Carneiro Leão – metafísica

Geralmente se opõe pressentimento a saber, ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber. No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber. Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência. É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Todavia por ser a chave de um saber seguro e universal, a consciência histórica não pode ser construída mas apenas encontrada pelo filósofo. O fracasso da metafísica está em não haver visto que toda concepção abstrata e uma construção que passa por cima da dualidade fundamental de coisa e vida e se descuida por isso de distinguir rigorosamente as ciências da natureza das ciências do espírito. A vida, como o dado originário, o ponto de partida radical é o fundamento último de toda filosofia”, exige um método próprio de conhecimento. Inacessível à conceituação especulativa, inviável ao método transcendental”, não pode ser experimentada em si mesma devido à escravidão de toda experiência humana aos conceitos.” A única via de acesso que resta é a vivência (Erlebnis) das manifestações e dos produtos que nos deixou a vida no curso da história.” As ciências do espírito são as ciências da vida, a sua objetivação. E por isso a análise dessas em seu desdobramento histórico subministra o único caminho aberto à consciência moderna para uma justificação satisfatória do saber humano. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

1. Já foram intitulados de Pré-aristotélicos, Pré-platônicos e Pré-socráticos. Sob a correção cronológica do prefixo, pré-, se escamoteia uma perplexidade de pensamento. Em Sócrates, Platão e Aristóteles se inaugura uma de-cisão Histórica. A decisão das diferenças que, sendo já em si mesma metafísica, instala o domínio da filosofia em toda a História do Ocidente. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Esta de-cisão metafísica não é um presente para sempre passado nem se reduz a simples fato de um passado encoberto pela poeira de dois mil e quatrocentos anos. É mais do que objeto de curiosidade historiográfica. Mais do que uma relíquia no museu do Ocidente. É um passado tão vigente que constitui a fonte donde vivemos hoje, a tradição, que nos sustenta. Seu vigor Histórico promoveu as transformações, as experiências e as interpretações de quase 25 séculos. Deu lugar a motivos orientais. Concebeu o Cristianismo. Provocou o Humanismo, o Esclarecimento e a Ciência Moderna. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

A reflexão sobre a situação de nossa existência revela a consciência de uma unidade e de uma interrupção histórica. Sentimo-nos viandantes de um único Dia Histórico, que se estende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era atômica. Temos uma consciência nítida de nossa ruptura com a tradição e da diferença entre a manhã e a tarde da História Ocidental. Assim qualquer investigação se insere hoje necessariamente na época da técnica e da ciência. Época da ciência não é, para dizer com Kant, uma generatio aequivoca. Não nasceu por geração espontânea ex nihilo sui et subiecti, como diriam os aristotélicos latinos. Pertence a uma tradição milenária, da qual é uma transformação histórica. Quem hoje se empenha num problema filosófico, não pode impedir de achar-se no fim de jornada da grande tradição grega. Pois a metafísica grega não é algo, que num tempo foi, e agora já não é mais. Não se trata de um presente para sempre passado. É uni pretérito ainda hoje presente no vigor e no império da ciência e da técnica. E não só no sentido de que o homem moderno evoca e faz reviver por meio de reconstruções historiográficas o passado de sua história, mas no sentido existencial de constituir o próprio fundamento de seu modo de ser moderno. Heráclito e Parmênides, Platão e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes, Kant e Hegel, Marx e Nietzsche estão presentes, embora transformados pelo dinamismo de seu próprio princípio, no cérebro eletrônico, do qual depende hoje a segurança do Capitalismo e do Socialismo. A consciência dessa ruptura na unidade de uma tradição determina a situação de nossa existência, que impõe ao pensamento moderno a problemática central de suas reflexões. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Nos diversos períodos da metafísica o ser do ente foi determinado ora como idea, ora como ousia, ora como essentia, ora como objetividade, etc. Essas várias determinações não são arbitrariedades insignificantes, devidas ao gosto extravagante, que, no parecer do bom senso comum, têm os filósofos de divergir sempre entre si em sua verbal superstition, em suas discussões inúteis sobre palavras. São uma diversidade, que resulta das vicissitudes de um apelo. Articulam as peripécias de um destino vigente, que instaura originariamente o acontecer histórico e por isso são históricos em sentido criador. Pelas vicissitudes desse apelo, pelas fulgurações desse destino os períodos da história se distinguem e identificam, divergem e convergem fundamentalmente entre si. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Já dessa explicação de termos meramente formal se pode ver que as três perguntas acima formuladas sobre o destino das diversas determinações do ser do ente, nos vários períodos da metafísica, articulam dialeticamente entre si os três momentos centrais: o ente em seu ser, o homem em sua existência e o Ser em sua Verdade, numa única questão: a questão sobre a diferença ontológica, como tal. Durante todo o decurso da história do Ocidente a diferença constitui sempre o fundamento esquecido e não pensado de todo o pensamento metafísico. O famoso esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit) não é outra coisa do que o esquecimento da diferença ontológica. Para Heidegger ela constitui o que é mais digno de ser posto em questão (das Fragwürdigste) e investigá-la é a preocupação central e única de toda a sua filosofia, como ainda veremos. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Dessa caracterização, que se poderia chamar diasporádica, da existência humana como tensão entre imanência e transcendência poder-se-ia pensar tratar-se da antiga solução metafísica da analogia. Não é assim. A analogia não é uma resposta. A analogia é um problema. E um problema derivado, porquanto suscita sempre a questão sobre o fundamento de sua possibilidade. Como, por exemplo, é possível que uma imagem proveniente do mundo externo possa dizer alguma coisa sobre o mundo interno? Em que se funda a analogia entre a profundidade de um poço e um pensamento profundo? Como se terá de conceber a essencialização do homem, cuja existência sempre se articula na dimensão da analogia? Quais são as condições de possibilidade desse modo de ser do homem? Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Somente por morar na luz do Ser, o homem pode ser o ente, que possui o privilégio da verdade! O privilégio diasporádico de existir, isto é, de sair de si mesmo e se conformar com todo ente. A adequação entre o ente, que o homem é, e o ente, que o homem não é, retira o fundamento de sua possibilidade da re-velação do Ser, em que pela e para sua própria essencialização o homem deve morar necessariamente. A reduplicação ontológica, implícita em toda verdade do conhecimento, exige assim o modo de ser existente do homem, de sorte que em Sein und Zeit Heidegger caracteriza a verdade do homem como a instauração da verdade do ente. Se para toda a tradição metafísica do Ocidente a verdade é predicativa, isto é, um processo de conformidade, de conveniência e adequação, que se desenvolve originariamente no juízo, entre o conhecimento e o ente, a condição de sua possibilidade cifra-se numa manifestação do ser do ente. Há um primado da verdade manifestativa sobre a verdade predicativa. Ora, se se considera que o processo de manifestação da verdade do ente é a tensão dialética entre diferença e referência de ser e ente, instaurada na existência, a afirmação de Sein und Zeit perde todo caráter sibilino, mostrando, como e por que a verdade do homem é a verdade do ente. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferença ontológica, inclui sempre uma irredutibilidade ao ente. Nunca poderá ser objetivado. Nunca poderá ser encontrado nem como ente, nem com o ente, nem dentro do ente. Nunca poderá ser constatado a modo de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina o ente segundo determinada figura de sua Verdade. Esse jogo híbrido de retraimento e manifestação, de luz e sombra, de velar e re-velar constitui a essencialização de sua Verdade, tal como os gregos a pensaram originariamente na a-létheia. Dessa dinâmica surge a constituição dos períodos de sua fulguração, como épocas da Verdade do Ser. A palavra época não apresenta aqui a função “tética” da consciência transcendental, inerente ao termo husserliano, epoche. É antes pensada a partir da tendência do Ser, de re-velar o ente na medida em que se vela e retrai em si mesmo. A época é sempre uma configuração histórica do esquecimento do Ser. Ora, sendo a existência o espaço aberto por essa configuração epocal, a Verdade do Ser está mais de posse do que na posse do homem e por isso mesmo é sempre esquecida na história de sua essencialização. O homem só pode principiar a investigar o ente como tal, a fim de, adequando-se a seu ser, tomá-lo por medida e critério da existência, porque a Verdade do Ser já antes dele se tinha apoderado e o havia destinado em determinada época de sua fulguração. Numa época em que a significação do ente enquanto ente é estruturada na diferença entre fundamento e fundado. Isso quer dizer: a essencialização do pensamento ocidental, em que a existência do Ocidente toma consciência de si mesma, é absorventemente lógica no sentido de edificada na interdependência de fundamento e fundado. E por ser lógica é de modo igual ôntica e teísta. É igualmente ôntica, porque o ser é o fundamento do ente “on”. É igualmente teísta, porque, por necessidade da própria fundamentação, o ente só será realmente fundamentado, se se fundar num último fundamento, que exclua a possibilidade e necessidade de ulterior fundamentação. Esse fundamento supremo é o absoluto, o theós. Assim, tendo principiado com o esquecimento do Ser, a história da metafísica desdobra, em todos os períodos de seu desenvolvimento, numa multiplicidade de formas, essa constituição onto-teo-lógica. É originariamente uma época da Verdade do Ser, na qual a investigação do ente, enquanto ente em sua totalidade e no supremo fundamento de sua fundação, reivindica para si o direito de conduzir o homem à verdade correta, imutável, necessária e certa. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

