pretende nesse esquema não é um sistema estático de graduação, uma cadeia de vasos comunicantes desde as plantas através dos animais até o homem e dentro do espaço humano desde os técnicos através dos cientistas até os filósofos. A graduação constitui, como um todo, um movimento só, um único processo de autopotenciação, de auto-essencialização do saber . A filosofia não é uma posse tranqüilamente estática. É a dinamização de uma conquista. Ao homem finito não é dado desde sempre nem para sempre o ser de sua essência. Para ser aquilo que é, ele deve lutar na conquista das estações de sua constituição ontológica. O último grau da graduação já opera virtualmente desde o primeiro, constituindo-se na força, que aciona todo o processo da sabedoria. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Sensibilidade e memória, experiência e perícia, reflexão e filosofia formam a perspectiva em cujo horizonte se articulam previamente as dimensões significativas das palavras “sábio”, “sophos”, e “sabedoria”, “sophia”. Aristóteles ausculta e investiga as condições de possibilidade, implícitas na mais vulgar compreensão, das palavras ” saber “, “sábio” e “sabedoria”, a fim de explicitar a maneira latente em que a filosofia exerce uma virulência velada mas vigorosa no ambiente da vida prática. O pré-sentimento, difuso na existência, do que é sabedoria, serve-lhe de esteira à investigação temática da filosofia. Nela se deslindam as pressuposições, que sempre se fazem, mesmo nas condições da vida prática mais alheias a um interesse filosófico. O homem só chegou à filosofia, por sempre conhecê-la virtualmente nos ventrículos de sua existência, por sempre necessitar dos tentáculos de sua força até mesmo para poder negá-la. Supremo grau de autoconsciência da existência, a filosofia não é um saber , que simplesmente aspira a conhecer alguma coisa, independente da existência, mas um saber “kai tou eidenai charin”, um saber , isto é, que, tendo por força o jato próprio do saber humano, como tal, tende à suprema projeção da existência. Assim, o que, re-velando o dinamismo inerente à sabedoria, Aristóteles procura pensar no início da Metafísica, é a presença da filosofia na existência, a trama das relações, que soldam numa interdependência indissolúvel o ser do homem ao ser da filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Nessas questões milenárias a filosofia se essencializa como ontologia, articulando a pré-compreensão do Ser no sistema dos conceitos transcendentais, que instauram na totalidade dos entes as regiões de objeto e os projetos de constituição das pesquisas científicas. Pois nas categorias ontológicas se desenvolve a interpretação do sentido da realidade e a concepção da essência da verdade, que empurram o dinamismo de sucessão das épocas históricas. Sendo a esteira, em que se desenrola historicamente o desejo originário de saber , a pré-compreensão do Ser não é um processo no cérebro de um mamífero inteligente. Não se trata do modo de o homem comportar-se e referir-se à essência daquilo que é. Trata-se antes de tudo da modalidade de o próprio Ser inserir-se na existência, reportando às oscilações de sua Verdade as vicissitudes e peripécias da história humana. É a maneira em que o Ser mesmo apela o homem, impelindo-o à sua luz temporal. Nada de mais profundo determina o vigor da existência do que esse apelo. As conhecidas auto-interpretações do homem, a antropológica, como “homo sapiens”, a psicológica, como “animal rationale”, a técnica, como “homo faber”, a socialista, como “operário da história”, permanecem todas, em profundeza e originariedade, muito aquém da ontológica, que o interpreta como o lugar da auto-revelação do Ser. O homem é o prisma do Ser. O receptor da mais antiga mensagem e da primeira de todas as revelações. É o ouvinte de um apelo, que rompe o silêncio da noite dos entes e compele o Filho de Prometeu a existir no testemunho do fogo do Ser, promovendo os significados das coisas. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Geralmente se opõe pressentimento a saber , ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber . No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber . Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência. É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Todavia por ser a chave de um saber seguro e universal, a consciência histórica não pode ser construída mas apenas encontrada pelo filósofo. O fracasso da metafísica está em não haver visto que toda concepção abstrata e uma construção que passa por cima da dualidade fundamental de coisa e vida e se descuida por isso de distinguir rigorosamente as ciências da natureza das ciências do espírito. A vida, como o dado originário, o ponto de partida radical é o fundamento último de toda filosofia”, exige um método próprio de conhecimento. Inacessível à conceituação especulativa, inviável ao método transcendental”, não pode ser experimentada em si mesma devido à escravidão de toda experiência humana aos conceitos.” A única via de acesso que resta é a vivência (Erlebnis) das manifestações e dos produtos que nos deixou a vida no curso da história.” As ciências do espírito são as ciências da vida, a sua objetivação. E por isso a análise dessas em seu desdobramento histórico subministra o único caminho aberto à consciência moderna para uma justificação satisfatória do saber humano. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

O mundo humano descansa na coesão de indivíduo e espírito objetivo” e “sobre a compreensão de ambos repousa a história”. A segurança do saber histórico instaura a compreensão no nexo da vivência: “O primeiro conhecimento que nos dão a vivência e compreensão é a presença nelas da conexão. Só compreendemos conexões… Na história e sociedade sempre se articula a relação entre o todo e as partes. E é essa relação que determina a forma de atuar no mundo histórico”. O binômio vivência-compreensão se basta a si mesmo para edificar o saber histórico : “não existe nenhum pressuposto hipotético… pois a compreensão penetra nas manifestações alheias da vida por uma transposição fundada na plenitude das vivências próprias”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

Estabelecido o significado radical na estrutura vivência-compreensão para a consciência histórica, levanta-se o problema das condições de possibilidade de sua articulação nas ciências do espírito. É aqui que sente Dilthey a tarefa mais importante de seus esforços de filósofo. Na Crítica da Razão Pura, Kant apresentou a articulação das condições de possibilidades das ciências da natureza. Ora, em razão da diferença fundamental entre espírito e natureza a Crítica de Kant não serve para uma fundamentação das ciências do espírito. Para estas oferece Dilthey sua Crítica da Razão Histórica: “Devemos sair da atmosfera tênue e pura da crítica kantiana da razão para dar satisfação assim à índole bem diferente dos objetos históricos”. “O último problema de uma crítica da razão histórica consiste em saber … se a conexão experimentada, o valor, o significado, o fim experimentados na história, constituem a última palavra do historiador”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

Dilthey não pode construir sua Crítica da Razão Histórica com os recursos do método transcendental. Tem que partir da própria vida em seu curso. Tem que tentar justificar a história historicamente por si mesma. A sua Crítica não poderá ser senão a investigação da crítica que a vida faz de si mesma em seu curso histórico. Para isso dispõe apenas das ciências do espírito que são as objetivações da vida no tempo. A missão da Crítica da Razão Histórica consiste em ressaltar e distinguir a estrutura das ciências do espírito, a fim de acompanhar o “fio condutor” que em seu decurso a vida deixou como justificação do saber humano a seu respeito.” Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

