Carneiro Leão – poesia

Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.

Talvez nos acenem as palavras da poesia : sentados nos ouvidos, escutamos um verdadeiro vazio — a estranheza do poder. O mar ecoa no ondear das ondas. O som ressoa no coro das águas. Aqui e agora, nada sobre nada. Nem mesmo um buraco. Somente a fossa da angústia. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

2. Num painel fronteiriço, para se discutir, é preciso não saber mas pensar. De Hölderlin vararam até nós as palavras, pensadas num instante de poesia : “Zu wissen wenig, äber der Freude viel ist Sterblichen gegeben”: “Pouco saber mas muita alegria foi dado aos mortais”! Não é, pois, o conhecimento, é o mistério que faz pensar o pensamento. Nós só pensamos quando não sabemos. Por isso, quem pode falar das relações da Psiquiatria com a Filosofia, não é nem o filósofo nem o psiquiatra. É o pensador, porquanto o pensador é mau filósofo, o pensador é mau psiquiatra. É mau filósofo, porque não sabe o que é Filosofia. É mau psiquiatra, porque não sabe o que é Psiquiatria! Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

3. No século VI a religião, a política, a educação gregas exercem determinada consciência da poesia e mitologia. Houmeros tem Hellada pepaideuke. Prisma e espelho, nesta consciência se refletem e analisam as peripécias de verdade e não verdade da existência grega. Denunciando a miopia da consciência vigente, os primeiros pensadores se lançam a pensar reciprocamente as diferenças de religião e política, de educação e habilidade, de poesia e mito pela identidade do pensamento, pensando a com-pertinência de ser e pensar. Para nós, filhos do petróleo e da técnica, tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por que? – Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia, temos os olhos tão consumidos pelas utilidades que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, mas sobretudo porque, quando pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Não apenas os beócios é que não pensam. Os próprios atenienses renunciaram ao pensamento quando em Sócrates, Platão e Aristóteles a filosofia inaugurou sua avalanche histórica. Para Hegel, a filosofia é uma época concentrada em pensamentos. Para os primeiros pensadores, pensar é acordar o não pensado, acionar a inércia de pensamento de uma tradição histórica. É o que. fizeram recuperando a tragédia da poesia e mitologia vigente na consciência de sua época, da religião, da política, da educação. Na crítica aos poetas, aos mitos e cultos buscavam desinstalar a consciência de uma luz sem sombras, de uma verdade sem mistério, de um dia sem noite, de uma vida sem morte. O pensamento surgiu, quando o trágico obscureceu a claridade do racional e do irracional, do físico e do político, do mito e do culto, do desespero e da salvação. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

A consciência de poesia , de mito, de política, de educação e culto que reinava no século VI AC, prende-se a este sentido humano da tragédia. O pensamento dos primeiros pensadores gregos questiona-lhe o humanismo, buscando restituir o mistério da tragédia originária. Trágico é o jogo de Dionísio na identidade universal das diferenças. A tragédia não é uma condição simplesmente humana. É o ser da própria realidade. A totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno — Frag. 50: hen panta. No movimento de sua realização, a realidade é tanto o horizonte em expansão da luz de todas as singularidades como a uni-versalidade protetora da noite, onde todos os gatos são pardos. A noite dá à luz os indivíduos para no fim do dia os recolher em seu seio materno. O mundo é a articulação das diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades, simples e indiferenciado. Na tensão desta tragédia o homem assume as dimensões ontológicas de uma uni-versalidade individual. É a coisa mais estranha do mundo, to deinotaton, Nele advém a si mesma a estranheza do próprio mundo. Sua existência é um contínuo romper e prorromper de estruturas nas quais lhe é dada uma fisionomia, um sentido, uma lei. Tanto nos indivíduos come nas comunidades, a constituição humana transcende o querer das vontades porque quer sempre a ordem e con-juntura do cosmos. O homem não é micro-cosmos no sentido de miniatura do mundo. O homem é micro-cosmos no sentido de con-juntura da identidade, isto é, de con-juntura em que se juntam as diferenças no ser de tudo que é. E-ducar é e-duzir, ex-trair da individualidade de cada um a con-juntura uni-versal do mundo: paideia. O paradigma da paideia, os gregos o buscam na luta de seus mitos entre as forças noturnas da terra e as forças diurnas do céu, entre os titãs e os olímpios. Em estórias profundas de deuses e heróis, a mitologia grega narra as vicissitudes desta luta do princípio luminoso do espírito contra o princípio tenebroso da natureza. Os feitos de Hércules são os feitos da existência grega no caminho paideia. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia . O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende repetir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (die Vor-frage) sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Quer ele trate da Sentença de Anaximandro, como o “princípio” (der An-fang) de toda a sabedoria do Ocidente, ou se ocupe dos Fragmentos de Heráclito e Parmênides, nos quais “Ser e Pensar” se compenetram intrinsecamente (innig zusammen-gehoeren); seja que ele explique a Doutrina de Platão como uma “mudança na essencialização da verdade” (Wandel des Wesens der Wahrheit), da qual profluiu primeiramente a “não-essencialização da metafísica” (das Un-wesen der Metaphysik), ou seja, que exponha “a constituição onto-teo-lógica da metafísica” (die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik), que encerra em si a aporia (Verlegenheit) de toda a filosofia ocidental; quer interpretando a Crítica da Razão Pura de Kant, como uma “fundamentação da metafísica” (eine Grundlegung der Metaphysik) ou evocando a Lógica Hegeliana e o Nihilismo Nietzscheano, como a “consumação” (Vollendung) da Época metafísica da história do ser (Geschichte des Seins); quer esclarecendo a poesia (Dichtung) de Hölderlin, quer expondo o significado de Rilke ou um verso de Moerike para o “tempo da penúria” (dürftige Zeit), quer instituindo a questão sobre a técnica (die Frage nach der Technik) ou investigando a essencialização da linguagem (das Wesen der Sprache), etc. etc. sempre se propõe Heidegger a questão central do pensamento sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Esse propósito assumiu toda a clareza desejável desde a primeira página de Sein und Zeit: “Será que já temos uma resposta à questão sobre o que propriamente entendemos com a palavra “sendo”? — De forma alguma. Por isso se trata de pôr novamente a questão sobre o Sentido do Ser. Será que nos sentimos hoje perplexos em não compreendermos a expressão, “Ser”? — De forma alguma. Por isso convém primeiramente despertar de novo uma sensibilidade para o sentido dessa questão. A elaboração! concreta da questão sobre o Sentido do Ser é o propósito do seguinte tratado. A interpretação do tempo, como o horizonte de toda compreensão do Ser, simplesmente constitui a sua meta provisória” (Sein und Zeit, p.l). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