3. O Modo de Investigação da Questão do Ser: De vez que a Verdade do Ser nunca é direta mas apenas obliquamente acessível à reflexão, enquanto, isto é, retraindo-se em si mesma, ilumina o ente em determinada figura de referência e diferença com seu ser, a história da existência se tem processado no espaço metafísico, instaurado por esse esquecimento. Nessas condições existenciais toda tentativa de pensar a Verdade do Ser em si mesma só poderá realizar-se numa reflexão sobre a essencialização da verdade do conhecimento, vigente na história da metafísica. O único caminho para retornar ao domínio da Verdade originária é o da superação da metafísica. Faz-se necessário que o pensamento retroceda à dimensão escondida em que, desde o princípio, se tem processado e ainda hoje se processa a história da metafísica, e procure re-cuperar todos os passos dessa grande marcha de progresso a partir de sua proveniência. Destarte para satisfazer a tarefa e o apelo de um pensamento originário, isto é, de um pensamento que pensa a origem de sua própria essencialização, a Filosofia heideggeriana se vê compelida a re-pensar e interpretar toda a história da existência como a história metafísica do esquecimento do Ser. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende repetir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (die Vor-frage) sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Quer ele trate da Sentença de Anaximandro, como o “princípio” (der An-fang) de toda a sabedoria do Ocidente, ou se ocupe dos Fragmentos de Heráclito e Parmênides, nos quais “Ser e Pensar” se compenetram intrinsecamente (innig zusammen-gehoeren); seja que ele explique a Doutrina de Platão como uma “mudança na essencialização da verdade” (Wandel des Wesens der Wahrheit), da qual profluiu primeiramente a “não-essencialização da metafísica” (das Un-wesen der Metaphysik), ou seja, que exponha “a constituição onto-teo-lógica da metafísica” (die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik), que encerra em si a aporia (Verlegenheit) de toda a filosofia ocidental; quer interpretando a Crítica da Razão Pura de Kant, como uma “fundamentação da metafísica” (eine Grundlegung der Metaphysik) ou evocando a Lógica Hegeliana e o Nihilismo Nietzscheano, como a “consumação” (Vollendung) da Época metafísica da história do ser (Geschichte des Seins); quer esclarecendo a poesia (Dichtung) de Hölderlin, quer expondo o significado de Rilke ou um verso de Moerike para o “tempo da penúria” (dürftige Zeit), quer instituindo a questão sobre a técnica (die Frage nach der Technik) ou investigando a essencialização da linguagem (das Wesen der Sprache), etc. etc. sempre se propõe Heidegger a questão central do pensamento sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Esse propósito assumiu toda a clareza desejável desde a primeira página de Sein und Zeit: “Será que já temos uma resposta à questão sobre o que propriamente entendemos com a palavra “sendo”? — De forma alguma. Por isso se trata de pôr novamente a questão sobre o Sentido do Ser. Será que nos sentimos hoje perplexos em não compreendermos a expressão, “Ser”? — De forma alguma. Por isso convém primeiramente despertar de novo uma sensibilidade para o sentido dessa questão. A elaboração! concreta da questão sobre o Sentido do Ser é o propósito do seguinte tratado. A interpretação do tempo, como o horizonte de toda compreensão do Ser, simplesmente constitui a sua meta provisória” (Sein und Zeit, p.l). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Em razão de a diferença ontológica vigorar num esquecimento reduplicativo de si mesma, a questão sobre o Sentido do Ser não pode ser hoje posta senão na própria luz em que se ilumina a história da metafísica. Porque esquecemos tanto a diferença ontológica como que a esquecemos, só se poderá investigar a Verdade e o Sentido do Ser numa superação da tradição. Essa superação não é uma negação. Não pretende destruir e aniquilar a metafísica. Pretendê-lo não seria apenas uma pretensão infantil mas um esforço Münchhauseneano, que se atropelaria em seu próprio tropel. Pois, ignorando a história do Ser, esquecer-se-ia do que é mais digno de ser pensado. No livro Was heisst Denken? (O que significa pensar?) mostra Heidegger como o esquecimento do Ser da metafísica é a maior provocação para o pensamento: “em nossos tempos, que tanto dão a pensar, o que mais provoca o pensamento é não pensarmos ainda”. A superação da metafísica é, no fundo, uma recuperação originária do esquecimento do Ser. Isso significa: a superação procura enuclear a essencalização da metafísica e traçar desse modo os limites de suas possibilidades. A superação reconduz a metafísica para onde sua essencialização provoca. Pois o esquecimento do Ser é a própria dimensão, que, escondendo a si mesma, protege a verdade da metafísica, possibilitando-lhe a investigação do ente enquanto ente. Entendida assim epocalmente a superação não depõe a metafísica mas a repõe em sua constante verdade, recompondo-lhe a essencialização originária. Não se trata de progredir além para um domínio ulterior e sim regredir aquém para o espaço anterior da metafísica. Nesse sentido o exórdio da metafísica é o ponto de partida inevitável e obrigatório de toda investigação sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Essa necessidade não é extrínseca. A superação não só tem que falar a linguagem em vigor e servir-se de seus títulos e de sua gramática para tornar-se inteligível dentro dos limites da filosofia vigente. É antes de tudo uma necessidade intrínseca, inerente à própria dialética do movimento de superação. Pois a metafísica é “uma fase eminente e a única até agora visível da História do Ser” e por isso o único espaço de qualquer retorno à sua Verdade. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Para se compreender o itinerário do pensamento de Heidegger é de suma importância o significado dialético desse exórdio da metafísica. Uma profunda ambiguidade penetra todos os passos da questão sobre o Sentido do Ser, forçando-lhe a investigação numa marcha, cujo movimento é, a um tempo, pro-jetivo e re-gressivo. É pro-jetivo, enquanto, procurando superar a metafísica, pro-speta pensar a Verdade do Ser na sua configuração epocal de esquecimento. Nesse sentido parte e. retira o primeiro impulso de uma experiência prévia do termo de seu movimento. É re-gressivo, enquanto volta sobre esse ponto de partida para dilucidar a dimensão originária e a proveniência de seu vigor na vicissitude da Verdade do Ser. Na marcha desse duplo movimento o projeto é determinado pelo re-gresso, porquanto o retorno à Verdade do Ser, como a dimensão de origem e proveniência do esquecimento do Ser, é a única maneira de se fazer a experiência da metafísica por sua própria essencialização esquecida. A ambiguidade aqui reinante se prende à necessidade de mover-se sempre no horizonte da metafísica. Já ter que se falar de ser e ente, de superação e retorno, de fundamento e condição de possibilidade, de transcendência e imanência, todos esses, títulos pertencentes ao âmbito da metafísica, agrava de tal ambiguidade a investigação do Ser, que só aparece um pouco da dimensão da Verdade do Ser, totalmente diversa. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Os escritos do assim chamado Primeiro Heidegger, desde Das Realitaetsproblem in der modernen Philosophie (O Problema da Realidade na Filosofia Moderna) de 1912 até a terceira edição de Was ist Metaphysik? (O que é metafísica?), encontram-se na primeira etapa da marcha de superação, de sorte que somente a partir da ambiguidade intrínseca de sua dialética se poderá compreender-lhes o sentido no itinerário do pensamento. Todos eles investigam a história da metafísica sob o ângulo pro-jetivo da marcha de superação, evidenciando o esquecimento do Ser nos processos vigentes na existência ocidental. Para exemplificar um caso: na questão metafísica do ente enquanto ente um dentre todos os entes ocupa um lugar privilegiado: o homem, que investiga a questão. Pois bem! Nos vários períodos de sua história a metafísica, embora determinasse diversamente esse privilégio do homem, sempre o representou na única luz, que lhe é acessível, a saber, pelo esquecimento do Ser. Ora, encontrando-se na primeira etapa da marcha de superação, Sein und Zeit empenha-se de acordo com o momento pro-jetivo de seu movimento em remeditar o sentido da essencialização do homem a partir do esquecimento do Ser e o pensa na Analítica Existencial, como Dasein, como existência. É a esse trabalho de remeditar a tradição metafísica pelo pensamento esquecido de sua essencialização que se entregam os escritos do Primeiro Heidegger. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Os escritos posteriores, atribuídos ao chamado Segundo ou Último Heidegger desde Platons Lehre von der Wahrheit (Doutrina Platônica da Verdade), empreendem a etapa regressiva do movimento de superação, mostrando que o esquecimento em vigor na metafísica provém de uma iluminação originária da Verdade do Ser, que é a figura epocal da vicissitude histórica, instaurada no princípio da existência grega. À luz dessa iluminação se vê que a remeditação dos primeiros escritos não se iguala a nenhuma determinação metafísica. Assim Wesen e Existenz (essencialização e existência) em Sein und Zeit não são a “essência” e “existência” da metafísica. É que o pro-jeto de elaboração a partir da metafísica empreendido em Sein und Zeit já é conduzido pelo regresso à proveniência originária da própria metafísica. A desconsideração dessa necessidade e tensão no itinerário do pensamento de Heidegger levou a tantas incompreensões e fez muitos intérpretes distinguirem dois Heidegger, opondo os escritos do Segundo ou Último aos escritos do Primeiro. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