2) Nossa época vive a avalanche de um sistema de controle, montado na equação: saber = controlar = poder. Uma voracidade insaciável submete ao serviço do sistema as possibilidades humanas. Todas as dimensões do homem, materiais, naturais, culturais, espirituais, são reconhecidas, promovidas e protegidas mas, ao mesmo tempo, perdem sua liberdade. O poder crescente do consumo, da automação e massificação impõe um quociente progressivo de desumanidade. Não, decerto, no sentido de que os homens se tornem cada vez mais animais e sim no sentido de que o próprio controle, como força coletiva, se preocupa sempre menos com o homem e sua dignidade. No sistema de controle não há lugar para futuro histórico. Só há espaço para o progresso. É que progresso significa maior controle e mais poder. O grande desafio de nossa época é o desafio de uma conversão do homem para sua jovialidade. Impõe-se uma conversão, que reponha o homem no lugar de sua humanidade, na sua essência de futuro. — Ora, vários são os caminhos em que, neste contexto sufocante, a juventude busca esta conversão. É a terceira pergunta: Como a juventude procura realizar a jovialidade no mundo de hoje? Aprendendo a pensar I: Juventude e Tóxico

Em qualquer caso, quer seja questionada com a questão de fundo ou passe imperceptível pelas questões, quer nos mobilize mais intensamente ou nos deixe indiferentes, nunca é a questão que, na ordem cronológica das questões, questionemos primeiro. Mas é a primeira questão numa outra ordem. Na ordem das próprias possibilidades de questionar; no espaço, portanto, que ela mesma abre e instaura. É a primeira questão no sentido dinâmico de questão fundamental; da questão que se acha no fundo de toda e qualquer questão. Que a existência é o penhor de todo empenho e desempenho, é a questão de todas as questões verdadeiras, isto é, daqueles que, ao questionarem qualquer coisa, se colocam a si mesmas em questão. É a questão que sempre, sabendo ou sem saber , se questiona em toda questão. Nenhum questionamento, nenhum problema teórico ou prático, racional ou emocional, natural ou cultural se compreende a si mesmo se não compreender a questão de todas as questões, isto é, se não questioná-la. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

A pergunta decisiva agora é saber o que é ensinar e aprender. Ao ouvir a pergunta e sentir-lhe a necessidade, poderemos facilmente pensar que a resposta só pode ser dada pela ciência. Mas só poderemos pensar assim, se e enquanto em nosso empenho de perguntar e desempenho de responder, não nos colocarmos, nós mesmos, em questão. Pois, questionando a questão fundamental, de que a existência é o penhor de todo empenho e desempenho, a ciência não é senão uma determinada elaboração e exercício de ensinar e aprender. Mas então o que há com ensinar e aprender que pode não ser explicado somente pela ciência? — A Linguagem grega é a passagem obrigatória de todos os caminhos do saber e da cultura ocidental. Como chamavam os gregos o movimento de ensinar e aprender? Chamavam com um só radical: mantháno. Assim, máthesis é o ensino e a aprendizagem, tanto no sentido do que é aprendido e ensinado, como no sentido do processo de ensinar e aprender. Mathémata, o que pode ser ensinado e o que pode ser aprendido; e mathetés, o aluno, aquele que ensina aprendendo; o professor, aquele que aprende ensinando. Pela língua dos gregos, portanto, a Linguagem nos diz que ensinar e aprender toma a realidade num determinado aspecto. E o problema é precisamente saber qual será este aspecto. Quando se ensina e se aprende uma coisa, em que perspectiva e sob que ângulo se toma a realidade? A resposta é que então se toma a realidade enquanto pode ser aprendida e pode ser ensinada. Aprender é um modo de tomar posse: de apossar-se e de apropriar-se. Mas em que nível e em que acepção? Pois podemos tomar uma pedra e colocá-la numa coleção. Nas bulas dos remédios se lê muitas vezes: tomem-se três drágeas ou seis gotas. É que tomar diz vários modos de apossar-se, apropriar-se e dispor de uma realidade. Dentro dessa variedade, qual será o modo de tomar que exerce o aprender? Segundo o jogo da Linguagem, não podemos propriamente aprender uma realidade, por exemplo, um veículo. Do veículo só podemos aprender o uso, o valor, o funcionamento, a fabricação etc. Em todo caso, temos aqui uma indicação e um primeiro aceno sobre o modo de tomar próprio do aprender. Aprender é um tomar em que se apropria e se dispõe do uso de alguma coisa. Esta apropriação se dá pelo treino e exercício. Mas, por outro lado, treinar e exercitar-se é apenas uma espécie de aprender. Nem todo aprender é treinar. E o que mais se aprende num veículo além do uso e funcionamento? Pelo que se toma e como se toma a realidade, quando dela aprendemos alguma coisa? Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

Na escola de motorista treinamos e nos exercitamos no uso até nos apossarmos dos meios e modos de lidar com o carro. Só então lhe dominamos o uso. Dominar o uso significa sintonizar nosso modo de proceder e agir com o que exige e requer o funcionamento do veiculo. Mas no treino não aprendemos apenas a debrear, frear, acelerar, guiar os movimentos do carro. Não aprendemos apenas a manejar e coordenar os reflexos mas, em tudo isso e por tudo isso, aprendemos sobretudo a conhecer o veículo. Aprender inclui sempre um conhecer. Nos treinos aprendemos a conhecer o carro. É que na aprendizagem há dimensões de aprender, tais como aprender a usar, aprender a conhecer. E este aprender a conhecer possui vários níveis e graus. Assim, aprendemos a conhecer um determinado carro, aprendemos a conhecer um carro de passeio, um carro de carga; aprendemos a conhecer um carro mecânico ou um carro automático, em suma, aprendemos a conhecer o que é um veículo. No treino e exercício, que se restringe apenas a aprender o uso, o aprender a conhecer se mantém dentro de determinados limites. Só aprendemos a conhecer o carro o necessário para ser motorista amador. Há ainda no carro muito mais para aprender a conhecer. Por exemplo, as leis de eletricidade, de aerodinâmica, de mecânica, de combustão, a1 combinação e mistura de certas substâncias, as leis de geometria. Há ainda a aprender o que é um instrumento em sua instrumentalidade, em que sistema de relações econômicas, sociais, humanas tem seu lugar um veículo. Mas disso tudo não necessitamos saber para dirigir! Certamente que não. O que não quer dizer que não pertença também e necessariamente ao carro. Pois quando se trata de fabricar o veículo, cujo uso aprendemos nos treinos, o fabricante deve saber que função e finalidade, que papel e valor terá o carro em todos esses níveis. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