A época da técnica e da ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade-subjetividade do ente como na subjetividade-objetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor. A arte, a poesia , a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vigência da correlação de subjetividade e objetividade, que hoje vai atingindo o paroxismo, é, pensada como “época”, o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se derrama a escuridão da “Noite Histórica” na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua humanidade, “erra”, sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetividade. A “época” da técnica e da ciência é o império do homem a-pátrida em sua Essência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Nas estações do caminho de seu pensamento Heidegger vai descobrindo em níveis diversos de diferenciação a presença integradora desta identidade. As figuras de suas meditações são lenhadores, camponeses e artesãos. É famoso o comentário da tela de van Gogh, Os Sapatos da Camponesa. O Curso, Was heisst denken? — O que provoca pensar? — compara o trabalho do pensador ao trabalho do carpinteiro atento às formas adormecidas no tecido da madeira. Os Vortraege und Aufsaetze — Ensaios e Conferências — aproximam e equiparam a meditação solitária do pensador ao andar pesado do camponês que, no crepúsculo, se afunda nos sulcos do campo. A Floresta Negra constitui o cenário da obra de seu pensamento. É evocada no título de uma coleção de ensaios, Holzwege — Caminhos Silvestres — onde se encontra uma das mais penetrantes reflexões do caminho longo e sinuoso traçado pela História do Ocidente. Em 1933 Heidegger recusou o chamado para a universidade de Berlim com o texto: Warum bleiben wir in der Provinz? — Por que permanecemos na província? Der Feldweg — O Caminho do Campo — ilumina uma infância pobre no seio da Floresta Negra e um discurso comemorativo exalta Konradin Kreutzer, compositor, natural de Messkirch. No diálogo do pensamento com a poesia os poetas mais freqüentemente questionados, Hölderlin, Moerike e Hebel, são poetas que fazem a experiência da identidade criadora de homem, solo, tradição e linguagem. Nesta experiência eles chegam ao vigor mais profundo da poesia em sua proximidade com o vigor do pensamento. É a experiência consagrada por Hölderlin nas palavras do Hino ao Reno: “O que brota de pura espontaneidade é um enigma. Nem mesmo a poesia consegue desvendar. Pois como principiaste, hás de permanecer. Por mais que possam a necessidade e a disciplina, o mais poderoso é o nascimento e o raio de luz que cinge a fronte do recém-nascido”! (Der Rheiri). Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador

A Crítica é literária, sendo Literatura, isto é, sendo arte. Para ser literária, tem necessidade de assumir o modo da arte. Ora, a arte chega a seu modo de ser na obra. A obra de arte é passagem obrigatória de todos os caminhos para a arte. Por isso o caminho que nos levará à arte da Crítica será também aqui a obra literária: uma poesia ! Por exemplo, a poesia de Mörike, intitulada: Auf eine Lampe! “Para um candelabro”! A vantagem de uma poesia assim é fazer brilhar a nossos olhos o modo de ser da arte numa tensão com um outro modo de ser: o modo de ser do instrumento e utensílio. É uma obra literária sobre um candelabro, instrumento de iluminação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