É outra simples aparência. Não se trata de um renascimento da filosofia pré-socrática. Na famosa Einleitung (Introdução), acrescentada em 1949 à aula inaugural de 1929, Was ist Metaphysik? (O que é a metafísica?), recusa Heidegger qualquer tentativa nesse sentido como “uma pretensão vã e paradoxal”. E a razão é simples. Os chamados filósofos pré-socráticos não são filósofos. São mais do que isso. São pensadores do Ser. A filosofia só surgiu, quando o pensamento deles chegou grandiosamente ao fim com Platão e Aristóteles. Chamá-los de “pré-platônicos” com Nietzsche ou de “pré-aristotélicos” com Hegel já é diminuir-lhes a grandeza originária na “cama procrusteana” de Platão e Aristóteles. Pois apenas em aparência são inocentes e inofensivas tais denominações, que se apresentam como simples classificação cronológica. Em verdade encobrem nessa aparente inocência uma canonização de Platão e Aristóteles, como o modelo e a norma de toda perfeição do pensamento ocidental até eles. Os que pensaram antes deles teriam pensado em função deles. Seriam precursores ainda primitivos da filosofia propriamente dita, instaurada por eles. Toda grandeza e importância dos pré-socráticos estaria assim em terem sido “pré”, isto é, um Platão e um Aristóteles de modo muito imperfeito. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Em consequência dessa decisão implícita naquelas denominações se leram, entenderam e interpretaram os primeiros textos com os olhos, a doutrina e os conceitos platônicos e aristotélicos. O sentido originário de seus pensamentos e da linguagem de suas palavras foi profundamente modificado pela filosofia posterior. Situação, que se agravou sobremodo com as traduções latinas, que, ao legarem à cultura do Ocidente o patrimônio grego, o desfiguraram a ponto de torná-lo quase incompreensível em sua originalidade. Hoje já não lemos o que os primeiros pensadores pensaram mas o que outro modo de pensar nas faz perceber. E não o lemos, porque o alarido da metafísica, enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, os torna surdos para a voz da origem. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Todo esse processo de desfiguração não foi um acaso, nem se trata de um processo, que poderia ter sido sustado. É o vigor do próprio esquecimento do Ser que se destina historicamente durante toda a época da metafísica. Nesse sentido o retorno às origens da metafísica não é um esforço para fazer renascer o pensamento pré-socrático, como pretendia Nietzsche. É a imposição de um pensamento de essencialização (— das wesentliche Denken, diz Heidegger —), um pensamento, isto é, que a partir da própria essencialização da metafísica procura superar-lhe o esquecimento da Verdade do Ser. Por isso a Hermenêutica, que na Introdução conduz à dimensão originária da Essencialização do Ser, não se identifica com nenhuma hermenêutica científica, em cuja luz aparecerá sempre arbitrária e deturpadora. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Com efeito o vigor histórico do esquecimento do Ser, que na era da técnica e da ciência atinge o paroxismo de sua virulência, opera na metafísica segundo a dialética de re-velação da diferença ontológica. Nela a Verdade do Ser, retraindo-se e velando-se em si, extrai e re-vela o ente na divergência e convergência entre fundamento e fundado. Jogado por tal dialética, o pensamento metafísico se edifica em duas dimensões. Enquanto estruturado na diferença lógica de ente e ser, reconduz o ente ao fundamento de possibilidade próximo em seu ser e remoto no ser supremo. Essa estrutura é a dimensão do pensado no pensamento metafísico. De vez que, por pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico não pensa a diferença ontológica como diferença, a dimensão do pensado é a dimensão do esquecimento do Ser. Por outro lado, uma vez que, para pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico já está determinado pela diferença ontológica, a recondução do ente a seu ser implica a configuração lógica da diferença. Essa implicação não é um nada. É antes a dimensão do não-pensado no pensamento metafísico. Assim o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da tradição ocidental exclui diretamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a dimensão do não-pensado que outra coisa não é senão a dimensão da Verdade do Ser. Por isso diz Heidegger “o não-pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento”. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

A dialética de presença e ausência da Verdade do Ser na História da metafísica é o que distingue a Hermenêutica da Introdução de qualquer hermenêutica científica. Essa se limita, em e por força de sua própria essencialização metafísica, ao pensado pelos filósofos da tradição. Visa com todo o rigor imposto por essa limitação reconstruir o que foi pensado. Para ela legado e pensado coincidem. Aquela, procurando pensar a essencialização da metafísica, situa-se aquém desses limites, na dimensão do não-pensado mas legado pelo pensamento da tradição. Visa uma “re-petição” do passado-presente, embora não pensado pelos filósofos da tradição. É uma hermenêutica que é o Hermes do não-pensado, isto é, que interpreta o pensado pela mensagem do não-pensado. A hermenêutica científica não é mais rigorosa. É apenas mais limitada do que a Hermenêutica da Introdução. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