A respeito da realidade de qualquer coisa há também um aprender a conhecer mais originário ainda. Algo que deve ter sido aprendido previamente, para que estejam à disposição modelos, peças e acessórios, mercados, fábricas e publicidade. É o aprender a conhecer o sentido de um veículo. E é este sentido, o que deve ser tomado antes de mais nada; o que sobretudo deve poder ser ensinado e aprendido. Pois este aprender a conhecer o sentido constitui a base de sustentação e o fundamento de possibilidade para qualquer outro aprender. É ele que possibilita a produção do carro, assim como o carro produzido é a base de referência e o fundamento de possibilidade do uso e do treino. O que aprendemos no uso e exercício não passa, pois, de um setor apenas do que pode ser aprendido e ensinado a respeito da realidade. E é este setor limitado do uso, do funcionamento, do know how, dos modelos que nos proporciona a informação, enquanto o aprender originário é aquele tomar em que se toma conhecimento do sentido de uma realidade, de um veículo, de um instrumento, de um modelo, de uma função etc. Mas isso, este aprender a conhecer o sentido, propriamente nós já temos. Ao aprender a conhecer um carro de qualquer categoria, finalidade ou modelo que seja, nós não aprendemos pela primeira vez o sentido de um veículo. Já o sabemos e já o devemos saber , de alguma maneira, do contrário nunca chegaremos a perceber o carro como veículo, nem a entender as lições do treino. Pois é por já o saber mos que o olhamos, e que se nos torna gradativamente visível como carro. Sem dúvida, o sentido de um veículo só o sabemos previamente em suas invariantes gerais e de modo muito indeterminado e impreciso. E não obstante, ao aprendermos nos treinos de modo variado e preciso, não fazemos mais do que tomar progressivamente conhecimento de algo que, de alguma maneira, já temos. Pois é justamente neste tomar posse do que já temos, que reside o modo de ser e todo o vigor de ensinar e aprender. Assim, em sua essência de formação, ensinar e aprender não é outra coisa do que tomar conhecimento da realidade enquanto já a temos e a sabemos. Conhecer, na dinâmica originária de formar, é um nascer com, um reconhecer: do amor a amorosidade, da vida a vitalidade, do ódio a odiosidade, da morte a mortalidade, do outro a alteridade, da pessoa a pessoalidade, do instrumento a instrumentalidade, da matéria a materialidade, do animal a animalidade, do homem a humanidade, das diferenças a identidade. Sendo um tomar, o aprender nos apresenta um propósito muito estranho. Pois nos propõe um tomar em que no fundo se toma o que já se possui, a nossa identidade. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

É por este aprender que responde o ensinar. Ensinar é um dar e prestar. Mas o que no ensino se dá e se presta, não são conteúdos, doutrinas, técnicas, em uma palavra, informações apenas. São condições e indicações para se tomar e aprender por si mesmo o que já se tem. Por isso se alguém aprende e toma apenas conteúdos e doutrinas, técnicas e know how, se armazena apenas informações, não aprende. Pois aprender não é acumular, como crescer não é aumentar de tamanho. Só aprende quem sabe, no que compreende, o sabor do que já possui, a riqueza misteriosa de sua identidade. Acontece realmente um aprender, quando a compreensão do que se tem, for e vier a ser sempre um dar-se a si mesmo sua própria identidade. Neste movimento radical, ensinar passa sempre de simples informação e explicação para vir a ser formação e criação. Formar é deixar o outro aprender, integrando no que ele é, os limites do que ele não é. Aprender é muito mais difícil e fundamental do que ensinar. Só quem realmente sabe aprender, e somente na medida em que o sabe, pode realmente ensinar. O professor é realmente professor enquanto e na medida em que for mais radicalmente aluno. Pois ensinar exige e impõe a ascese de aprender; a ascese de constantemente assumir tanto a ignorância como o saber do que já se sabe. Não apenas aquele que já sabe tudo não pode nem aprender nem ensinar. Também não o pode quem não assumir o saber de sua ignorância, quem não reconhecer que sabe alguma coisa. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

Aprender-e-ensinar é pois a identidade e diferenciação de nossas diferenças com a realidade, tanto com a realidade que nós mesmos somos, como com a realidade que nós mesmos não somos. Para aprender, não podemos receber tudo mas devemos, de certo modo, trazer alguma coisa conosco para o encontro. Os gregos chamavam esta dinâmica, do que pode ser aprendido e do que pode ser ensinado, de máthema, donde provém os termos ocidentais de matemático e matemática. Quando os ouvimos, associamos logo números, funções e conjuntos. E realmente o matemático e os números se acham numa relação íntima. A questão é apenas saber se tal relação existe porque o matemático é algo numérico ou porque o número é algo matemático. Neste último caso, por que então é sobretudo o número que vale e se considera como o matemático por excelência? Agora, jogando no jogo da dinâmica de aprender e ensinar, poderemos responder. Entramos numa sala e dizemos que nela há três cadeiras. O que é o número três, não nos dizem as três cadeiras, nem três professores, nem quaisquer outras três pessoas ou coisas. Ao contrário, só podemos contar e dizer que há três cadeiras, por já conhecermos e trazermos conosco o sistema dos números naturais. E ao contarmos as cadeiras, ao reconhecermos o sistema dos números naturais, não fazemos senão tomar conhecimento de algo que, de alguma maneira, já temos. Este tomar conhecimento e aprender se diz em grego manthano. O número é algo que pode ser ensinado e aprendido, é um máthema. Por que então em nosso contacto e relacionamento com as coisas, ao contar com elas e calculá-las, se consideram os números como o matemático por excelência? — Porque constituem culturalmente o matemático mais próximo e mais freqüente. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

A falta de pensamento vive numa fuga. Na fuga da angústia de pensar. É tão angustiante pensar que não queremos nem ver nem reconhecer a indigência de pensamento. Chegamos até a negar-lhe a possibilidade de presença. Como é possível fugir de pensar numa época como a nossa, na era da ciência e da técnica? Como se pode falar hoje em indigência de pensamento, quando por toda parte se multiplicam os sucessos do saber e cresce o interesse pelo conhecimento? O que não nos falta hoje é pensamento. Em nenhum outro tempo se planejou com tantas perspectivas, se investigou tão fartamente, se investiram tanta energia e recursos em pesquisas, como hoje em dia. Onde está a falta de pensamento? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Não é de hoje, desde sempre o pensamento do sentido é um empenho de pensar com que não podemos fazer nada e do qual todos nós, na medida em que somos escravos, sempre rimos. Na tempestade de nossas escravidões exerce a serenidade de um vigor intempestivo. Pois, se com o pensamento do sentido não podemos fazer nada, resta ainda saber se o pensamento do sentido não faz alguma coisa conosco, levando-nos a sentir a fossa da angústia, até mesmo no terreno baldio da falta de pensamento em que se debate hoje nossa fuga de pensar. Mas a intempestividade não é a única restrição que sempre se faz ao pensamento do sentido. Também se alude à ascese de seu esforço. Para todas as ciências, artes ou ofícios se exige muita paciência e um longo aprendizado. Não basta ter olhos, dedos, material e instrumentos para fazer um sapato. É preciso aprender com a experiência. E ninguém chia. Somente para pensar o sentido é que não se toleram exigências. Todo mundo se julga com todo o direito de chutar. Pois todos não trazem na razão a medida da verdade, como se não trouxessem nos pés a medida do sapato. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