O modo de ser do instrumento manifesta uma dupla referência: serve ao homem para alguma coisa. Servindo para alguma coisa, o ser do instrumento se insere num complexo de coordenadas e relações. Mas as relações deste conjunto são utilidades do homem. Servindo para alguma coisa, o instrumento serve ao homem. Esta dupla referência revela que a realidade é uma coordenação de todas as coisas. Um sistema de coordenadas. É esse sistema que faz com que toda e qualquer realidade reúna em si e faça alusão a todas as outras, que uma coisa se apoie e repouse em todas as coisas, constitua um ponto de referência e apoio. Neste sistema de coordenadas e apoio, de alusão e referência, reside o modo de ser próprio do instrumento, mora a estrutura constitutiva do utensílio, a instrumentalidade, a utensilidade. Pelo sistema de coordenadas e referências, o candelabro não é apenas um meio de iluminação da sala mas também a revelação de um mundo através de sua própria mundanidade. Na luz de sua iluminação o candelabro ilumina não só o mundo que o integra, mas também a si mesmo como integrante do mundo. O candelabro constitui o mundo e é constituído pelo mundo. Mas ouçamo-lo da poesia de Mörike: 1. Noch unverrückt, o schöne Lampe, schmückest Du, / 2. An weissen Ketten zierlich aufgehangen, / 3. Die Decke des nun fast vergessnen Lustgemach. / 4. Auf Deiner weissen Marmorschale, deren Rand / 5. Der Efeukranz von grüngoldenem Erz umflicht, / 6. Schlingt eine Kinderschar die Ringelreihn. / 7. Wie reizend alles! Lachend! Und ein sanfter Geist des / 8. Ernstes doch ergossen durch die ganze Form. / 9. Ein Kunstwerk echter Art. Wer achtet sein! / 10. Was aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst. // 1. Ainda não removido, belo candelabro, enfeitas, / 2. Preso à graça de correntes delgadas, / 3. A abóbada do quarto de prazeres, hoje quase esquecido. / 4. Em tua bandeja de mármore branco, orlada / 5. Pela grinalda de um bronze verde-ouro, / 6. Um bando de crianças abraça as fileiras de argolas. / 7. Como tudo é sedutor! Risonho! E, no entanto, um ar / 8. De seriedade se derrama suave por toda a forma. / 9. Uma obra de arte da melhor espécie! Quem tem olhos para ver? / 10. Todavia, o que é belo, apresenta em si mesmo um brilho feliz. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Toda a poesia se recolhe em dez versos. Os três primeiros falam da presença e do modo de estar presente do candelabro. A presença do candelabro se dá, “enfeitando a abóbada do quarto de prazeres, hoje quase esquecido”. Ornada pelo candelabro, a abóbada ilumina com a luz do ornamento todo o espaço do quarto. Embora apagado, o candelabro ainda ilumina, levando o quarto a aparecer como quarto de prazeres passados. À luz apagada do candelabro, o espaço se apresenta como tendo sido lugar de prazeres. O candelabro faz surgir um passado presente. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Os três penúltimos reúnem os anteriores, isto é, o candelabro, na unidade de sua presença de sedução e gravidade, de alegria e seriedade. Ambas impregnam toda a forma. Forma aqui não se opõe nem exclui mas se compõe e inclui o conteúdo. A forma é o vigor da unidade do candelabro articulada nos primeiros versos. Neste vigor a poesia faz brilhar a beleza do candelabro. Embora não acenda o candelabro, ela permite que apareça a luz de sua beleza. E a beleza aparece numa oposição e diferença, que os versos 7-9 procuram evidenciar. O nono resume toda a poesia até agora, ao dizer que se trata de uma obra de arte verdadeira. Resumir o candelabro é tomá-lo no vigor de sua unidade. É tomá-lo em sua beleza de obra de arte que sempre se opera numa distinção. Por isso Mörike, resumindo o candelabro, refere-se à falta de olhos para a beleza: quem ainda tem olhos para ver? É uma pergunta retórica. O que o poeta pretende é afirmar que já ninguém ou somente poucos os possuem. A pergunta é uma afirmação de pesar. Com o pesar, a pergunta afirma não só que a obra de arte escapa em seu modo de ser à consideração do homem mas também que ela pertence ao homem. Por isso há poesia e o poeta suporta o pesar. O último Verso nos diz desse modo antitético de a arte — o que é belo — morar no país dos homens. Todavia o que é belo apresenta em si mesmo um brilho feliz. O modo de ser da arte é fazer brilhar em si mesmo o mundo dos homens. Na poesia de Mörike isso ocorreu na iluminação do mundo por um instrumento, o candelabro. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Essa análise nos sugere à reflexão toda uma série de questões. O que a poesia faz aparecer são as mesmas referências e as mesmas revelações do mundo que constituem o modo de ser do candelabro, como meio de iluminação. Para que, então, necessitamos da poesia ? Por que essa verdade do candelabro não se manifesta plenamente em seu emprego? Por que é preciso para isso de uma obra literária que ninguém pode usar para acender um quarto? E por que essa relação toda é privilégio de uma obra de arte enquanto a presença objetiva de um candelabro não no-la pode transmitir? Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Somos viajantes por sempre estarmos enviados à viagem das vias de uma paisagem. O envio é o avio da Linguagem. Deixar a viagem ser este envio por todas as vias da paisagem é a poesia dos viajantes. Poesia não é um fazer. Nem o fazer do discurso nem o fazer da língua nem o fazer da gramática e suas transformações. É um deixar-se enviar pela Linguagem na viagem das vias de uma paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Teoria e técnica são como as escadas. Só se consegue subir à poesia pela escada da língua e do discurso. Mas nunca se chegará à poesia se desde o primeiro degrau de competência e desempenho não se for jogando fora a escada. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada depois de se ter sido colhido pela poesia . A língua e o discurso se tornam veículos da viagem poética quando a viagem libertar os viajantes dos veículos. A poesia é então a Linguagem da paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