O tradutor tem plena consciência dos riscos de traição, que comporta o presente esforço. Trata-se de traduzir para uma língua sem grande tradição filosófica textos de um pensamento, cuja originalidade é a originariedade. Procurando superar o predomínio da metafísica, vigente em todas as estruturas da existência ocidental, Heidegger revoluciona as relações correntes entre pensamento e linguagem. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

No modo cotidiano de ser só vemos na linguagem o instrumento. Uma técnica de comunicação, que nos apresenta, já prontas para o uso, as distinções com que operamos nas situações concretas da vida. Essa linguagem cotidiana não é a essencialização originária da linguagem. É apenas a forma mais frequente de sua presença. A compreensão do Ser, que aqui se articula, entretanto, não é apenas ingênua e primitiva. Uma longa história de pensamento metafísico a precedeu, interpretando instrumentalmente a linguagem na lógica e gramática da tradição. Hoje operamos de modo inconsciente com distinções, que, num supremo esforço de reflexão, foram criadas e estabelecidas pela metafísica. Nos quadros dessa interpretação se movem os recursos e as regras linguísticas, que hoje determinam as qualidades do estilo. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

De acordo com a originalidade de seu pensamento Heidegger se propõe superar essa interpretação metafísica da linguagem para atingir-lhe a dimensão originária, onde se presenteia o homem com uma re-velação do Ser. Nesse propósito teve de usar violência contra a forma vigente da linguagem e do estilo. Para isso contou com a grande riqueza semântica da língua alemã, que conserva nos étimos de suas palavras, na maleabilidade de seus recursos de expressão, nas grandes possibilidades de composição, adjetivação e substantivação muitos indícios do sentido originário da linguagem. Ademais Heidegger pensa dentro de um espaço linguístico enriquecido por uma das maiores tradições filosóficas do Ocidente. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

A discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos. O humanismo deixa de ser um valor indiscutível e, portanto, um trauma para o pensamento. Transforma-se na maior provocação para pensar na medida em que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes históricas da Verdade do Ser. Redimensionar o humanismo significa então superar-lhe as raízes num pensamento que é essencial por pensar a proveniência de sua própria Essência, isto é, por pensar a proveniência da Essência do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, en-cobrir essa proveniência, o humanismo, não só como designação, mas principalmente como visão e esforço, é um lucus a non lucendo. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

No itinerário do pensamento heideggeriano, Sobre o Humanismo serve ao segundo momento de sua marcha dialética de pro-gresso e re-gresso para superar a metafísica. Nesse serviço desempenha uma função didática, esclarecendo o sentido do primeiro momento, exposto em Sein und Zeit e nas primeiras obras. Como introdução à leitura, vamos ressaltar aqui três pontos principais dessa contribuição. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

1. Sobre o Humanismo e a Essência do Homem. Ao preparar o questionamento do problema sobre o Sentido do Ser, Sein und Zeit se propõe, por motivos inerentes à própria tarefa, re-pensar a Essência do homem a partir da “experiência fundamental do esquecimento do Ser”. Para isso se serve dos termos e da gramática vigentes na filosofia, como essência, existência, substância, Dasein, ente, ser etc, como sujeito, participio, objeto, genitivo subjetivo e objetivo etc. Mas o emprego desses termos e dessa gramática tem uma função bem precisa. Visa acionar o superamento da metafísica. Isso veio provocar uma situação fundamental e intencionalmente ambígua. A desconsideração dessa ambiguidade levou a “erros” palmares de interpretação e entendimento. É que a compreensão dessa linguagem “intencionalmente ambígua” exige que, ao esforço de aprender-lhe o sentido habitual, corresponda um esforço de superá-la num pensamento que ponha em questão a própria Essência da linguagem. A ambiguidade da linguagem reflete em si mesma a dialética inerente ao movimento de superação. Por isso toda tentativa de se determinar o sentido dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se articulam, tranca-se a qualquer possibilidade de entendimento. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Foi o que se deu com a maioria das interpretações de Sein und Zeit. Ao invés de re-pensarem os termos e a gramática pela coisa a ser pensada, muitos leitores procuraram entender a coisa a ser pensada pela lógica e pela gramática tradicionais. Ora, de vez que a lógica e a gramática da tradição são as formas em que o esquecimento da metafísica se apoderou da linguagem, a interpretação assim alcançada fica sempre à margem da questão e do propósito de Sein und Zeit. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Todo humanismo, em suas diversas modalidades — desde o humanismo romano, passando pelo humanismo cristão e renascentista até o humanismo socialista e existencialista — se funda sempre na interpretação metafísica do homem. Articulado no binômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização (existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalidade, quer confira o primado à essência, quer faça prevalecer a existência em suas várias dimensões. Uma determinação que não surgiu e se impôs por acaso. Vigora, ao contrário, na força de uma de-cisão do Sentido do Ser, como tal. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Mas a metafísica não questiona a articulação desse vigor em que ela repousa. Sua determinação do ser do homem se funda numa interpretação do Sentido do Ser que não é posta em questão. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Daí a tese do Sein und Zeit de que, edificando-se num esquecimento do Ser, a metafísica exige ser re-pensada no fundamento de sua possibilidade e assim superada em seu esquecimento. O primeiro esforço nesse sentido é procurar arrancar o ser do homem à interpretação metafísica, re-pensando-o em relação ao Ser. Assim os termos Essência, Existência, Dasein, Substância, usados em Sein und Zeit, não visam a pensar o homem por seus significados metafísicos e em consequência não se identificam com a essentia, a existentia, o Dasein e a substância da metafísica e do humanismo. Procuram antes pensar a essencialização do homem dentro da referência do Ser e o fazem, como o espaço de articulação (Da-) da Verdade do Ser (Sein). Ora, uma vez que, de um lado, a grandeza e a dignidade do homem se essencializam originariamente nessa re-ferência e, de outro, o humanismo, em sua virulência metafísica, não a questiona nem a pensa, a tarefa imposta a um Pensamento Essencial é abandonar o humanismo, para, pensando a Verdade do Ser, tornar-se essencialmente humano. Na preparação desta tarefa concentram-se as investigações de Sein und Zeit. Por tais esclarecimentos Sobre o Humanismo é o passaporte para a dimensão onde se move o pensamento de Heidegger ao nível da Analítica Existencial. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

Insensatez ou esquecimento da metafísica? Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

2. Desta perspectiva, Heidegger e Wittgenstein aparecem cada um numa luz diferente. Heidegger é o tipo do filósofo alemão. Especulativo, de formação clássica e filológica, empenha-se em repetir toda a tradição metafísica, visando não competir mas despedi-la. Neste empenho, a ciência moderna, em seu modo de reflexão técnico-matemático rigoroso, não lhe serve de modelo mas de sintoma: com o desenvolvimento planetário da técnica, a metafísica celebra, na decadência vigente do pensamento, o maior triunfo de seu domínio histórico. — Wittgenstein é o lógico da língua técnico-científica. Antiespeculativo por excelência, seu Tractatus e as Investigações Filosóficas valem como documentos clássicos da Filosofia Analítica nos círculos do que se poderia chamar de Epistemologia Dogmática. A mentalidade antiespeculativa, que desde Ockham através de Hobbes, Locke e Hume veio dominando o nominalismo inglês, e a crítica fundada na análise lógica da língua, que começou a florescer com Boole, Frege, Russell, Peirce e Moore, convergiram em Wittgenstein numa suspeita cética: toda metafísica, sendo destituída de sentido, é, na acepção própria do termo, uma insensatez, oriunda de uma incompreensão lógica da língua de nossos discursos. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