O que se retira neste aqui e agora? — Não sabemos. Nós não sabemos o sentido de nosso encontro. E trata-se de uma experiência radical de não saber . Pois com ela aprendemos o Nada de todas as nossas pretensões. Tanto da pretensão de saber como da pretensão de não saber . O sentido de nosso encontro se retira. E é justamente ao retirar-se que nos avia à viagem da filosofia e psicanálise. — Filosofia e psicanálise. Na retirada, somos enviados à viagem de um “e” para um “e”. De viagem o e não é apenas sintagma. É também desafio. Como sintagma, evoca simplesmente uma pertinência. Não a determina nem define. Como desafio, provoca a solidez de uma integração originária. E originária, porque é desta integração que filosofia e psicanálise receberão as determinações de suas diferenças e as definições de sua recíproca pertinência. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Para a medicina, um sintoma é um fato. Ora, sendo sempre feito, todo fato resulta de causas. É um efeito. Por isso, para o novo universo, a neurose não é um sintoma mas um sentido. Todo sintoma pertence ao universo de discurso dos fatos e é como tal que se torna objeto de pesquisa e tratamento de ciências fatuais. A medicina é uma ciência de fatos. Quando um médico diz que a medicina só conhece o homem da sola dos pés até aos cabelos da cabeça, está dizendo, sem dúvida, uma verdade. A questão é apenas saber sobre que está dizendo uma verdade. Decerto, não está falando sobre a verdade do homem, mas a partir dela sobre a verdade da medicina. Pois a verdade sobre que se fala nunca é a verdade a partir da qual se fala. Do contrário já não haveria nem homem nem medicina para falar. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Com simplesmente ser, a psicanálise está sempre em crise. A crise é crítica por ser clínica. Em crise, a psicanálise nos fala de outro Freud. De um Freud, que não conhecemos mas somos em tudo que de Freud temos consciência de saber . É que, na própria consciência de nossos conhecimentos, ele mostra o espelho do inconsciente e nos convida a ver o sol da clínica. Aprendendo a pensar I: Onipotência e Coisa em Si

Entre intuição e pensamento subsiste, portanto, uma relação recíproca mas assimétrica, de sentido bem determinado. A experiência é uma intuição pensante e nunca um pensamento intuitivo. É a intuição que constitui a essência da experiência e desempenha na correlação com o pensamento o papel central. Só assim se poderá aprender o essencial no exercício da experiência, a saber , a sua finitude radical. Neste sentido aquela primeira frase da “Estética T.” é uma determinação da estrutura da experiência humana. E Kant o diz expressamente: “No homem, toda experiência consta de conceito e intuição”.’ Aprendendo a pensar I: Onipotência e Coisa em Si

Kant usa o termo fenômeno num sentido mais amplo e num sentido mais restrito. Em sentido mais amplo, fenômeno é um modo de ser do real, a saber , o real assim como se dá e revela à intuição receptiva e pensante de uma experiência humana. Num sentido mais restrito, fenômeno indica um aspecto do objeto, o correlato da sensibilidade, desprovido das determinações do pensamento: são os conteúdos das sensações: “O objeto não-determinado de uma intuição empírica chama-se fenômeno”. Aprendendo a pensar I: Onipotência e Coisa em Si

A linha é a linha zero. Em contraste com os dados e fatos, os feitos e fados, com o cheio da ciência, o zero indica o vazio da nesciência. Pois é justamente lá, onde tudo se -esvazia de ciência e escorre para a nesciência, que corre a fronteira do pensamento. Neste sentido, o painel é fronteiriço. A linha da fronteira não é só crítica. É também clínica. Pois nela se decide se o movimento de transpor a linha finda numa ignorância arrogante ou se recolhe em novas possibilidades de saber e não- saber . Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

2. Num painel fronteiriço, para se discutir, é preciso não saber mas pensar. De Hölderlin vararam até nós as palavras, pensadas num instante de poesia: “Zu wissen wenig, äber der Freude viel ist Sterblichen gegeben”: “Pouco saber mas muita alegria foi dado aos mortais”! Não é, pois, o conhecimento, é o mistério que faz pensar o pensamento. Nós só pensamos quando não sabemos. Por isso, quem pode falar das relações da Psiquiatria com a Filosofia, não é nem o filósofo nem o psiquiatra. É o pensador, porquanto o pensador é mau filósofo, o pensador é mau psiquiatra. É mau filósofo, porque não sabe o que é Filosofia. É mau psiquiatra, porque não sabe o que é Psiquiatria! Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

4. As definições são corretas, enquanto todas elas se regem por fatos, que se fazem no mundo da Psiquiatria. Não se pode negar que a Psiquiatria é uma busca metódica tanto de saber como de poder, tanto de saúde como de doença, tanto de vida como de morte. E não só isso. A Psiquiatria é tanto uma maneira de se interpretar o mundo em sua totalidade, como uma instituição com institutos especializados e grupos de pressão, com sociedades de pesquisa e preconceitos de classe, com departamentos e honrarias, com ideologias, clínicas e sanatórios. A Psiquiatria é ofício e profissão, esforço de libertação e poder de repressão, é clínica, tratamento, cuidado, experimento, a lista de todos os “é” não tem fim. A Psiquiatria é tudo isso e muitas outras coisas ainda, porque a Psiquiatria é sempre mais do que Psiquiatria! Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

A hermenêutica originária exige despojarmo-nos de tudo quanto julgamos já saber sobre o pensamento dos primeiros pensadores gregos. O que geralmente julgamos saber , advém-nos da tradição platônico-aristotélica: os primeiros pensadores, quando perguntavam pelos princípios da realidade, tomavam por objeto de especulação sobretudo a natureza. No termo de Aristóteles, eram physiologoi. Suas concepções eram ainda primitivas e ingênuas, se comparadas com o conhecimento da natureza alcançado pelas escolas de Platão e Aristóteles, pelos estóicos e nas escolas médicas posteriores. Uma interpretação, que se desenvolver no espaço destas pressuposições, não poderá deixar de ver nos primeiros pensadores simples precursores da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles. Pois é dessas pressuposições que nos afastamos para, numa hermenêutica originária, pensarmos o pensamento destes pensadores a partir da própria coisa do pensamento. O único indício, que nos servirá de guia, se reduz apenas ao que é e pretende ser um pensamento originário. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Em seu panorama da história da Física, Teofrasto se ateve, em larga escala, ao panorama dos princípios filosóficos, traçado por Aristóteles no primeiro livro da Metafísica, apesar da independência de saber e julgamento, que Teofrasto também aqui demonstra, e não obstante as modificações, que impunha a natureza especial de sua tarefa. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário

10. O confronto, portanto, entre os fragmentos das Physikon dóxai e os textos de Aristóteles autoriza uma parte e desautoriza a outra parte da conclusão de E. Zeller. Teofrasto de fato “se ateve, em larga escala, ao panorama dos princípios filosóficos traçado por Aristóteles no primeiro livro da Metafísica”. Mas nas Physikon dóxai Teofrasto não demonstra nenhuma “independência de saber e julgamento”. Ao contrário, revela à saciedade que as investigações dos textos originais, que teria empreendido, é pura aparência. Na verdade são simples repetições das interpretações já encontradas em Aristóteles. Ademais o método de seleção e a prática de compilar várias passagens diferentes, desgarradas dos contextos, é fonte de confusões e contradições. Mas sobretudo a incapacidade de pensar o vigor do pensamento tanto de Aristóteles como dos primeiros pensadores confere a seus testemunhos uma posição secundária num esforço de se pensar o pensamento dos pensadores dos séculos VI e V aC. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário

A índole específica desse modo humano de ser reside na iluminação da imanência ao mundo pela luz do Ser, na qual os entes aparecem em seu ser: os animais em sua animalidade, os instrumentos em sua instrumentalidade, os homens em sua humanidade, etc. Assim a palavra, ser, é ambígua. Uma vez significa o modo de ser do ente: a saber , que o ente é e aquilo que ele é o que é. Outra vez significa o fundamento de possibilidade em virtude do qual o ente se essencializa em seu ser (ser no primeiro sentido). Para distinguirmos essa dupla significação nitidamente, escrevemos sempre o Ser, tomado na segunda acepção, e suas várias manifestações com letra maiúscula. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

O comércio com os entes, de que necessita o homem para existir, se sustenta e articula numa pré-compreensão multiforme da Verdade do Ser, vigente na dimensão da linguagem, por cuja força o homem sempre usa a palavra “é”. Chama as pessoas e coisas de entes. Com elas se comunica em termos de essência e existência, de constância e mutabilidade, de ser e não-ser, de poder e dever ser, de ser verdadeiro e falso, de vir a ser e sempre ser, de ser presente, passado e futuro. Em todas essas locuções o homem apreende e compreende, colhe e escolhe, une e reúne, confere e difere tudo que lhe advém da totalidade do ente sob o vigor da Verdade do Ser, explicitamente indeterminada mas de extensão e compreensão inesgotável. O termo transcendência indica essa excelência do homem de ultrapassar e superar a obscuridade do ente, com o qual constantemente se comunica em sua existência, iluminando-lhe o sentido, tornando-lhe transparente o ser na luz da Verdade. Já o fato de se usar uma mesma palavra, a saber , luz, para significar tanto um fenômeno externo, a luz do sol, como um fenômeno interno, a luz da verdade, mostra de alguma maneira que o sol não se encontra de modo absoluto e exclusivo fora do homem nem que a verdade se acha de modo absoluto e exclusivo dentro do homem, mas que primária e originariamente o homem sempre existe no mundo, enquanto o transcende, e o mundo sempre transcende, enquanto nele existe. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Os escritos do assim chamado Primeiro Heidegger, desde Das Realitaetsproblem in der modernen Philosophie (O Problema da Realidade na Filosofia Moderna) de 1912 até a terceira edição de Was ist Metaphysik? (O que é metafísica?), encontram-se na primeira etapa da marcha de superação, de sorte que somente a partir da ambigüidade intrínseca de sua dialética se poderá compreender-lhes o sentido no itinerário do pensamento. Todos eles investigam a história da metafísica sob o ângulo pro-jetivo da marcha de superação, evidenciando o esquecimento do Ser nos processos vigentes na existência ocidental. Para exemplificar um caso: na questão metafísica do ente enquanto ente um dentre todos os entes ocupa um lugar privilegiado: o homem, que investiga a questão. Pois bem! Nos vários períodos de sua história a metafísica, embora determinasse diversamente esse privilégio do homem, sempre o representou na única luz, que lhe é acessível, a saber , pelo esquecimento do Ser. Ora, encontrando-se na primeira etapa da marcha de superação, Sein und Zeit empenha-se de acordo com o momento pro-jetivo de seu movimento em remeditar o sentido da essencialização do homem a partir do esquecimento do Ser e o pensa na Analítica Existencial, como Dasein, como existência. É a esse trabalho de remeditar a tradição metafísica pelo pensamento esquecido de sua essencialização que se entregam os escritos do Primeiro Heidegger. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

A Essência da História é a dinâmica dessa estruturação. Heidegger a pensa como Geschick = destino. O que nos convida a pensar com e nessa palavra, apresenta-se na essencialização de seus significados. Trata-se de uma palavra derivada do verbo schicken, que possui um largo espetro significativo ao longo da evolução semântica do alemão. Seus três significados fundamentais são estruturar, dispor, enviar. (Desses três sentidos a palavra portuguesa, destino, só expressa de per si os dois últimos, dispor e enviar; todavia, se lhe acrescentarmos o primeiro, temos boa tradução para Geschiek.) No substantivo Ge-schick, esses três significados são reunidos num conjunto pelo prefixo Ge- (como em Ge-birge — “conjunto de montes”). É na unidade desses três significados que Ge-schick articula o sentido originário de ge-schehen, a saber : vonstatten gehen lassen — “fazer ter lugar” e, por conseguinte, “dar-se”, “acontecer”. Ge-schichte, substantivo de ge-schehen, é a História. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

3. Esta seria a visão proporcionada por um mapa de filosofia. Outra, bem outra é a fisionomia que Heidegger e Wittgenstein assumem no vigor de um Pensamento Radical. É que nos vórtices do Pensamento Radical tanto o que é pensado como o próprio pensar remontam numa referência estranha, porque original, às raízes de sua proveniência. No jogo da radicalidade o pensar e o pensado chegam a si mesmos, ao se abrirem na direção da identidade de suas respectivas diferenças. O Pensamento Radical se faz então incomparável com qualquer coisa. Não é, como a queda das folhas no outono, um fato entre fatos. Enfrentando o pensado, o pensamento se enfrenta a si mesmo. Para pensar, vive o paradoxo de uma retirada. Procura, de alguma maneira, retirar-se de si mesmo e do pensado sem nunca conseguir fazê-lo de todo. E é justamente neste paradoxo que alcança a sua originalidade. Pois, não podendo retirar-se totalmente, repercute no próprio pensamento o que ele pensa do pensado. Assim, quando se pensa radicalmente por que o amor?, o porquê repercute no próprio pensamento: por que se pensa por que o amor? Em que se funda o pensar do pensamento que pretende pensar o amor? Este porquê ainda será um pensamento, de sorte que sempre se tem de encontrar o pensamento como fundamento do pensamento? Nesta virada, a repercussão, do que se pensa, no próprio pensamento envia o pensamento a sua originariedade. Nesta originariedade reside toda a originalidade. À primeira vista, parece um redemoinho de repetições da mesma partícula interrogativa. E a questão decisiva é precisamente saber se, transviados por esta aparência, logo deixamos de pensar e damos tudo por encerrado, ou se ainda temos tanto vigor de pensamento para vivermos na viagem até ao fundo desta repercussão a vocação de ser de todo pensamento. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

