Excertos de “Aprendendo a pensar”, Tomo I.
“Na Froehliche Wissenschaft, gaia ciência, diz Nietzsche que a filosofia vive nas geleiras das altas montanhas, tendo por única companhia o monte vizinho, onde mora o poeta. No país da ciência, a filosofia aparece como uma montanha solitária, envolta numa luz marginal. Por isso toda vez que ela desce da montanha, tem que exibir o passaporte de suas credenciais. Tem que justificar o direito de sua aparência. E há mais de dois mil e seiscentos anos, sempre que a filosofia apresenta suas credenciais, se repete uma cena tragicômica. À luz de seu espectro ela se descobre a si mesma no fundo de cada ciência, enquanto o olho indagador da ciência, que, vendo tudo, não vê a si mesmo, é cego para seus próprios fundamentos. Por isso mesmo só pode rir das credenciais da filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Isso, todavia, não quer dizer que todos os homens se tenham dedicado sempre em todos os tempos ao cultivo explícito e temático da filosofia. De maneira alguma! Comparado à extensão dada aos negócios e afazeres, aos sonhos, paixões e desejos, o pensamento filosófico ocupa sempre um espaço insignificante de história. São apenas uns poucos, somente alguns marginais sobem a montanha solitária das geleiras para se consagrarem ao ócio inútil da filosofia. E todos se banham na mesma luz trágica, em que Sócrates apareceu aos atenienses; sentindo-se muito embora investido do destino messiânico de resguardar e promover a verdade do homem, sempre se viu marginalizado por Atenas, para, acusado de subversão da juventude, ser condenado a beber cicuta em nome das tradições democráticas e religiosas do povo ateniense. O poeta Hölderlin exprime o destino de todos os filósofos, quando diz que Sócrates foi condenado por ter um olho demais. Para Nietzsche, o filósofo é um homem, que constantemente sente, vê, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias. Ora, em todos os tempos, a vida despreocupada dos homens parece defender-se com êxito total contra as dúvidas, contra as suspeitas, contra as visões e esperanças dos pensadores. Ela confia mais no espírito empreendedor e na tradição consagrada do que no pensamento. Ao considerarmos quão pouco a filosofia condiciona expressamente a paisagem da vida, ao constatarmos quão insignificante é sua ressonância nos quadros de publicidade, quão estreita a base social dos filósofos, não poderemos deixar de ver um exagero monstruoso na afirmação de que o homem existe sempre no espaço da filosofia. E todavia assim é! Apenas se trata de uma afirmação filosófica e não científica. Para compreendermos, portanto, devemos considerá-la com o olho socrático da filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Na existência o vigor desse apelo mora num pressentimento do próprio Ser, cuja originariedade, lançando-nos no campo de forças da filosofia, a subtrai a nosso controle. É por isso que a filosofia faz conosco tudo que somos, enquanto com ela nós não podemos fazer nada. Por se estruturar no jogo de referência e diferença entre Ser e homem, a filosofia se essencializa no paradoxo existencial. Aquele paradoxo, de que se serviu Nietzsche para mote de seu Zarathustra: “Ein Buch für alie und keinen”: “um livro para todos e para ninguém”! O mesmo vale da filosofia. É o destino de todos os homens e de nenhum. De todos, enquanto articula o fundamento em que o homem planta os alicerces de sua existência. De nenhum, enquanto, força de todo esforço, ela se esquiva em princípio a qualquer vontade de domínio do homem. Na filosofia se re-vela toda a potência e toda a impotência humana. Em seu espelho se reflete toda a envergadura da finitude. Onde o homem encontra palco para demonstrações de força, onde anda às voltas com os produtos de seu gênio dominador, lá descem sobre a filosofia as sombras do esquecimento. Um esquecimento que a era atômica potência ao máximo. Nenhuma outra idade experimentou e trabalhou tantos entes mas também se esqueceu tanto de perguntar pelo ser dos entes. Nenhuma outra época julgou tantas verdades mas também se incomodou tão pouco com a essência da verdade. Nenhum outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem, no entanto, preocupar-se com a questão sobre a mundanidade do mundo. O alarido da ciência, o roncar da técnica, enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, entorpece-nos as forças do espírito, deixando a filosofia adormecida numa paisagem de cogumelos atômicos. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