4. Se não nos deixarmos desviar desta aparência, a própria suspeita de insensatez nos possibilita encontrar nas diferenças entre Heidegger e Wittgenstein uma identidade de pensamento. Não apenas Wittgenstein, também Heidegger suspeita a metafísica de insensatez. Para Wittgenstein a metafísica se origina numa espécie de alienação da língua, cuja função lógica não é compreendida pelas especulações dos filósofos. Para Heidegger, a metafísica se origina numa espécie de alienação do Ser, cujo sentido se foi esquecendo nas peripécias da História do Ocidente. Não obstante todas as diferenças, Heidegger e Wittgenstein vieram a encontrar-se com três outras críticas à metafísica, fundadas também na suspeita de insensatez: com a crítica de Marx, que suspeita a metafísica de alienação ideológica, com a crítica de Nietzsche, que suspeita a metafísica de alienação do poder, e com a crítica de Freud que suspeita a metafísica de alienação da consciência. Com isso se completa o horizonte do pensamento crítico, em cuja radicalidade movimentos heterogêneos e endereços diferentes de pensamento encontram a identidade de sua própria diferenciação. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

5. A questão, que um Pensamento Radical impõe aqui, refere-se à metafísica vigente na própria suspeita de insensatez. Como se relaciona o pensamento crítico da suspeita com a insensatez da metafísica criticada? Até que ponto e em que nível o modelo de pensamento de um se insere ainda no âmbito da insensatez criticada pelo outro? Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

O contexto, a que corresponde o Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein, é constituído e dominado pelo poder da epistemologia. No vigor de sua constituição, a epistemologia recebe a força de si mesma de uma de-cisão bem determinada sobre a Verdade e de uma determinação de-cidida da Essência da Linguagem. No espaço aberto por esta de-cisão se desenvolve a estrutura do discurso científico na medida em que se esconde no surto antimetafísico da epistemologia uma certa metafísica da Linguagem. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

3. É a ambiguidade radical de antimetafísica metafísica da epistemologia que aprofunda Wittgenstein na teoria apo-digmática da Linguagem e a coloca à raiz de todo o desenvolvimento da Tractatus. Neste sentido, o mundo é o conjunto dos fatos empíricos, que são representados resp. projetados, como conjunturas (Sachverhalte), no espaço lógico pelos fatos apo-digmas da Linguagem. Esta representação e projeção é possível porque uma mesma forma, a forma lógica, estrutura tanto o mundo como a Linguagem. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

5. Já desde o 29 de seus 7 aforismos, Wittgenstein revela nesta impossibilidade o fundamento metafísico da antimetafísica da epistemologia. É que, de um lado, para ser discurso, o discurso metafísico não pode construir sentenças sobre a Essência do mundo e da Linguagem, mas tem de limitar-se a sentenças sobre os fatos empíricos do mundo, e, por outro lado, para ser metafísico, o discurso metafísico não se pode dar por satisfeito com sentenças sobre fatos empíricos, mas deve chegar a sentenças sobre a Essência do mundo e da Linguagem. Ora, tais sentenças são sentenças sobre a própria condição de possibilidades de si mesmas, o que é impossível por não respeitar seu próprio critério de sentido. Assim querer ser discurso é o bicho da metafísica: se a metafísica ficar no empírico, o bicho come, se correr do empírico, o bicho pega. O discurso metafísico é, pois, sem sentido, o que vale dizer, não é discurso. E a epistemologia fica nisso. A cantada da metafísica encantou tanto a epistemologia que, não podendo desvencilhar-se dos encantos, se ilude a si mesma, tentando de todos os modos ser antimetafísica. Radicalizando a perspectiva do critério de sentido, Wittgenstein procura desencantar a epistemologia, levando o pensamento para o solo pré-metafísico e pré-epistemoló-gico, onde se plantam as raízes da própria possibilidade de pensar. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

6. A virulência antimetafísica da epistemologia é fundamentalmente metafísica. A epistemologia se apresenta como um tiro disparado contra a possibilidade da metafísica. Mas fundando o tiro contra a metafísica numa metafísica do tiro, a epistemologia não consegue ser antimetafísica. Ao fuzilar a metafísica, executa a si mesma como epistemologia. Ou melhor: o seu tiro não é nem um tiro que sai pela culatra. Pois um tiro pela culatra ainda é um tiro. E o tiro da epistemologia, já no fundamento de sua própria possibilidade, está condenado a dar sempre chabu por não poder deixar de cortar a própria possibilidade de atirar. Esta ambiguidade é a característica fundamental do horizonte epistemológico em cujo contexto se instala o Tractatus com sua teoria da Linguagem. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

9. O Tractatus não é uma corrente de discursos, que pretendesse demonstrar teses segundo uma ordem hipotáti-ca ou para tática de argumentação. É que todo discurso está ordenado à organização lógica de fatos relativos a um conhecimento objetivo do mundo. O pensador não quer provar nada. Visa tão-somente a re-velar nas funções da língua o vigor do pensamento e assim denunciar a ilusão de se lhe atribuir o registro próprio da ciência. O projeto do Tractatus é inteiramente despojado de qualquer pretensão científica. A vitalidade de seus aforismos não pode ser determinada como um sistema de sentenças. Só fatos são suscetíveis de discurso. Uma sentença não pode exprimir senão um fato, simples ou complexo. Como o autor de Delfos, o pensador não afirma nem nega coisa alguma. Ele apenas assinala, enviando-nos à viagem de todas as nossas línguas. A metafísica tem sido vítima de seus próprios encantos. Mobilizada pelo narcisismo metafísico, a epistemologia se encantou pelos encantos metafísicos de uma antimetafísica. A metafísica cai sob a crítica da epistemologia por pretender pensar a Essência da realidade num discurso. A epistemologia, usando a arma da crítica sem fazer a crítica da arma, recai na metafísica, por não pensar a Verdade da Essência e assim desconhecer que há um pensamento mais originário do que o pensamento discursivo. É o que nos sugere o Tractatus de Wittgenstein: “Meine Saetze erlaeutern dadurch, dass sie der, welcher mich versteht, am Ende als unsinnig erkennt, wenn er durch sie — auf ihnen — über sie hinausgestiegen ist. (Er muss sozusagen die Leiter wegwerfen, nachdem er auf ihr hinausgestiegen ist). Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

Estas poucas indicações autobiográficas já demonstram uma profunda identificação com a terra natal. A importância de pensamento desta identificação é única em toda a história da filosofia alemã. Celebrou-a Hebel numa frase famosa: “Nós somos plantas que —desejemos confessá-lo ou não — devemos crescer com as raízes na terra para poder florir e dar frutos no céu”! O alarido da metafísica, enchendo-nos os ouvidos de distinções e dualismos, nos faz surdos à voz da Origem, que fala da renúncia para restituir o vigor de uma identidade inesgotável pela força de integração da diferença. É a última palavra de O Caminho do Campo: “Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz de novo morar uma Origem distante onde a terra natal nos é restituída”! (Der Feldiveg, p.8). Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador

A corrente de ideias artísticas e literárias, sociais e morais que se convencionou reunir sob o nome de existencialismo, são expressões interpretativas destas experiências. Existencialismo é um nome coletivo. Abrange toda a gama da expressividade de comportamento: desde a forma menos expressiva de uma moda inconsciente mas “interessante” até às formas altamente expressivas de interpretações fenomenológicas e científicas. Mas existencialismo nem sempre é sinônimo de filosofia e muito menos ainda de pensamento existencial. Muito antes de o existencialismo se haver constituído numa interpretação das experiências vividas pela humanidade ocidental em nosso século, muito antes de se ter feito moda, os filósofos e pensadores já haviam elaborado filosofias e pensamentos existenciais. Lançaram as raízes e estabeleceram os fundamentos de um esforço sem o qual não se pode compreender a reflexão e o pensamento de hoje. Uma vez que o termo, existência, desempenha uma função ora central ora decisiva nas obras de Kierkegaard e Carnus, Jaspers e Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty, a costumeira irreflexão não se preocupou em pensar e pesar o sentido dessa variedade de funções e endereços. Não obstante as profundas diferenças de endereço reflexivo, preferiu reunir todos indiscriminadamente na vala comum do existencialismo. Ganhando em extensão, o termo perdeu em dinâmica, conservando apenas um sentido meramente verbal: designa toda e qualquer interpretação que reserva à existência um papel central. Heidegger vê nessa designação o império das forças da metafísica. Para ele, como designação de seu pensamento, existencialismo é um “lucus a non lucendo”, um título que encobre o sentido e a intenção do esforço de pensar. É que a palavra, existencialismo, sugere a concepção de que a existência, isto é, o modo de ser próprio e característico do homem, constitui o centro da filosofia. E não só isso. Dificulta também uma compreensão do ser do homem em sua propriedade. Ora, o pensamento existencial procura fazer a experiência dos envios históricos do Ser, que lança o homem na existência, como o lugar da articulação de sua verdade. Não visa determinar o Ser pela existência mas entender a existência pelo Ser, enquanto destino, que estrutura toda a realização do homem como homem. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Um Destino Histórico Essencial implanta a terra linguística na galáxia da metafísica em cuja órbita gravitam as ciências. O pensamento precursor do poeta erra pelo espaço sem peso das ciências, à procura de gravidade. Por isso a preparação da semeadura exige uma formação do poeta no interior das ciências. Aqui o desafio é educar-se sem confundir poesia nem com erudição nem com ciência. O desafio é o perigo. Um perigo tanto mais salutar quanto mais, na descendência Histórica da metafísica, o poeta tem sempre de novo que encontrar a via de sua paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Linguística

Os viajantes não sabem das possibilidades que seu Destino Histórico reserva à viagem. Este não saber é fundamental. Provém da nesciência. É que não se trata de mera negatividade e ausência impotente mas da própria condição de encontro com a poesia. O pensamento precursor do poeta vive na nesciência tanto da pretensão de saber como da pretensão de não-saber. Pois todo saber como todo não-saber, nascendo do esquivar-se do mistério, tem na Linguagem não as fronteiras de suas limitações mas o vigor de sua força. É a nesciência da poesia. Só aceitando, os viajantes aprendem da viagem a ser o aprofundamento da paisagem na poesia. Só aprendendo, ensinam a identidade da Linguagem, destinando-se, em modos imprevisíveis de ausência, nas diferenças das épocas. Só aprofundando, proclamam o mistério da Linguagem na terra linguística da galáxia metafísica. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Linguística

A experiência grega do homem se construiu no Zõon lógon échon, de quem a formulação metafísica, animal rationale, não é de forma alguma uma tradução hermenêutica pelo simples fato de não nos traduzir para o nível de radicalidade da experiência grega. O homem não é um animal a quem se acrescentou razão e racionalidade. O homem é a vida da Linguagem, tanto no sentido do que sua humanidade chega a si mesma na passagem continua e recíproca da língua para a Linguagem como no sentido de que na sua humanidade a Linguagem se dá enquanto se retrai como língua. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Todo o empenho de um pensamento verdadeiramente atento a pensar o kairós do Ser se concentra em dissolver a força tirânica daquela alternativa, desviándo-se das vielas tradicionais da metafísica a fim de poder aviar-se em sua própria via. A passagem do desvio metafísico para o avio do Pensamento Essencial impõe uma série de exigências preliminares. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

Deve-se explorar primeiro as regiões sagradas do Ser, encobertas pelos cogumelos da metafísica a fim de se aprender a pensar divinamente as coisas divinas. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

Deve-se resilir às origens nossa representação petrificada de Deus — do Deus dos filósofos, que é sempre o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, do Deus do Cristianismo, que é sempre o Deus da metafísica. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

O Cristianismo des-mascarou o antropomorfismo do politeísmo pagão e o substituiu pelo monoteísmo de um Deus pessoal. Por outro lado, a Esquerda Hegeliana desmascarou o antropocentrismo radical do monoteísmo cristão e o substituiu pelo materialismo ateu de uma humanidade desalienada. Por mais diversos e inversos que sejam, um e outro esforço se fizeram e se fazem na força da mesma estrutura onto-teo-lógica da metafísica. Questionar a originariedade do politeísmo, do monoteísmo e do materialismo, quanto à divindade de Deus e quanto à humanidade do homem, não significa tentar em vão fazer regredir ou progredir a história. Significa seguir o apelo cairológico, de pensar o processo histórico à luz da Verdade enigmática do Ser. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

Aquém de todo antropomorfismo e de todo antropocentrismo, aquém de todo politeísmo e de todo monoteísmo, aquém de todo materialismo e de todo ateísmo, o que se impõe e importa pensar hoje é a referência originária do homem à divindade. É o sentido cairológico das diferentes figuras históricas de que ela se cobriu tanto nas religiões da Natureza como nas religiões do Espírito, tanto nas religiões da Substância como nas religiões do Sujeito, tanto nas religiões do Absoluto como nas religiões do Absurdo. E dentro desta perspectiva é possível perguntar se a precipitação do Divino na representação metafísica de um só Deus não afundou ainda mais o mundo no esquecimento do Ser e do Sagrado. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

As mesmas cadeias lógicas, que unem a estrutura di-mórfica da metafísica ao humanismo, ligam-na também ao monoteísmo. E assim como o humanismo masca e mascara a experiência originária do homem com o Ser, assim também o monoteísmo metafísico diverte e perverte a experiência originária do homem com o Divino. Ora, o Divino constitui o horizonte pluridimensional da deidade, o elemento misterioso onde poderá haver uma cor-respondência com Deus e os Deuses. Por isso o Pensamento Essencial procura sua Verdade fora da dualidade metafísica do teísmo e ateísmo. O ateísmo moderno não passa de uma consequência do cristianismo. É o cristianismo perfeitamente humanizado, isto é, no fundo totalmente descristianizado. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

Esforçando-se por retirar o enorme entulho da metafísica, o Pensamento Essencial se mantém equidistante do cristianismo e de seu reverso, o ateísmo, a fim de poder fazer a experiência da dessacralização, o horizonte comum de todos os modernos. A passagem, que conduz do Deus impessoal dos filósofos ao Deus pessoal do cristianismo, esta passagem considerada à luz da Verdade esquecida do Sagrado é tão ilusória como a passagem, que leva do humanismo da substância ao humanismo do sujeito. Heidegger lembra que a categoria de pessoa não é menos carregada das potências metafísicas de dessacralização e desumanização do que as categorias de objeto e de coisa. O Deus, para cujo nome o Pensamento Essencial procura a devida linguagem, não é, portanto, nem o Deus de Hegel nem o de Kierkegaard. É o Deus Divino de Jesus Cristo, que justamente por não ser da metafísica não pode ser também nem o Deus da religião do Absoluto nem o Deus da religião do Paradoxo. Tanto num como no outro caso, o pensamento fica enredado numa aberração não pensada do Ser, a cuja rede se atrelam então as disputas históricas sobre os preâmbulos da fé, sobre o Deus dos geómetras e o Deus dos cristãos, sobre a desmitização, sobre a dialética e o retorno sublimado do reprimido. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