Os viajantes não sabem das possibilidades que seu Destino Histórico reserva à viagem. Este não saber é fundamental. Provém da nesciência. É que não se trata de mera negatividade e ausência impotente mas da própria condição de encontro com a poesia. O pensamento precursor do poeta vive na nesciência tanto da pretensão de saber como da pretensão de não- saber . Pois todo saber como todo não- saber , nascendo do esquivar-se do mistério, tem na Linguagem não as fronteiras de suas limitações mas o vigor de sua força. É a nesciência da poesia. Só aceitando, os viajantes aprendem da viagem a ser o aprofundamento da paisagem na poesia. Só aprendendo, ensinam a identidade da Linguagem, destinando-se, em modos imprevisíveis de ausência, nas diferenças das épocas. Só aprofundando, proclamam o mistério da Linguagem na terra lingüística da galáxia metafísica. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Feito todo poderoso por sua descoberta, logo o grilo se lança à pesquisa para conquistar a Floresta. Dentro dos parâmetros da mecânica, a Floresta só pode ser maior, menor ou igual à clareira. Mas, ao constatar objetivamente que a Floresta é maior do que a clareira, o grilo sente o Silêncio da Floresta. O Silêncio é o abrir-se da Floresta como Floresta. É no Silêncio que a Floresta re-colhe a ressonância e a concentração de todas as suas diferenças de lugar, solo, árvores, clareiras, de tudo que a povoa. O Silêncio é a identidade de si mesma das Florestas gerando diferenças. Sentindo o Silêncio, o grilo se apercebe de que maior, menor, tão grande como, são termos comparativos, cuja comparação só é possível dentro de uma escala. Ora, a escala, de que dispõe, é a mecânica da clareira. Por isso qualquer cálculo, que fizer, não poderá ultrapassar o seu mundo. Sua mecânica lhe proporciona sempre o conhecimento da clareira. Dizer que a Floresta é maior do que a clareira, não é um conhecimento da Floresta mas da clareira. Até mesmo a única coisa, que, com a sua mecânica, o grilo julga conhecer da Floresta — a saber , que a Floresta é a não-clareira, a meta-clareira — ainda é um conhecimento da clareira. A clareira é todo o seu mundo. Todas as coisas presentes e ausentes, todos os casos reais e irreais, todas as combinações possíveis e imagináveis, todas as sentenças verdadeiras ou falsas, toda a realidade e toda a possibilidade, o ser e o não-ser pertencem à clareira. Daí também, a não-clareira, a meta-clareira, dizendo o não-tudo, nenhuma coisa existente ou imaginável, nenhuma realidade ou possibilidade, nada em seu mundo, não tem sentido na clareira por força da própria clareira. Clareira e meta-clareira são a mesma coisa, enquanto ambas se acham igualmente aprisionadas e na dependência da mecânica da clareira. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

A grilagem, não permitindo o questionamento da separação e oposição de objetivo-subjetivo, impede também que se des-cubra na estrutura de língua e discurso o fruto de uma metalinguagem redutiva, que, por ser redutiva, se ignora, como presença da ausência da Linguagem. A metalinguagem é o saber que o lingüista possui de seu não saber a Linguagem da poesia. Assim como dentro-fora é um modelo de espaço e subjetivo-objetivo, um modelo de ser, assim também linguagem-metalinguagem é um modelo de operar imposto pela mesma mecânica da representação. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Heráclito: Não é edipiano, portanto, o olho que per-cebe os limites da visão em tudo que se vê. Um limite, que se per-cebe, já não prende, liberta. Não é só clausura. É também uma abertura. Numa estória antiga sem tempo, o Não-Saber visitou o Saber com a pergunta: “O que é Nada?” — O Saber respondeu de pronto: “Nada é não ser!” Mas o Não-Saber não se satisfez e insistiu: “Neste caso, se Nada for mesmo Nada, não é Nada, é ser. Para ser não ser, tem que ser e, sendo, já não é não ser!” Ao Saber ocorreu logo o paradoxo do mentiroso e quis sair-se com a doutrina das suposições, a teoria dos tipos e a lógica do discurso. Mas tudo isso lhe pareceu corresponder mais ao olho edipiano do que responder à pergunta do Não-Saber. Por isso se pôs a perguntar por toda parte: “é ou não é?” — Invocado por não obter resposta, apurou os ouvidos, mas tudo era silêncio. Acendeu os olhos mas tudo era escuridão. Estendeu as mãos mas tudo era vazio. Abriu a boca, nenhum sabor. Respirou o ar, nenhum odor. Já grilado ia desistir quando de repente gritou: “então é isso! Mas é o máximo!” — Procurou o Não-Saber e disse: “Não posso saber o que é o Nada mas posso saber que não sei. Se sei que não sei, não estou vencido. Ainda tenho o saber de meu não- saber . O auge da sabedoria não é o não- saber do saber mas o saber do não- saber “. Diante de toda esta euforia, o Não-Saber comentou apenas: “Com tanto poder, o Saber só não pode não saber que não sabe o que é Nada”! / Diana: Olhando o céu e o mar até o horizonte, não vemos apenas um panorama numa perspectiva determinada e determinante. Em tudo, que aí vemos, nós nos per-cebemos numa dada posição. É que horizonte, panorama e perspectiva se coordenam e referem à posição que ocupamos. De seu sistema de referência e coordenadas, a mesma paisagem se oferece a todos que tomarem a mesma posição. Mesmo, no entanto, não significa igual. Significa idêntico nas vicissitudes de personalização diferentes. Com as mudanças de mira e ângulo de visão, de horizonte e perspectiva não se altera o campo de visibilidade proporcionado pela posição. A solidez e estabilidade de uma posição não dependem nem da perspectiva nem do horizonte nem do panorama. Dependem da abertura que, possibilitando perspectivas, dá acesso à visibilidade de horizonte e panorama. Por isso só nos é acessível o que se nos presta aberto pela abertura. Só temos acesso àquilo para o que estamos abertos. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