A paisagem não se reduz apenas à gramática dos discursos e suas transformações. É também a Sua do viajante, de viagem na paisagem. O viajante dá os nomes da língua à paisagem. O nome encobre a paisagem, descobrindo-lhe as vias no subtrair-se da Linguagem. É uma luz que obscurece quanto mais esclarece. O subtrair-se da Linguagem gera uma força de vácuo que, rasgando as vias da língua, arrasta o viajante à poesia da paisagem. Os discursos não produzem nem dominam a paisagem. São envios da Linguagem. Obviam o viajante com as vias que a Linguagem libera como a verdade da paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

O poeta recolhe o discurso na liberdade da paisagem. Para não encolher-se na prosa de uma narrativa, escolhe a liberdade da poesia em que, recolhendo o discurso, deixa a paisagem vir a si mesma na Linguagem. Escolher não é superar. O poeta não ultrapassa mas se recolhe no que escolhe. Pois só colhido pela Linguagem é que a verdade da paisagem o faz acolher o discurso na poesia . Ser poeta não é construir um outro discurso ao lado ou além ou aquém das estruturas narrativas de uma gramática fundamental. É restituir peso ao discurso da língua na gravidade da Linguagem. O poeta é poeta por descobrir-se tão imerso no mistério da Linguagem que toda poesia , sendo a impossibilidade de falar sobre a Linguagem, o leva a sentir nesta impossibilidade a Linguagem de toda poesia . A Linguagem é ela mesma. Ser ela mesma é recolher sempre o viajante na viagem da impossibilidade de discursar sobre a Linguagem. Deixar-se colher pelo recolher da Linguagem torna o viajante poeta nas vias da paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Na escolha poética este deixar-se colher percorre todo o diferir de atividade e passividade. Ao longo do percurso se elabora um pensamento que renuncia à onipotência de fazer a poesia . É o pensamento precursor do poeta que, com os ouvidos da renúncia, escuta, no próprio deserto de poesia da terra lingüística, a ausência fecunda da Linguagem, gerando o diferir de todas as diferenças. É o pensamento precursor que descobre o espaço de jogo onde o poeta reencontra na língua e na gramática de seus discursos a poesia da Linguagem. Ser todo precursor é, pois, a própria essência do pensamento poético na terra lingüística. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Na avalancha absorvente desta terra o pensamento essencialmente precursor do poeta viaja imperceptível nas vias da paisagem. Suas viagens são sementes cujos semeadores renunciaram a toda colheita para se dedicarem à preparação da semeadura. À preparação pertence essencialmente um sabor de Linguagem que sabe encontrar, desmoitar e cultivar um campo de semeadura. É este sabor que dirige o viajante para a paisagem da poesia . As muitas vias de acesso são sempre desconhecidas. Mas só uma conduz o poeta. É a sua, em cujas peripécias erram em contínuo vaivém seus discursos até assumirem a impossibilidade de falar sobre a Linguagem como a fonte de toda sua riqueza poética. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Um Destino Histórico Essencial implanta a terra lingüística na galáxia da metafísica em cuja órbita gravitam as ciências. O pensamento precursor do poeta erra pelo espaço sem peso das ciências, à procura de gravidade. Por isso a preparação da semeadura exige uma formação do poeta no interior das ciências. Aqui o desafio é educar-se sem confundir poesia nem com erudição nem com ciência. O desafio é o perigo. Um perigo tanto mais salutar quanto mais, na descendência Histórica da metafísica, o poeta tem sempre de novo que encontrar a via de sua paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Os viajantes não sabem das possibilidades que seu Destino Histórico reserva à viagem. Este não saber é fundamental. Provém da nesciência. É que não se trata de mera negatividade e ausência impotente mas da própria condição de encontro com a poesia . O pensamento precursor do poeta vive na nesciência tanto da pretensão de saber como da pretensão de não-saber. Pois todo saber como todo não-saber, nascendo do esquivar-se do mistério, tem na Linguagem não as fronteiras de suas limitações mas o vigor de sua força. É a nesciência da poesia . Só aceitando, os viajantes aprendem da viagem a ser o aprofundamento da paisagem na poesia . Só aprendendo, ensinam a identidade da Linguagem, destinando-se, em modos imprevisíveis de ausência, nas diferenças das épocas. Só aprofundando, proclamam o mistério da Linguagem na terra lingüística da galáxia metafísica. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Lingüística