Assim se pode pressentir já a radicalidade da re-volução, que impõe ao pensamento a hermenêutica de nossa existência moderna. A metánoia do pensamento precursor do Sagrado renuncia a todas as representações tradicionais de Deus. Na hermenêutica atual não se dispõe de uma linguagem divina. A metafísica se apoderou de todas as palavras, de toda a gramática e de todas as linguagens, transformando-as em outras tantas funções de sua estrutura onto-teo-lógica. Temos hoje uma carne tão saturada de metafísica que o Verbo já não encontra as condições de possibilidade para “fazer-se carne e atendar entre nós”. Por isso, para ser precursor, o pensamento não pode pensar em Deus. Mas este pensamento sem Deus não é um pensamento ateu. Ao contrário. Por abandonar o Deus dessacralizado da metafísica, está mais próximo talvez do Deus divino. O silêncio de Deus- talvez seja a única maneira de vencer de forma decisiva a dessacralização do mundo. Talvez seja o cairos de um novo des-velar-se do horizonte do Sagrado. Um horizonte do Sagrado mais originário do que as experiências que nos proporcionam as religiões modernas, cativas todas de uma metafísica mais teológica e mais dessacralizada do que nunca. Talvez na experiência da ausência de Deus, na espera do silêncio, nos seja concedida outra vez a jovialidade necessária para voltar a brilhar a estrela de Deus em novo advento de Cristo. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento

15. Devido ao mecanismo da funcionalidade, uma sociedade dominada por relações funcionais tende a substituir a autoridade pelo poder. Geralmente se entende por poder a força material à disposição de um sujeito. No entanto poder nem sempre possui natureza material e nem toda força material é poder. A Essência do poder é o “eu posso” da subjetividade. Trata-se de uma determinação metafísica que reduz toda realidade à objetividade e toda interioridade, à subjetividade. No âmbito do poder não pode haver mistério. Como o status, exclui interioridade e se constitui independente do relacionamento de encontro entre as pessoas. Numa sociedade anônima há entre os escalões uma relação de poder. Em razão da hierarquia das funções um determinado status “pode mais” do que outro. O poder do gerente se liga à função do cargo independente da pessoa que o ocupa. Para uma instituição o ideal seria uma empresa, cujos cargos fossem puras funções. É sempre o Mistério da pessoa que atrapalha a eficiência da funcionalidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo

À luz do Pensamento Essencial se vê que o problema de Deus ainda não encontrou no Ocidente, tanto em sua história como em seu pensamento, as condições indispensáveis para se colocar em sua verdade. Para tanto, impõe-se iluminar primeiro, em sua fonte, a estrutura em que Deus há de integrar-se. Ora, a metafísica, que pretende ter integrado Deus, é a estrutura dá ausência do Ser. E o problema de Deus só se apresenta como problema de Deus a partir da fonte donde se essencializa a metafísica. É que a integração de Deus na filosofia depende de Deus e não da metafísica. Assim, na filosofia em que Deus foi integrado, Deus não existe e ainda não existe a filosofia em que Deus se pudesse integrar como Deus. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Trata-se da oposição fundamental. É que diz respeito ao próprio vigor de essencialização da filosofia. Tanto Hegel como Heidegger pretendem ultrapassar a dicotomia, a cisão de ser e pensar. Hegel procura fazê-lo, reduzindo e dissolvendo o ser no pensamento através de uma metafísica de identidade absoluta. Heidegger contrapõe a esta identidade absoluta a com-pertinência originária de ser e pensar na qual o pensamento pertence ao ser e não o ser ao pensamento. A identidade absoluta provém do esquecimento da com-pertinência originária. A metafísica do Espírito Absoluto é um sistema de identidade sem diferença. Para Hegel o Ser é o pensamento pensando a si mesmo como ideia Absoluta. Para Heidegger, o Ser é a diferença como diferença. A “causa” do pensamento é o Ser na sua diferença do pensamento que pensa a realização do real. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Hegel afirma na Phaenomenologie des Geistes: “Die Wunden des Geistes heilen ohne dass Narben bleiben”: “as chagas do Espírito saram sem deixar cicatrizes”. Para Heidegger, ao invés, de há muito, desde sua origem e para sua origem, o Espírito do Ocidente se feriu de esquecimento do Ser e deixou em sua História uma poderosa cicatriz, a metafísica, que resiste a todas as operações plásticas do progresso. O Pensamento Essencial procura pensar a cicatriz a partir de sua proveniência. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Para Hegel, o espírito do presente é a Presença do Espírito. Para Heidegger, o espírito do presente é a ausência do Ser. A marcha da filosofia é, para Hegel, um progresso dialético enquanto para Heidegger o caminhar do Pensamento Essencial é um regresso, “ein Schritt zurueck”, um passo atrás. Pois o Pensamento Essencial é a dinâmica da com-pertinência originária de ser e pensar. Nos vórtices dessa dinâmica a filosofia do Ocidente se revela como a força da metafísica cuja plenitude é o sistema de controle do real. O regresso é um passo que passa do sistema de controle à sua proveniência na estrutura onto-teo-lógica da metafísica, que, por sua vez, vive das vicissitudes de esquecimento da com-pertinência originária de ser e pensar. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

O regresso parte da situação atual e é uma passagem da tecnologia da sociedade industrializada (funcionalização, automação, burocratização, massificação, mundo dessacralizado) para a Essência profunda da técnica. Esta é a estrutura metafísica onde o Ser é esquecido enquanto diferença. Trata-se de um vigor Histórico que aprofunda seu domínio no mundo técnico, alçando-se cada vez mais a um nível planetário. Sua grande potência Histórica é fazer secar a fonte das forças capazes de individuar os perigos de sua dominação.” Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

O regresso é assim “ein langer Weg”, um longo caminho. E um longo caminho no meio de uma noite Histórica. O Pensamento Essencial trabalha na caminhada deste caminho de cuja duração e persistência não se conhece a medida. “Der Schritt zurueck verlangt eine Dauer und Ausdauer, deren Mass wir nicht kennen. A noite Histórica por onde caminha o caminho do regresso, é o império técnico do niilismo. Daí o primeiro passo da caminhada consistir em ultrapassar o niilismo da técnica, ingressando no vigor de sua Essência: “Die Einkehr in sein Wesen ist der erste Schritt durch den wir den Nihilismus hinter uns lassen”. Nesse ingresso se opera uma tomada de consciência da metafísica implícita no sistema de controle. Trata-se de explicitar como o mundo técnico leva à plenitude de seu vigor Histórico a estrutura onto-teo-lógica da metafísica do Absoluto. Para isso há de se promoverem as forças do Pensamento Essencial. É que a decadência do pensamento já atingiu tal profundeza que grande é o risco de os homens perderem a força necessária para perceberem a decadência e avaliá-la como decadência: “Der geistige Verfall der Erde ist so weit fortgeschritten, dass die Voelker die letzte geistige Kraft zu verlieren drohen, die es ermoeglicht, den (im Bezug auf das Schicksal des “Seins” gemeinten) Verfall auch nur zu sehen und als solchen abzuschaetzen”.” Assim a força historicamente determinante da estrutura onto-teo-lógica foi impedindo progressivamente a presença de Deus na História do Ocidente, mobilizando em seu lugar a dinâmica técnica do Absoluto. A chave, portanto, para se compreender por que Deus não se identifica com o Absoluto da metafísica do Espírito “”e por que o Pensamento Essencial não pode pensar Deus como o Absoluto e por conseguinte tem de silenciar sobre Deus nos dá a própria estrutura da metafísica. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