3(1): E a serpente era mais astuta do que todos os animais do campo que o Senhor tinha feito. Ela falou para a mulher: Será que Deus disse que não devíeis comer de todas as árvores no jardim? (2) E disse a mulher para a serpente: nós comemos dos frutos das árvores no jardim; (3) mas dos frutos da árvore no meio do jardim disse Deus: não comais deles nem mesmo os toqueis para não morrerdes. (4) Então disse a serpente para a mulher: de forma alguma morrereis de morte, (5) é que Deus sabe que, no dia em que comerdes, abrir-se-vos-ão os olhos e haveis de ser como Deus e saber o que é bom e mau. (6) E a mulher olhou e viu que seria bom comer da árvore, e agradável experimentar que era uma árvore gratificante, pois ela satisfazia à curiosidade: tomou assim do fruto e comeu e deu a seu varão e ele comeu. (7) Abriram-se-lhes os olhos e ambos se deram conta de que estavam nus; teceram para si folhas de figueira e fizeram tangas. (8) Ouviram os passos do Senhor Deus que andava no jardim, uma vez que o dia se fizera fresco. E o homem se escondeu da presença do Senhor Deus entre as árvores do jardim. (9) Mas o Senhor Deus chamou o homem e falou: onde estás? (10) E este disse: ouvi teus passos no jardim e me envergonhei pois estou nu. Por isso é que me escondi. (11) E Ele falou: quem te disse que estás nu? Será que não comeste da árvore, da qual te ordenei que dela não devias comer? (12) Então disse o homem: a mulher, que me deste por companhia, deu-me da árvore e eu comi. (13) E o Senhor Deus falou para a mulher: por que fizeste isso? A mulher disse: a serpente me enganou para que eu comesse. (14) Depois disse o Senhor Deus para a serpente: porque fizeste isso, sejas amaldiçoada entre todas as feras e animais do campo. Terás de andar sobre teu ventre e de comer terra toda a tua vida. (15) Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a dela. Esta há de esmagar-te a cabeça e tu hás de morder-lhe os calcanhares. (16) E para a mulher disse: tornarei sobremodo dolorosa a tua gravidez; entre dores darás à luz os teus filhos; os teus desejos serão para o homem e ele será para ti amo e senhor. (17) Para o homem disse: porque obedeceste à voz de tua mulher e comeste da árvore da qual te ordenei e disse que não devias comer, por tua causa seja maldito o campo; será com esforço e penas que dele hás de tirar teu alimento por toda a vida. (18) Espinhos e abrolhos trará para ti e tu deverás comer as ervas do campo. (19) Com suor de teu rosto comerás o teu pão até voltares à terra donde foste tirado. Pois tu és terra, e terra hás de tornar-te. (20) E o homem chamou sua mulher de Eva, por ser ela a mãe de todos os viventes. (21) E o Senhor Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele e os vestiu. (22) E o Senhor Deus disse: Eis que o homem se fez como um de nós e sabe o que é bom e mau. Que também não estenda sua mão e tome da árvore da vida, coma e viva eternamente, (23) por isso o expulsou do jardim do Éden a fim de lavrar o solo donde fora tomado. (24) E tendo expulso o homem, colocou diante do jardim no Éden o querubim com a espada ferina desembainhada a fim de guardar o caminho para a árvore da vida”. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

É esse o teor do Mito da Árvore do Conhecimento de acordo como o texto massorético. Deixando de lado algumas questões de crítica textual, referentes aos versículos 9 e 17 do segundo capítulo, tentaremos aqui uma interpretação hermenêutica. Semelhante tentativa exige despoj armo-nos de tudo quanto julgarmos já saber sobre o mito. O que mais comumente julgamos saber advém-nos da interpretação teológico-cristã. Para ela o mito é a história da queda do homem. Por essa queda entrou no mundo o pecado e, com o pecado, a morte, de cujo império o sacrifício de Cristo resgatou todos os que crêem. Uma interpretação, que se desenvolver no espaço dessa fé, não poderá deixar de admitir a articulação num mesmo mito de uma história sobre a queda no pecado com outra sobre a criação do homem. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Com isso, no entanto, não se completou ainda a paisagem do país do homem. Depois de localizar o jardim, o mito passa a ressaltar a importância humanamente criadora das duas árvores. E o faz pondo em evidência o modo em que o homem pode vir a ser homem; em que o jardim de país pode transformar-se em paisagem. Deus proíbe, sob pena de morte imediata, tomar dos frutos da árvore no meio do jardim. Deus não revela que árvore é essa, quais os efeitos de seus frutos e por que o homem não pode servir-se deles. Nem o homem, apenas ser vivo, se interessa por saber . E Deus só proíbe comer da árvore do meio do jardim. Da árvore da vida não fala, embora também seus frutos não se destinem para o homem. É que não há necessidade de proibição. O perigo de dela comer só se apresentará ao homem quando ele se tiver servido da Árvore do Conhecimento. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Nos 24 versículos do terceiro capítulo o mito expõe a hominização do homem, articulando o país e a paisagem de sua imanência com a transcendência, a força sintetizadora do espírito. É que a imanência do homem só é humana transformada pela transcendência. Esta é simbolizada no mito pela figura da serpente. A tentação é o impulso para superar o modo de ser opaco e absorvido na imanência de uma vida puramente animal. A serpente aciona a superação revelando os efeitos do fruto proibido. Deus não os revelara. Tinha apenas ameaçado de morte imediata a desobediência. A serpente que é apresentada como o mais sabido dos animais, sabe também mais do que o homem, apenas ser vivo. Ela desinstala o homem da imanência numa vida meramente inconsciente, descortinando as possibilidades do fruto proibido: “… no dia em que comerdes abrir-se-vos-ão os olhos e haveis de ser como Deus e saber o que é bom e mau”. Para a interpretação cristã, que vê na serpente o símbolo de um mal separado de Deus e do homem, a figura da serpente levanta o problema da veracidade. Quem disse a verdade? Deus que predissera morte do homem no mesmo dia em que comesse da árvore proibida? Ou a serpente, que predisse que o homem não haveria de morrer e sim saber o que é bom e mau? Ao comer da Árvore do Conhecimento, o homem continua vivo e acontece de fato o que anunciara a serpente: abriram-se-lhes os olhos. O próprio Deus o reconheceu ao exclamar no versículo 22 do terceiro capítulo: “eis que o homem se fez como um de nós e sabe o que é bom e mau”. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