Saussure: Se a Linguagem está livre da estrutura de sujeito e objeto, de língua e discurso, de significante e significado, o que se chama então de Linguagem não é nem real nem possível. E só o Nada não é nem real nem possível. / Hölderlin: Os poetas sempre foram poetas a partir do Nada. Se a Linguagem fosse maior, menor ou tão grande como a estrutura de língua e discurso, não poderia haver poesia . O poeta estaria irremediavelmente preso no horizonte de articulação de significado e significante e nem sequer poderia suspeitar o não-horizonte, o Nada de horizonte. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Saussure: Quer então dizer que o poeta, para ser poeta, é tocado pelo Nada dele mesmo? / Hölderlin: É o único instante da poesia . Rara hora et pauca mora. Mas ser tocado pelo Nada de si mesmo, longe de facilitar, agrava-lhe a poesia . Pois faz o poeta experimentar toda a gravidade de seu não ser poeta e sentir este não-ser, como o peso que lhe impede saltar livremente no instante da poesia . Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Saussure: Mas uma coisa é inegável. Nenhum poeta é poeta de qualquer maneira. Todo poeta só pode ser poeta dentro de uma comunidade lingüística, cujas estruturas instruem de sentido poético a poesia . / Hölderlin: O Essencial não é o que na comunidade lingüística se fez e se faz com a Linguagem. O Essencial é o que o poeta deixa de fazer com a Linguagem e faz com o que se fez e se faz com a Linguagem. O que se fez e se faz com a Linguagem são as estruturas que o lingüista analisa. O que o poeta faz é romper as estruturas, e o que deixa de fazer é permitir que a Linguagem, deixando de ser apenas língua e discurso, venha a ser Linguagem, na poesia . Na análise química a cor não é cor. É química. A química não deixa a cor ser cor. Só na pintura a cor vem a ser cor. Pois pintar é deixar que a cor deixe de ser tinta e venha a ser cor na obra. O lingüista é o químico, o poeta é o pintor da Linguagem. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Saussure: Ninguém poderá representar-se exatamente este horizonte. É tão indeterminado e fluente que está em toda e em nenhuma parte. A estrutura de língua e discurso, ao contrário, é precisamente determinada. De certo, os poetas, para serem poetas, não necessitam conhecê-la tematicamente. A poesia se faz em nível de linguagem e a estrutura se dá em nível de metalinguagem. / Hölderlin: Linguagem e metalinguagem soam como aquela clareira da Floresta, tão grilada de mecânica, que já não podia ouvir o ressoar do Silêncio. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

A linguagem e metalinguagem da lingüística é, como a clareira da Floresta, tão grilada de mecânica que já não ouve o Silêncio da poesia . A maior dificuldade do lingüista em sentir a Linguagem do poeta está na mecânica aprisionante de sua clareira: a mecânica da representação e objetividade. Tudo que não se deixar aprisionar por esta mecânica, é logo entregue aos cortes epistemológicos para ser cortado como subjetivo e subjetivismo, ideologia e idealismo, mística e misticismo. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