A colocação de hoje nos propõe pensar num discurso o sentido do encontro, já sempre dado, entre filosofia e psicanálise. No curso deste discurso espera-se que nos advenha o inesperado: a gratuidade do silêncio que convocou Nietzsche às palavras pensadas: “É preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Assim a aceitação da ciência e a espera do sentido se completam e, completando-se, nos abrem a possibilidade de morarmos num mundo transitivo, oferecendo-nos a solidez de um novo solo de crescimento. É a viagem do “e”, em que aqui e agora nos envia o encontro de filosofia e psicanálise. A aceitação da ciência e a espera do sentido nos encaminham no caminho da modernidade, em cujo seio, de um modo inesperado, nos são novamente restituídas as palavras pensadas de Nietzsche: “é preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
As Opiniões dos Físicos de Teofrasto se tornaram a fonte principal dos manuais de história da filosofia e dos compêndios de textos que, saindo de Alexandria, proliferaram no período helenista. Era à base de bioi, epitomai, historiai, strõmateís que se nutria a formação filosófica. Foi destes compêndios e manuais que posteriormente se desenvolveu a tradição doxográfica da filosofia. Deles se recebiam os princípios e o horizonte para a interpretação dos escritos originais ainda existentes. Não é, pois, de admirar que não só o conteúdo mas também o estilo de toda esta tradição tenha determinado decisivamente a posição e atitude dos filósofos posteriores até Nietzsche exclusive, frente à História do Pensamento Ocidental. O predomínio da filosofia sobre o pensamento, que se instalara e consolidara com Sócrates, Platão e Aristóteles, assume explicitamente o imperialismo de um domínio exclusivo. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
A reflexão sobre a situação de nossa existência revela a consciência de uma unidade e de uma interrupção histórica. Sentimo-nos viandantes de um único Dia Histórico, que se estende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era atômica. Temos uma consciência nítida de nossa ruptura com a tradição e da diferença entre a manhã e a tarde da História Ocidental. Assim qualquer investigação se insere hoje necessariamente na época da técnica e da ciência. Época da ciência não é, para dizer com Kant, uma generatio aequivoca. Não nasceu por geração espontânea ex nihilo sui et subiecti, como diriam os aristotélicos latinos. Pertence a uma tradição milenária, da qual é uma transformação histórica. Quem hoje se empenha num problema filosófico, não pode impedir de achar-se no fim de jornada da grande tradição grega. Pois a metafísica grega não é algo, que num tempo foi, e agora já não é mais. Não se trata de um presente para sempre passado. É uni pretérito ainda hoje presente no vigor e no império da ciência e da técnica. E não só no sentido de que o homem moderno evoca e faz reviver por meio de reconstruções historiográficas o passado de sua história, mas no sentido existencial de constituir o próprio fundamento de seu modo de ser moderno. Heráclito e Parmênides, Platão e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes, Kant e Hegel, Marx e Nietzsche estão presentes, embora transformados pelo dinamismo de seu próprio princípio, no cérebro eletrônico, do qual depende hoje a segurança do Capitalismo e do Socialismo. A consciência dessa ruptura na unidade de uma tradição determina a situação de nossa existência, que impõe ao pensamento moderno a problemática central de suas reflexões. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
É outra simples aparência. Não se trata de um renascimento da filosofia pré-socrática. Na famosa Einleitung (Introdução), acrescentada em 1949 à aula inaugural de 1929, Was ist Metaphysik? (O que é a metafísica?), recusa Heidegger qualquer tentativa nesse sentido como “uma pretensão vã e paradoxal”. E a razão é simples. Os chamados filósofos pré-socráticos não são filósofos. São mais do que isso. São pensadores do Ser. A filosofia só surgiu, quando o pensamento deles chegou grandiosamente ao fim com Platão e Aristóteles. Chamá-los de “pré-platônicos” com Nietzsche ou de “pré-aristotélicos” com Hegel já é diminuir-lhes a grandeza originária na “cama procrusteana” de Platão e Aristóteles. Pois apenas em aparência são inocentes e inofensivas tais denominações, que se apresentam como simples classificação cronológica. Em verdade encobrem nessa aparente inocência uma canonização de Platão e Aristóteles, como o modelo e a norma de toda perfeição do pensamento ocidental até eles. Os que pensaram antes deles teriam pensado em função deles. Seriam precursores ainda primitivos da filosofia propriamente dita, instaurada por eles. Toda grandeza e importância dos pré-socráticos estaria assim em terem sido “pré”, isto é, um Platão e um Aristóteles de modo muito imperfeito. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Todo esse processo de desfiguração não foi um acaso, nem se trata de um processo, que poderia ter sido sustado. É o vigor do próprio esquecimento do Ser que se destina historicamente durante toda a época da metafísica. Nesse sentido o retorno às origens da metafísica não é um esforço para fazer renascer o pensamento pré-socrático, como pretendia Nietzsche. É a imposição de um pensamento de essencialização (— das wesentliche Denken, diz Heidegger —), um pensamento, isto é, que a partir da própria essencialização da metafísica procura superar-lhe o esquecimento da Verdade do Ser. Por isso a Hermenêutica, que na Introdução conduz à dimensão originária da Essencialização do Ser, não se identifica com nenhuma hermenêutica científica, em cuja luz aparecerá sempre arbitrária e deturpadora. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