A serpente não mentiu. Verificou-se o que ela predissera. Será então que Deus não disse a verdade? A interpretação cristã procura sair da aporia, recorrendo à imortalidade. O homem fora criado imortal. O que Deus predissera com a cominação imediata da morte foi a perda da imortalidade. Mas o mito desconhece totalmente uma imortalidade do homem tanto depois como antes da transgressão. Por outro lado, o mito também afirma que a serpente enganou o homem. Interrogada por Deus, diz a mulher no versículo 13: “a serpente me enganou para que eu comesse”. Como a serpente pode ter enganado se disse a verdade? Só num caso, a saber , no caso de equivocação do termo morrer. Nesse caso, embora seja verdade, o que disse a serpente não é toda verdade. Há um sentido de morte em que se torna falsa a predição da serpente. Então talvez seja verdadeira a predição da morte imediata feita por Deus. Mas que outra coisa poderá significar morrer do que terminar de viver, a morte biológica? Para se responder essa questão de acordo com o mito, deve-se primeiro examinar os efeitos do fruto proibido. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Segundo o texto, três foram os efeitos: a abertura dos olhos, o saber do bem e do mal, a consciência da nudez. Curioso é ser o primeiro efeito o reconhecimento da nudez. E mais curioso ainda, que, de acordo com o juízo do próprio Deus, pela consciência da nudez o homem se tenha feito como Deus. Ao tomar consciência de sua nudez, os homens não apenas constatam um fato. Eles a escondem com folhas de figueira. O homem se envergonha de sua nudez. E não se trata de uma falsa vergonha, pois Deus a ratifica, vestindo-o com roupas de pele. Segundo o juízo de Deus, o homem que reconhece a sua nudez necessita cobri-la. É, ainda, a vergonha da nudez, e não o medo do castigo, que leva o homem a esconder-se da presença de Deus. A vergonha é assim a chave para a compreensão da hominização do homem pela transcendência do espírito. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Mais clara ainda aparece a decadência na punição do homem. É que o castigo da mulher tem uma importância subordinada. O principal é a punição do homem, que para o mito é o homem propriamente dito. O primeiro castigo é o trabalho. Novamente uma expressão de humanidade. Os animais não trabalham. Trabalhar é cuidar de si pela integração no presente de futuro e passado. Somente dentro do projeto de bem e mal é possível o trabalho. No paraíso o homem não vivia ocioso. Mas sua atividade não era trabalho, isto é, cuidado por seu porvir no presente. O homem existe, isto é, o homem é homem por se lhe descortinar o porvir como limite e doação de possibilidades. A estruturação da existência pela temporalização do tempo nos permite compreender tanto a correlação entre o conhecimento do bem e do mal e a necessidade do trabalho como o sentido do último castigo imposto, a morte. A morte humana, estrutura do homem como homem, não é a morte biológica, o simples deixar de viver. A morte humana é saber aceitar a morte. O homem é o único ser vivo que sente a sua morte. Esse sentir a morte como a impossibilidade de suas possibilidades e ao mesmo tempo como a extrema possibilidade de suas possibilidades transforma-lhe a vida. Desde que se tornou homem, o homem morre a cada instante de sua vida. Desde então a morte do homem é viver a morte. Nesse sentido a morte se instaurou na vida do homem a partir do dia em que comeu do fruto proibido. Foi o que não disse a serpente e, por não ter dito, enganou a mulher, embora o que disse não tenha sido falso. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Depois de anunciar a punição, Deus fala para si mesmo: “Eis que o homem se fez como um de nós e conhece o bem e o mal. Que também não estenda sua mão e tome da Árvore da Vida, coma e viva eternamente”. O significado desse último versículo do mito é a conclusão da criação do homem. Criado como ser vivo, o homem não deve seu ser humano apenas à criação de Deus. É mais do que animal, também, por esforço próprio, por haver comido da Árvore do Conhecimento, por se ter feito espírito. Por obra própria o homem se tornou como Deus. Todavia, sua hominização se transformou em maldição. E ele paga por ter-se tornado como Deus vivendo a angústia da morte na decadência, que os animais não vivem por não terem espírito, e que Deus não vive por não ser mortal. A vida imortal é o privilégio de Deus que o homem não pode conquistar. Ora, uma vez que a imortalidade seria o único meio de livrá-lo totalmente da angústia da morte, com sua hominização o homem se tornou ainda mais incrível do que o animal. De novo a serpente não dissera toda a verdade. Comendo da Árvore do Conhecimento, o homem se tornou como Deus no saber do bem e do mal mas não na imortalidade. E essa distinção restante transforma a hominização do homem na mais profunda miséria. Na miséria da angústia da morte, que o mito, seguindo a decadência do homem, só soube aceitar condenando como castigo pela culpa da hominização. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Porque o homem é sempre a ponte de passagem para o mistério, seu conhecimento nunca é apenas o poder da discursividade. É sobretudo e em tudo o vigor de deixar ser o mistério. Destarte, o mistério não é o provisório e passageiro mas o originário e permanente. A tal ponto que é o não-mistério, a não-consideração do mistério, o mover-se na discursividade do compreensível e inteligível que continuamente é ultrapassado em tudo que o homem faz e conhece. Neste sentido nos convida a pensar um pensamento radical de S. Tomás: nenhum ser é tão finito que não possua nada de infinito, ou ainda: Deus é conhecido em tudo que se conhece. Há uma nesciencia, isto é, um não- saber que não significa mera negatividade e ausência vazia mas constitui a estrutura fundamental do encontro do homem com o outro. É a indocta ignorantia. Pertence essencial e constitutivamente à verdadeira ciência e a seu crescimento a nesciencia tanto da pretensão de saber como da pretensão de não saber , a experiência de que todo saber como todo não- saber , nascendo do Nada do mistério, têm aí não as fronteiras de suas limitações mas o vigor de sua Essência. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

10. No tocante à diferença entre autoridade e poder, esta provocação nos chega hoje na virulência da funcionalidade de tudo e de todos. Em seu processo de elaboração, o Ocidente aciona a integração das possibilidades humanas numa estrutura que submete a seu serviço todas as estruturações possíveis da humanidade. A vida desta estrutura é a força da igualdade. No movimento de sua tendência absorvente, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A sua verdade é una, universal, necessária. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber , na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da funcionalidade, que atinge hoje o paroxismo de suas virtualidades. Pois o que vale são as funções. Tudo, que preencher a mesma função, se equivale. Na procura da função universal se concentram todos os esforços da modernidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo

A perspectiva de diferença do presente diálogo é constituída pelo Pensamento Essencial (das wesentliche Denken) de Martin Heidegger. Em seu processo de elaboração, o Ocidente é o movimento de integração das possibilidades do homem numa estrutura determinada, que submete a seu serviço todas as demais estruturas possíveis de hominização. O característico desta estrutura é a identidade “lógica” de racionalidade e animalidade. Segundo a tendência absorvente de sua virulência, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A verdade é una, universal e necessária. Sua essência está na adequação como na lógica reside o seu lugar gerador. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber , na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da Metafísica que atinge sua plenitude no Espírito Absoluto. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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