A grilagem, não permitindo o questionamento da separação e oposição de objetivo-subjetivo, impede também que se des-cubra na estrutura de língua e discurso o fruto de uma metalinguagem redutiva, que, por ser redutiva, se ignora, como presença da ausência da Linguagem. A metalinguagem é o saber que o lingüista possui de seu não saber a Linguagem da poesia . Assim como dentro-fora é um modelo de espaço e subjetivo-objetivo, um modelo de ser, assim também linguagem-metalinguagem é um modelo de operar imposto pela mesma mecânica da representação. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Falar a partir da Linguagem da poesia não é indicar uma outra linguagem dentro ou fora da estrutura de língua e discurso. Pois assim operando, já de-finimos a Linguagem como um objeto dentro ou fora de outro objeto, já de-finimos o dentro e o fora juntamente com sua indicação, como uma função de um objeto para com outro objeto. Ora, definir como objeto ou de-finir como função entre objetos, é a objetivação própria da representação. Sem dúvida desta mecânica não podemos prescindir. Mesmo quando falamos do mistério do homem, sempre operamos com signos e funções tais que vida e vital, pessoa e pessoal, vivência e vivencial, existência e existencial, estrutura e estrutural etc. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Mas se, por um lado, dessa mecânica não podemos prescindir, por outro lado, também essa mecânica não pode satisfazer a poesia . Pois, operando nela, procuramos sujeitar o mistério da Linguagem ao império da representação do objeto e sua objetividade pelo sujeito e sua subjetividade. Nesta sujeição, o mistério seria reduzido a um pro-blema, como se já não fosse sempre o mistério que possibilita toda operação de-finitória da estrutura de língua e discurso. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Esta impossibilidade da mecânica da representação em satisfazer a Linguagem é a errância. Errância não é erro de um sujeito, comunidade de sujeitos ou projetos de pesquisa. A errância é o destino de planetarização da mecânica. Nos vórtices da planetarização só se admite como realidade o que cabe na perspectiva de objetivação. Tudo que não for objetivável é cortado, como subjetivo, e rotulado pejorativamente como irreal, seja romântico ou místico, seja ideal ou ideológico. Na carga pejorativa do subjetivo se dissimula a impotência do horizonte da representação em objetivar a realidade não objetivável do mistério. Quando de-finimos pois a Linguagem da poesia como subjetiva, escamoteamos-lhe precisamente a impossibilidade de deixar-se objetivar, fazendo com que apareça no horizonte de objetivação, como irrealidade alienada da realidade. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Nesta clareira vivemos hoje. É o que na poesia “Pão e Vinho” chamei de “tempo da indigência”. O poeta no tempo da indigência fala a partir da ausência. Este falar é calar-se para deixar a ausência mesma falar, é fazer-se disponível à ausência para que tudo seja o vigor da ausência. Sempre que se deixar ser o vigor da ausência, há poesia . Neste sentido, para ser poeta, todo poeta é sempre de alguma maneira poeta da poesia . Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Saussure: Griteeeeema!… — No meio desta longa exposição adormeci e sonhei que o mundo todo era uma Festa só. A Festa da poesia . Fui ao Vietnam e não se ouvia um tiro. Todos dançavam na Festa. Na China, Mao recitava para a alegria de 700 milhões de chineses as poesia s de Chuang-Tzu, velhas sem tempo. Nos centros de processamento da IBM, os computadores estavam desligados. Os programadores tinham ido à Festa. Nas rampas de Cabo Kennedy não havia atividade. Técnicos e cientistas estavam de Festa. Na Rússia se dera anistia aos poetas. Nos grandes parques industriais da Europa, tudo parado. Os membros das comunidades lingüísticas, na liberdade da espera de nada. Não pude suportar tanto Silêncio. Enchi os pulmões de gritema… Mas tudo não passou de um sonho! / Hölderlin: Pelo grito, deve ter sido um pesadelo. É que na clareira os sonhos são pesadelos. De qualquer forma, pesadelo ou não, o que seria dos homens numa clareira sem os sonhos da Floresta? Ainda seriam homens? — Nós não dormimos apenas para descansar. Nós dormimos sobretudo para sonhar. Pois sonhar é ser homem. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Heráclito: A abertura não nos abre apenas o acessível. Também o acesso ao inacessível, como tal, nos é facultado pela abertura, que se exerce na própria diferenciação de aberto e fechado, de acessível e inacessível. Abertura não é assim uma coisa que se pudesse fazer ou encontrar entre outras coisas. Abertura só se dá no movimento bruxuleante de, abrindo, vedar e, vedando, abrir passagem. Neste movimento é que somos presenteados com a verdade de nossa finitude. Pois a in-verdade pertence essencial e constitutivamente à verdade. Estando sempre numa configuração de verdade, estamos também numa configuração de in-verdade. Esta tensão é o que evoca a provocação da palavra grega alétheia. Pois lanthano significa cobrir e velar, manter-se encoberto e ficar velado. Lethe é o nome de uma torrente no Hades, cujas águas encobrem a vida e velam as vivências dos mortos. É também o nome do esquecimento, cujo verbo, usado na forma medial de lantháñomai, quer dizer propriamente: se me encobre para mim mesmo, eu fico encoberto para mim de tal sorte que o eu, o me e o para mim resultam e nascem do próprio movimento de encobrir. Sendo profundamente reflexiva, a língua grega, ao falar, é atraída pelo vazio que deixa ecoar nas palavras o retraimento da Linguagem. / Diana: Somente neste vazio poderiam medrar o mito e a música, a poesia e o pensamento, o teatro e os jogos, a pintura e a escultura, a democracia e a tirania, a filosofia e a ciência em seu vigor originariamente grego. O mais provocante nesta experiência nasciva da alétheia não é apenas a riqueza inesgotável de sua fulguração em palavras e em mármore mas sobretudo a serenidade madura de sua vigência tanto na aurora como ocaso de sua jovialidade. É esse vigor originário que Hölderlin procura evocar com o título Oriente e Oriental, quando, no poema, Griechenland, A Grécia, chama os gregos de Oriente do Ocidente. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

Heráclito: Para a experiência originariamente grega da alétheia ser e parecer não só não se excluem como se incluem necessariamente. Ao ser pertence sempre apresentar-se e ausentar-se, entrar, permanecer e sair do vigor de uma vigência. Aparência inclui tanto esplendor e brilho, como aparecimento e presença, como o jogo do disfarce. E não se trata apenas de simples polissemia de um signo. Está em questão a origem das vivências essenciais de ser e nada no horizonte da visibilidade. Neste sentido nos convida a pensar a provocação poética das palavras chreon, dike, tisis e adikia, na Sentença de Anaximandro. É que aparência no sentido de aparecer e mostrar-se convém tanto à aparência no sentido de esplendor e brilho como à aparência no sentido de jogo de disfarce. E lhes convém como a origem e o fundamento de sua própria possibilidade. — A lua aparece no horizonte, esta frase não quer dizer apenas: a lua espalha um brilho, difunde certa claridade, mas também: está no céu, está presente, existe, como também: parece um disco luminoso plano e liso, como ainda: o mistério do luar na paisagem da convivência, que levou Safo à poesia : Dedyk’men ha selana Kai Plêiades mesai de Nyktes para d’ercheth hora, Ego de mona katheudo. / A Lua desapareceu / E as plêiades. Já é / Meia noite. As horas voam. / Só eu re-pouso sozinha. // Diana: Assim, na experiência originária dos Gregos aparência não é destituída dé verdade nem se trata de mera ilusão de ótica que nos figurasse uma conjuntura de coisas de maneira diferente da real. Aparência é História. E História fundada na Poesia e na Linguagem do mistério. Somente a onipotência arrogante do epígono e de todo retardado em pensar julga poder desfazer-se facilmente do vigor histórico da aparência, declarando-a, com a necessária empáfia, subjetiva, alienada, ideológica, sem nem se dar conta do que há de questionável e superficial na subjetividade e em todas as suas objetividades. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

Heráclito: Se esta é a experiência ocidental, outra, bem outra é a experiência grega da autoridade histórica da aparência. Sempre de novo, com a novidade de ser cada vez a primeira vez, os Gregos tiveram de acolher a aparência em todas as suas conquistas: os deuses e a polis, o templo e o trágico, os jogos e as artes, a poesia e o pensamento, tudo isso eles criaram no meio da aparência, dominados pela aparência, levando a sério a aparência, conhecendo-lhe na carne a autoridade. Basta lembrar a estória de Édipo. De início, salvador é senhor de Tebas, no esplendor da fama e na graça da aparência, vai sendo deslocado progressivamente desta aparência, que não constitui uma mera impressão subjetiva de Édipo a seu respeito mas a atmosfera, o luar em que aparece toda a paisagem de sua existência, até que, por fim, se lhe re-vele o ser, o não-ser e a aparência, como assassínio do pai e des-re-speitador da mãe. O percurso entre o princípio e o fim é o curso de um único combate de velamento e des-velamento entre as potências de ser, não ser e aparência. Com toda a paixão de quem é grego, empenha-se Édipo em acolher todo este combate para, nesta acolhida, conquistar o país de sua paisagem e assim deixar ser na angústia da finitude toda a sua fisionomia e toda a sua grandeza humana. / Diana: Em seu poder, o Ocidente não ama o trabalho. O ocidental não gosta de trabalhar por não se con-sentir a afeição da técnica, da disciplina, do instrumento. É o que Hölderlin nos convida a pensar, quando diz: se “a popularidade dos Gregos é a ternura, a popularidade do Ocidente é a secura!” Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

O instrumento e a máquina são determinados pela funcionalidade de uma eficiência. Por isso subordinam a seus serviços o material e os mecanismos de que são feitos. Na produção de um instrumento se usa e abusa do ferro. O ferro se consome para dar lugar à instrumentalidade. O bom sapato é aquele, cujo couro não aperta os pés. O material é tanto melhor quanto mais desaparecer nos serviços da instrumentação. A obra, ao contrário, não faz desaparecer mas eleva o material a si mesmo na tensão de cultura e natureza: assim é na escultura que a lenha vira madeira, é na pintura que a tinta se faz cor, é na sinfonia que o som se torna música, é na poesia que a língua vem a ser linguagem. Tudo se cria na criação da obra. Toda criação é original por ser originária. Nos vórtices desta originariedade os mecanismos são como as escadas. Só se chega à obra pela escada dos mecanismos. Mas nunca se chegará à obra, se desde o primeiro degrau não se for jogando fora a escada. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada desde que se tenha sido colhido pela originariedade da obra. Os mecanismos só se tornam veículos da criação de uma obra quando a criação libertar a obra dos veículos. Pois então a obra será a linguagem da criação. Aprendendo a pensar I: Os Mecanismos da Criação Original

Essa revisão do mito é no fundo uma revelação da autoconsciência da filosofia. O que o filósofo procura na verdade do mito é a verdade da própria filosofia. Na época de sua errância racional, a filosofia se sentia absolutamente autônoma e independente da não-filosofia. No espaço dessa independência julgava atingir com os recursos da razão uma verdade absoluta, necessária, universal. Em nome dessa verdade desprezava tudo que não se enquadrasse na bitola da racionalidade. O mito, as lendas, os sonhos, a loucura, a poesia , a religião, para terem lugar no país da verdade, guardado pela filosofia, necessitavam das credenciais da razão. No rigor dessa ditadura não se destruía, decerto, a liberdade desde que sua essencialização se submetesse aos princípios racionais da lógica. Pois a essência da liberdade era a verdade. Hoje a filosofia sente sua dependência da não-filosofia. É aquém da alternativa de racional e irracional que se instaura o espaço de toda verdade. Na liberdade dessa dimensão originária se articulam a verdade da fantasia, a verdade dos sonhos, a verdade da loucura. O juízo já não é o lugar primogênito da verdade. Há verdades, no plural, correlativas ao sentido das diversas intecionalidades. É a liberdade que é a essência da verdade. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito

Esta nesciencia nesciente do mistério que se dá enquanto se retrai em nossa época de mistério é o princípio fundamental de toda hermenêutica digna deste nome. O nome, hermenêutica, deriva-se do verbo, hermeneúein, que os romanos traduziram com interpretari. Numa longa história de constituição foi-se firmando o costume de se entender hermeneúein e hermeneía, interpretari e interpretatio, como um nome comum, onde se empacotam todas as funções semânticas da linguagem: explicar, traduzir, comentar, expressar. No NT encontramos o nome usado para designar estas quatro funções semânticas da linguagem. (Assim por exemplo para explicar: ICor 12,10, hermeneía glossõn; para traduzir: Jo 9,7, Siloám — ho hermeneúetai apestalménos —; para comentar: Lc 24,27, dierméneusen autpis en pasáis tais graphais tà perl heauton; para expressar: At 14,12, ekáloun te ton Barnabãn Día, tón dè Paulon Hermen, epeidè autos en ho hegoúmenos tou lógou.) O denominador comum de todas elas costuma-se encontrar no fato de que sempre em qualquer função hermeneía e hermeneúein exercem o papel de esclarecer, seja uma mensagem obscura, uma língua estranha, uma passagem pouco clara ou uma vontade desconhecida. Por isso também, assim se usa dizer, a hermenéia se aplica às palavras divinas, à mensagem de Deus, que, sendo por sua própria natureza obscuras e misteriosas, necessitam de interpretação. Os métodos e técnicas, as leis e teoria desta interpretação nos proporcionam uma ciência, a hermenêutica. Ora, estas leis e métodos, estas técnicas e teoria da interpretação são os mesmos do pensamento objetivo que o homem emprega sempre que pretende conhecer em sua intenção o sentido de qualquer contexto semântico. Daí também a definição hoje corrente de hermenêutica: a leitura do sentido de uma estrutura significante em sua intenção significativa dentro de uma comunidade lingüística. No nível do pensamento objetivo da ciência hermenêutica não há como distinguir a exegese de um texto da escritura da interpretação de qualquer outro texto literário, do mesmo modo como no nível da química não é possível distinguir uma tela de van Gogh de um cartaz de cocacola ou no nível da lingüística uma poesia , de um jingle de propaganda. Está muito certo, o método histórico-crítico, a filologia, a arqueologia, a história das formas literárias, a lingüística estrutural, a crítica das fontes e dos textos, a história comparada das religiões, a antropologia são meios e recursos indispensáveis à interpretação e ao entendimento da Escritura. O errado é pretender que tudo isso se dê sem nenhuma pré-compreensão e perspectiva prévia sobre o ser em causa no texto e no intérprete. Tal pretensão seria tão espirituosa como a de quem procurasse apreender a força criadora de um quadro de van Gogh só com a análise química das tintas ou quisesse encontrar-se com uma poesia só na análise estrutural da língua. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

4. A diferença entre poeta e nazista vive no movimento de diferenciação entre autoridade e poder. Na posse da autoridade o poeta encontra poesia até no nazismo (o vigor poético do Guernica de Picasso). De posse do poder, o nazista iguala poesia a nazismo. É o que foi prevalecen-do na institucionalização do Cristianismo. De posse do poder, Roma impera no triunfalismo planetário de uma igualdade refratária às diferenças: humanidade = ocidentalidade; verdade = correção; autoridade = poder; religiosidade = romanidade; Igreja de Cristo = Igreja de Roma; catolicidade = igualdade; apostolicidade = uniformidade; koinorda = estereotipia; dogma = imutabilidade; jurisdição = missão canónica; santidade = imitação; obediência = dependência; povo = massa; carisma = conformidade; liturgia = latinidade; laicidade = passividade; kénosis = doxa. Assim o “divide et impera” funciona, em nome de Deus, pela salvação dos homens em Cristo, na caça, condenação e eliminação de hereges e heresias. A errância da igualdade não suporta diferenças. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo

O Povo é a poesia do Ser! Aprendendo a pensar I: A Propósito do Cristianismo Popular

Certa vez, num médico-pensador do século XVII, Angelus Silesius, este amor do povo pelo mistério foi avivado numa poesia de quatro versos com vinte palavras: SEM POR QUÊ! / A Flor é sem por quê, / Floresce por florescer, / Não olha para si mesma, / Nem pergunta se alguém a vê! Aprendendo a pensar I: A Propósito do Cristianismo Popular

É que a popularidade do povo já é desde sempre abertura para a poesia e o mistério, para o religioso e divino. E quando o espírito está franqueado pela liberdade, não importam grandeza e tamanho, valor ou poder. No talo de capim, na pedra no meio do caminho, na força do furacão, na seca da estiagem, no calor do sol, nas águas da cheia, na violência da exploração, no terror das guerras, na poluição do ambiente, em tudo opera um mistério que transcende sentimentos e tensões humanos e por isso mesmo pode nos levar ao reino das definições e diferenças, elevando-nos acima de qualquer fim e de todo limite, até o país das maravilhas, onde a admiração faz de cada vez a primeira vez! Aprendendo a pensar I: A Propósito do Cristianismo Popular

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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