A constituição onto-teo-lógica da metafísica é uma estrutura de três integrantes: o ôntico, o theós e o lógico. Este último é o fator mais importante, por ser a força estruturante. A metafísica é onto-teo-lógica porque é lógica. E por ser lógica, abandona a diferença como diferença, dinamiza uma ontologia sem Ser e uma teologia sem Deus, instala um sistema de controle e promove uma História sem mistério. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Fundar é a ação própria da lógica. Lógico é o modo de pensar em que se elabora uma estrutura hipotática de ideias, uma fundando a outra. Já com Aristóteles a lógica funda o ente na universalidade do ser. A lógica de Aristóteles é a primeira sistematização da força fundante da razão. Mais do que ninguém, compreendeu Hegel essa força fundante da razão e é por isso que chamou a metafísica de Wissenschaft der Logik, “Ciência da Lógica”. Mas Hegel faz das formas lógicas de Aristóteles o conteúdo do Espírito Absoluto consciente de si mesmo. É que a autoconsciência do Espírito Absoluto é um processo dinâmico de autocons-cientização. Hegel descreve este processo, explicitando os nexos necessários que unem as etapas e estações de seu desenvolvimento. Na plenitude de sua autoconsciência o Espírito Absoluto se compreende como “Logos” do ser e do conhecimento de todas as coisas. Ora, este progresso lógico para o último fundamento ” é uma ascensão a Deus, como principium essendi et cognoscendi de toda realidade: “was ueberhaupt im jetzigen Augenblicke zunaechst Interesse der Philosophie ist, naemlich einmal wieder Gott absolut vornehin an die Spitze der Philosophie ais den alleinigen Grund von aliem, ais das einzige principium essendi et cognoscendi zu stellen”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Agora se pode compreender a afirmação de Heidegger de que a metafísica é lógica, como onto-lógica, na medida em que pensa o ente no seu todo na dinâmica de fundamento e fundado: Denkt die Metaphysik das Seiende in Hinblick auf seinem jeden Seienden als solchen gemeinsamen Grund, dann ist sie Logik als Ontologik”. Essa lógica estruturante é necessariamente uma teo-lógica. Pois uma fundamentação só é realmente fundante quando chega a um fundamento absoluto, que não é capaz nem necessita de ulterior fundamentação. A lógica, portanto, só é lógica enquanto “teologia ontológica do Absoluto”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Ao aprofundar a dialética lógica do pensamento, Hegel identificara a lógica com a teologia. Trata-se de uma identificação inevitável e necessária sempre que o ente for pensado em função de um fundamento comum. Se pensar é reunir os entes no fundamento do ser em sua dinâmica de absolutização, não há como evitar uma dupla direção no articular-se lógico de ser e ente. Enquanto universal, o ser funda os entes, recolhendo-os em sua universalidade, enquanto universal concreto exige para sua universalidade um fundamento num ente que realize o supremo grau de entificação, o absoluto. Assim se fecha a dinâmica da estrutura onto-teo-lógica da metafísica, que Heidegger determina como o “vigor do mútuo referir-se e diferir de ser, como fundamento, e ente como fundado-fundante”: “Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik entstammt aus dem Walten der Differenz, die Sein als Grund und Seiendes als gegruendet-begruendendes aus- und zueinanderhaelt”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

A metafísica é teológica porque é lógica. Mas por que é lógica a metafísica? Esta questão já não se põe verdadeiramente como questão no horizonte da reflexão metafísica. Para ser questionada em sua Verdade, supõe que o pensamento se encontre além da dinâmica de fundamentação, fora da força determinante da lógica. Trata-se de uma questão que só se movimenta no âmbito de experiência de um Pensamento Essencial. A metafísica é lógica, quer, então, dizer que a Verdade do Ser se destinou na figura do Logos, isto é, na dinâmica de fundamentação, reivindicando todas as forças de criação Histórica para o Absoluto da razão e sua racionalidade. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

A estrutura onto-teo-lógica da metafísica criou em sua dinâmica Histórica de Absolutização o mundo técnico-científico do sistema de controle, onde Deus está morto. Na situação atual não se pode falar em Deus. A metafísica se apoderou de todas as palavras, de toda a gramática e de todas as expressões, transformando-as em outras tantas funções de sua estrutura onto-teo-lógica. Transcendência e imanência, mundo sensível e inteligível, matéria e espírito, sujeito e objeto, corpo e alma, ser e pensar, poder, querer e sentir pressupõem já o esquecimento da diferença como diferença. Estamos tão saturados de linguagem metafísica que só nos resta o silêncio. É por isso que o Pensamento Essencial é “um pensamento sem Deus”, “ein gottloses Denken”. Por renunciar ao Absoluto da metafísica, prefere não falar de Deus. Absorvido pelo Absoluto da sociedade industrializada, o vigor histórico da metafísica já não permite outra atitude do que a da espera do silêncio. Talvez na experiência da ausência, na espera do silêncio, esteja por vir novo desvelar-se do horizonte do sagrado. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

A espera do silêncio, no entanto, não é passividade. É a construção obscura, insegura e estranha de um salto”. O salto é um “Absprung”, um salto que deixa para trás o ser concebido como fundamento, abandonando todo pensar lógico. Por isso, olhado na perspectiva da metafísica, será sempre um salto no abismo. O salto, que salta da estrutura lógica do pensamento, dá na experiência poética dos poetas. É que, enquanto diferença, a manifestação do Ser se dá na linguagem. No fazer-se linguagem do Ser, o homem vem a si mesmo e o mundo vem ao homem para ser mundo. As palavras do Pensamento Essencial não são recipientes onde se conserva em latas significantes o conteúdo significativo para uso do discurso. As palavras do Pensador, como as palavras do Poeta, são fontes e mananciais que sempre de novo jorram originariamente. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Mas o salto não é uma atitude isolada de alguns indivíduos. É um salto histórico e social. A linguagem é ao mesmo tempo um desvelar-se e um velar-se do Ser na História da Humanidade. Ao fazer-se linguagem, o Ser presenteia o homem com sua Essência mas ao mesmo tempo, ao fazer-se linguagem metafísica, se ausenta na odisseia do esquecimento. Um esquecimento, que alcança hoje a plenitude de suas virtualidades de ausência no mundo técnico do sistema de controle. Aqui o homem se vai deslocando de sua essência para sua Não-Essência. ” Sistema de controle é uma Época em que todas as dimensões do homem, naturais, culturais, materiais, espirituais são promovidas, reconhecidas e protegidas mas ao mesmo tempo perdem gradativamente a liberdade. O poder crescente da automação e do progresso implica uma crescente desumanidade. Não, decerto, no sentido de que os homens se tornem cada vez mais animais e sim no sentido de que o próprio sistema de controle, como força coletiva, se preocupa sempre menos com o homem e sua dignidade. No sistema de controle aumenta e se aprofunda sempre mais o afastamento do homem de sua Essência. O grande desafio de nossa época é o desafio de uma conversão do homem de sua Não-Essência para sua Essência. Trata-se de uma conversão que recoloca o homem em seu lugar de origem na linguagem do Ser. Mas não se restaura o lugar de origem de uma História repisando um passado já passado. Só se restaura o lugar de origem instaurando as perspectivas e mobilizando as forças para um principiar mais originário com tudo que ele comporta de estranho, obscuro e incerto. ” É uma restauração de natureza social. O fazer-se linguagem do Ser se dá sempre enquanto somos sócios uma vez que o Ser é um destino comum. Uma restauração que principia com a tomada de consciência da alienação do homem de sua Essência e parte da sociedade industrializada do sistema de controle. Uma restauração, que promove o advento de uma época de nova sabedoria, uma época de convivência e reconciliação humana, uma época de interioridade e integração, uma época silenciosa que não será proclamada à alta voz. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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