4. Se não nos deixarmos desviar desta aparência, a própria suspeita de insensatez nos possibilita encontrar nas diferenças entre Heidegger e Wittgenstein uma identidade de pensamento. Não apenas Wittgenstein, também Heidegger suspeita a metafísica de insensatez. Para Wittgenstein a metafísica se origina numa espécie de alienação da língua, cuja função lógica não é compreendida pelas especulações dos filósofos. Para Heidegger, a metafísica se origina numa espécie de alienação do Ser, cujo sentido se foi esquecendo nas peripécias da História do Ocidente. Não obstante todas as diferenças, Heidegger e Wittgenstein vieram a encontrar-se com três outras críticas à metafísica, fundadas também na suspeita de insensatez: com a crítica de Marx, que suspeita a metafísica de alienação ideológica, com a crítica de Nietzsche, que suspeita a metafísica de alienação do poder, e com a crítica de Freud que suspeita a metafísica de alienação da consciência. Com isso se completa o horizonte do pensamento crítico, em cuja radicalidade movimentos heterogêneos e endereços diferentes de pensamento encontram a identidade de sua própria diferenciação. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
Como todo pensador, Heidegger é um pensamento tão originário que não se deixa classificar. Pertence aos marginais de uma história de crescente conformismo e progressiva imposição de estereótipos. Ao lado de Nietzsche é o mais socrático e trágico dos pensadores modernos. Sua obra de pensamento é a operação da crise de identidade que abre às possibilidades de futuro da existência presente uma promessa de caminho para a liberdade. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Como o Zarathustra de Nietzsche, Ser e Tempo é “um livro para todos e para ninguém”. A oposição de “todos” e “ninguém” provém de unia diferenciação da identidade. “Para todos” não visa destinar um livro a uma totalidade indiferenciada. Totalidades indiferenciadas não são dinâmicas de identidade. E só estas geram diferenças sem quebrar a unidade do universo concreto. “Para todos” significa, então, que Ser e Tempo só se destina quando e na medida em que se encontrar com a identidade de suas próprias diferenças. Sendo e não sendo esta identidade, Ser e Tempo é ao mesmo tempo um livro para todos e para ninguém, ein Buch fuer alie und keinen! Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Nietzsche, o pensador apaixonado de Deus, pensou o ser do niilismo como “a morte de Deus”. Depois de anunciá-la pelo “homem deslocado” (der tolle Mensch) no aforismo 125 da “Gaia Ciência” Fröhliche Wissenschaft, descreve-lhe as primeiras consequências no aforismo 343 do quinto livro, acrescentado quatro anos depois. O aforismo se intitula: “O que há com nossa jovialidade?” — “Was es mit unserer Heiterkeit auf sich hat?” A perda da jovialidade, isto é, das graças divinas (luppiter, lovis), é a consequência fundamental da morte de Deus. Por isso, iniciando o aforismo, diz Nietzsche: “O maior dos acontecimentos mais recentes, — que ‘Deus está morto’, que a fé no Deus cristão se tornou indigna de fé” — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”. — “Das grösste neuere Ereignis, dass ‘Gott tot ist’, dass der Glaube an den christlichen Gott unglaubwürdig geworden ist — beginnt bereits seine ersten Schatten über Europa zu werfen”. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
Com a morte de Deus o mundo se ressente de seus gonzos: Stürzen wir nicht fortwährend? Und rückwärts, seitwärts, vorwärts, nach allen Seiten?; e paira sem fundo nem fundamento, sem luz, calor e rumo sobre o abismo: Irren wir nicht wie durch ein unendliches Nichts? Haucht uns nicht der leere Raum an? Ist es nicht kälter geworden? Kommt nicht immerfort die Nacht und mehr Nacht? Müssen nicht Lanternen am Vormittage angezündet werden? — Já não há em cima nem embaixo, superior nem inferior. Tudo se nivela na dessacralização: Gibt es noch ein Oben und ein Unten? O homem só quer a vontade de potência e controle. Os valores supremos se desvalorizam. Falta a resposta ao porquê: Die obersten Worte entwerten sich. Es fehlt das Ziel. Es fehlt die Antwort auf das Warum. Assim responde Nietzsche à pergunta: o que é o niilismo. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento