Excertos de “Aprendendo a pensar”, Tomo I.
A originalidade de nosso século está em haver deslocado o problema das relações entre história e verdade para o próprio diferir e referir da diferença e referência de temporal e intemporal, de relativo e necessário, de processo e validez, de ato e conteúdo. Assim a validez formal de uma verdade não somente não exclui mas até inclui necessariamente um horizonte histórico em que ela se possa verificar, isto é, em que se possa exercer e articular. Pois a correção lógica de uma conformidade e concordância pressupõe sempre como condição indispensável de sua possibilidade que se manifestem previamente os termos da relação. Ora uma manifestação em que se revela uma essência, se des-cobre um ser, se des-venda um sentido, se expõe um mundo, não é possível nem compreensível senão como processo histórico. Esse aprofundamento da perspectiva reflexiva transformou o problema da história e da verdade. A ciência da história, a historiografia, não institui nem atinge o vigor originário da história, a historicidade, em cujo fundamento os fatos históricos se constituem justamente como históricos, o homem pode fazer experiências históricas da história e levar uma vida histórica. Assim como a ciência da verdade, a lógica e gnoseologia, não alcança a promoção originária da verdade, a manifestação de sentidos, em cuja força se elabora a concordância entre conhecimento e realidade e o homem pode pro-duzir a verdade das coisas. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Na realização dessa tarefa não interessa a estrutura lógica das ciências do espírito. ” Dilthey se preocupa da estrutura real. Ora, o que em primeiro lugar estrutura um processo real é a conexão de seus momentos. Com isso Dilthey completa a trilogia da consciência histórica articulada na coesão de vivência e compreensão. A importância da conexão é dar unidade à interdependência de compreensão e vivência. Toda vicissitude da vida é uma trama conexa em que tudo se insere numa referência essencial com o todo. O objeto das ciências do espírito é esse nexo efetivo e suas criações que referem entre si nas obras históricas as diferenças de vivência e compreensão. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Descobrindo que a neurose não é um sintoma, Freud transcende o universo dos fatos e cria para o discurso da psicanálise um novo universo, o universo do sentido. Um sentido não é o produto de causas mas a criação de um sujeito. A lógica e epistemologia do sentido vivem um outro jogo da linguagem. E é segundo as regras deste jogo que não pode haver distinção clara entre observação e interpretação. Só se exige clareza a respeito de quem está dizendo o quê. Por isso, se o discurso do fato pergunta em termos de “como” e responde em termos de causalidade-probabilidade, determinação-indeterminação, o discurso do sentido pergunta em termos de “por quê”? e responde em termos de criatividade na dependência. Esta diferença provém da linguagem em jogo. Pois nos discursos de todas as suas línguas a linguagem joga sempre com o animado e o inanimado. No jogo com o inanimado, o discurso discorre sobre a atividade-comportamento e fala de determinação-indeterminação. No jogo com o animado, o discurso recorre ao sentido da atitude e fala de identidade. As categorias de animado e inanimado são decisivas para o universo de discurso do sentido. É que a fronteira entre vida e não-vida marca os limites de nossa capacidade de identificação. Na identificação, sentimos o que um ser deve ter para viver. Na identificação, compreendemos a atitude e o sentir-se do ser vivo. A realidade das informações assim obtidas depende da capacidade de se tolerarem diferenças e, pela crítica da transferência, de se manter a identificação dentro dos limites da identidade. Dentro destes limites, a identificação nos proporciona informações que de outra maneira nos seriam inacessíveis. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
É esta mesma de-cisão que estabelece até hoje a filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles como critério na escolha, interpretação e avaliação dos primeiros pensadores gregos. Os problemas, as concepções e os conceitos de Sócrates, Platão e Aristóteles, transformados pelas ciências modernas, servem de parâmetro para se medir o nível filosófico de todos os gregos de antes e depois da segunda metade do século V. Em pacientes pesquisas filológicas, historiográficas e lingüísticas busca-se reconstruir a lógica , a ética e a física arcaicas sem se levar em conta que só há uma lógica , uma ética e uma física na tradição de ensino das escolas clássicas. Não se permite, que os primeiros pensadores gregos sejam pensadores. Têm de ser filósofos, iguais a Sócrates, Platão e Aristóteles, ainda que só o sejam de forma arcaica, isto é, primitiva. Por isso mesmo só podem ser pré-socráticos ou pré–platônicos ou pré-aristotélicos. Assim, nestes títulos, o pré- não possui apenas sentido cronológico mas sobretudo axiomático. É o axioma de implantação da filosofia na decadência do pensamento. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferença ontológica, inclui sempre uma irredutibilidade ao ente. Nunca poderá ser objetivado. Nunca poderá ser encontrado nem como ente, nem com o ente, nem dentro do ente. Nunca poderá ser constatado a modo de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina o ente segundo determinada figura de sua Verdade. Esse jogo híbrido de retraimento e manifestação, de luz e sombra, de velar e re-velar constitui a essencialização de sua Verdade, tal como os gregos a pensaram originariamente na a-létheia. Dessa dinâmica surge a constituição dos períodos de sua fulguração, como épocas da Verdade do Ser. A palavra época não apresenta aqui a função “tética” da consciência transcendental, inerente ao termo husserliano, epoche. É antes pensada a partir da tendência do Ser, de re-velar o ente na medida em que se vela e retrai em si mesmo. A época é sempre uma configuração histórica do esquecimento do Ser. Ora, sendo a existência o espaço aberto por essa configuração epocal, a Verdade do Ser está mais de posse do que na posse do homem e por isso mesmo é sempre esquecida na história de sua essencialização. O homem só pode principiar a investigar o ente como tal, a fim de, adequando-se a seu ser, tomá-lo por medida e critério da existência, porque a Verdade do Ser já antes dele se tinha apoderado e o havia destinado em determinada época de sua fulguração. Numa época em que a significação do ente enquanto ente é estruturada na diferença entre fundamento e fundado. Isso quer dizer: a essencialização do pensamento ocidental, em que a existência do Ocidente toma consciência de si mesma, é absorventemente lógica no sentido de edificada na interdependência de fundamento e fundado. E por ser lógica é de modo igual ôntica e teísta. É igualmente ôntica, porque o ser é o fundamento do ente “on”. É igualmente teísta, porque, por necessidade da própria fundamentação, o ente só será realmente fundamentado, se se fundar num último fundamento, que exclua a possibilidade e necessidade de ulterior fundamentação. Esse fundamento supremo é o absoluto, o theós. Assim, tendo principiado com o esquecimento do Ser, a história da metafísica desdobra, em todos os períodos de seu desenvolvimento, numa multiplicidade de formas, essa constituição onto-teo- lógica . É originariamente uma época da Verdade do Ser, na qual a investigação do ente, enquanto ente em sua totalidade e no supremo fundamento de sua fundação, reivindica para si o direito de conduzir o homem à verdade correta, imutável, necessária e certa. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Com efeito o vigor histórico do esquecimento do Ser, que na era da técnica e da ciência atinge o paroxismo de sua virulência, opera na metafísica segundo a dialética de re-velação da diferença ontológica. Nela a Verdade do Ser, retraindo-se e velando-se em si, extrai e re-vela o ente na divergência e convergência entre fundamento e fundado. Jogado por tal dialética, o pensamento metafísico se edifica em duas dimensões. Enquanto estruturado na diferença lógica de ente e ser, reconduz o ente ao fundamento de possibilidade próximo em seu ser e remoto no ser supremo. Essa estrutura é a dimensão do pensado no pensamento metafísico. De vez que, por pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico não pensa a diferença ontológica como diferença, a dimensão do pensado é a dimensão do esquecimento do Ser. Por outro lado, uma vez que, para pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico já está determinado pela diferença ontológica, a recondução do ente a seu ser implica a configuração lógica da diferença. Essa implicação não é um nada. É antes a dimensão do não-pensado no pensamento metafísico. Assim o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da tradição ocidental exclui diretamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a dimensão do não-pensado que outra coisa não é senão a dimensão da Verdade do Ser. Por isso diz Heidegger “o não-pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento”. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
No modo cotidiano de ser só vemos na linguagem o instrumento. Uma técnica de comunicação, que nos apresenta, já prontas para o uso, as distinções com que operamos nas situações concretas da vida. Essa linguagem cotidiana não é a essencialização originária da linguagem. É apenas a forma mais frequente de sua presença. A compreensão do Ser, que aqui se articula, entretanto, não é apenas ingênua e primitiva. Uma longa história de pensamento metafísico a precedeu, interpretando instrumentalmente a linguagem na lógica e gramática da tradição. Hoje operamos de modo inconsciente com distinções, que, num supremo esforço de reflexão, foram criadas e estabelecidas pela metafísica. Nos quadros dessa interpretação se movem os recursos e as regras lingüísticas, que hoje determinam as qualidades do estilo. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Foi o que se deu com a maioria das interpretações de Sein und Zeit. Ao invés de re-pensarem os termos e a gramática pela coisa a ser pensada, muitos leitores procuraram entender a coisa a ser pensada pela lógica e pela gramática tradicionais. Ora, de vez que a lógica e a gramática da tradição são as formas em que o esquecimento da metafísica se apoderou da linguagem, a interpretação assim alcançada fica sempre à margem da questão e do propósito de Sein und Zeit. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
2. Desta perspectiva, Heidegger e Wittgenstein aparecem cada um numa luz diferente. Heidegger é o tipo do filósofo alemão. Especulativo, de formação clássica e filológica, empenha-se em repetir toda a tradição metafísica, visando não competir mas despedi-la. Neste empenho, a ciência moderna, em seu modo de reflexão técnico-matemático rigoroso, não lhe serve de modelo mas de sintoma: com o desenvolvimento planetário da técnica, a metafísica celebra, na decadência vigente do pensamento, o maior triunfo de seu domínio histórico. — Wittgenstein é o lógico da língua técnico-científica. Antiespeculativo por excelência, seu Tractatus e as Investigações Filosóficas valem como documentos clássicos da Filosofia Analítica nos círculos do que se poderia chamar de Epistemologia Dogmática. A mentalidade antiespeculativa, que desde Ockham através de Hobbes, Locke e Hume veio dominando o nominalismo inglês, e a crítica fundada na análise lógica da língua, que começou a florescer com Boole, Frege, Russell, Peirce e Moore, convergiram em Wittgenstein numa suspeita cética: toda metafísica, sendo destituída de sentido, é, na acepção própria do termo, uma insensatez, oriunda de uma incompreensão lógica da língua de nossos discursos. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
4. Se não nos deixarmos desviar desta aparência, a própria suspeita de insensatez nos possibilita encontrar nas diferenças entre Heidegger e Wittgenstein uma identidade de pensamento. Não apenas Wittgenstein, também Heidegger suspeita a metafísica de insensatez. Para Wittgenstein a metafísica se origina numa espécie de alienação da língua, cuja função lógica não é compreendida pelas especulações dos filósofos. Para Heidegger, a metafísica se origina numa espécie de alienação do Ser, cujo sentido se foi esquecendo nas peripécias da História do Ocidente. Não obstante todas as diferenças, Heidegger e Wittgenstein vieram a encontrar-se com três outras críticas à metafísica, fundadas também na suspeita de insensatez: com a crítica de Marx, que suspeita a metafísica de alienação ideológica, com a crítica de Nietzsche, que suspeita a metafísica de alienação do poder, e com a crítica de Freud que suspeita a metafísica de alienação da consciência. Com isso se completa o horizonte do pensamento crítico, em cuja radicalidade movimentos heterogêneos e endereços diferentes de pensamento encontram a identidade de sua própria diferenciação. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
3. É a ambigüidade radical de antimetafísica metafísica da epistemologia que aprofunda Wittgenstein na teoria apo-digmática da Linguagem e a coloca à raiz de todo o desenvolvimento da Tractatus. Neste sentido, o mundo é o conjunto dos fatos empíricos, que são representados resp. projetados, como conjunturas (Sachverhalte), no espaço lógico pelos fatos apo-digmas da Linguagem. Esta representação e projeção é possível porque uma mesma forma, a forma lógica , estrutura tanto o mundo como a Linguagem. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
4. Ora, se o estatuto apo-digmático da Linguagem, de representar fatos por fatos, retira sua possibilidade de uma mesma forma, esta já não pode ser representada nem projetada pelo registro da Linguagem. Para tanto, o registro deveria colocar-se fora de sua própria possibilidade de registrar, o que tornaria todo registro impossível. Como condição de possibilidade do registro e da representação, a forma lógica do mundo e da Linguagem antecede e se retrai a toda função apo-digmática da Linguagem, a toda representação do mundo. Por ser e para ser forma do mundo e da Linguagem, a forma lógica não pode, em princípio, ser registrada em nenhuma representação do mundo pela Linguagem. Assim o chamado “critério de sentido”, constitutivo da estrutura de todo e qualquer discurso, não é outra coisa do que a impossibilidade de não se respeitar no discurso a possibilidade do próprio discurso. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
3. “A representação lógica dos fatos é o pensamento”. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
9. O Tractatus não é uma corrente de discursos, que pretendesse demonstrar teses segundo uma ordem hipotáti-ca ou para tática de argumentação. É que todo discurso está ordenado à organização lógica de fatos relativos a um conhecimento objetivo do mundo. O pensador não quer provar nada. Visa tão-somente a re-velar nas funções da língua o vigor do pensamento e assim denunciar a ilusão de se lhe atribuir o registro próprio da ciência. O projeto do Tractatus é inteiramente despojado de qualquer pretensão científica. A vitalidade de seus aforismos não pode ser determinada como um sistema de sentenças. Só fatos são suscetíveis de discurso. Uma sentença não pode exprimir senão um fato, simples ou complexo. Como o autor de Delfos, o pensador não afirma nem nega coisa alguma. Ele apenas assinala, enviando-nos à viagem de todas as nossas línguas. A metafísica tem sido vítima de seus próprios encantos. Mobilizada pelo narcisismo metafísico, a epistemologia se encantou pelos encantos metafísicos de uma antimetafísica. A metafísica cai sob a crítica da epistemologia por pretender pensar a Essência da realidade num discurso. A epistemologia, usando a arma da crítica sem fazer a crítica da arma, recai na metafísica, por não pensar a Verdade da Essência e assim desconhecer que há um pensamento mais originário do que o pensamento discursivo. É o que nos sugere o Tractatus de Wittgenstein: “Meine Saetze erlaeutern dadurch, dass sie der, welcher mich versteht, am Ende als unsinnig erkennt, wenn er durch sie — auf ihnen — über sie hinausgestiegen ist. (Er muss sozusagen die Leiter wegwerfen, nachdem er auf ihr hinausgestiegen ist). Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein
Heráclito: Não é edipiano, portanto, o olho que per-cebe os limites da visão em tudo que se vê. Um limite, que se per-cebe, já não prende, liberta. Não é só clausura. É também uma abertura. Numa estória antiga sem tempo, o Não-Saber visitou o Saber com a pergunta: “O que é Nada?” — O Saber respondeu de pronto: “Nada é não ser!” Mas o Não-Saber não se satisfez e insistiu: “Neste caso, se Nada for mesmo Nada, não é Nada, é ser. Para ser não ser, tem que ser e, sendo, já não é não ser!” Ao Saber ocorreu logo o paradoxo do mentiroso e quis sair-se com a doutrina das suposições, a teoria dos tipos e a lógica do discurso. Mas tudo isso lhe pareceu corresponder mais ao olho edipiano do que responder à pergunta do Não-Saber. Por isso se pôs a perguntar por toda parte: “é ou não é?” — Invocado por não obter resposta, apurou os ouvidos, mas tudo era silêncio. Acendeu os olhos mas tudo era escuridão. Estendeu as mãos mas tudo era vazio. Abriu a boca, nenhum sabor. Respirou o ar, nenhum odor. Já grilado ia desistir quando de repente gritou: “então é isso! Mas é o máximo!” — Procurou o Não-Saber e disse: “Não posso saber o que é o Nada mas posso saber que não sei. Se sei que não sei, não estou vencido. Ainda tenho o saber de meu não-saber. O auge da sabedoria não é o não-saber do saber mas o saber do não-saber”. Diante de toda esta euforia, o Não-Saber comentou apenas: “Com tanto poder, o Saber só não pode não saber que não sabe o que é Nada”! / Diana: Olhando o céu e o mar até o horizonte, não vemos apenas um panorama numa perspectiva determinada e determinante. Em tudo, que aí vemos, nós nos per-cebemos numa dada posição. É que horizonte, panorama e perspectiva se coordenam e referem à posição que ocupamos. De seu sistema de referência e coordenadas, a mesma paisagem se oferece a todos que tomarem a mesma posição. Mesmo, no entanto, não significa igual. Significa idêntico nas vicissitudes de personalização diferentes. Com as mudanças de mira e ângulo de visão, de horizonte e perspectiva não se altera o campo de visibilidade proporcionado pela posição. A solidez e estabilidade de uma posição não dependem nem da perspectiva nem do horizonte nem do panorama. Dependem da abertura que, possibilitando perspectivas, dá acesso à visibilidade de horizonte e panorama. Por isso só nos é acessível o que se nos pro-sta aberto pela abertura. Só temos acesso àquilo para o que estamos abertos. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito
Estranhamente o mito vem interessando às pesquisas de filólogos e antropólogos, literatos e psicólogos, sociólogos e historiadores. Mais estranho ainda o interesse dos filósofos existenciais. e até já haver um problema filosófico do mito. Pois o mito, assim se julga quer implícita quer explicitamente, é a-lógico. Algo de irracional. A filosofia, ao invés, não somente se afirma como algo lógico e racional mas é a própria cidadela da lógica . A gerência da razão. e isso não por uma pretensão abstrata e gratuita. Trata-se de uma pretensão concretamente histórica, que se veio consolidando em toda a curva de progresso da história ocidental. Desde o século VII antes de Cristo, o pensamento do Ocidente vem empreendendo um esforço de autonomia frente ao mito. Libertando-se da tutela mítica, vem abrindo espaço para o despregar-se das forças da razão. No testemunho milenar da história, a certidão de nascimento da filosofia é a racionalidade do pensamento. e’ na razão que reside o lugar gerador da verdade. Daí toda a estranheza que provoca a preocupação dos filósofos existenciais com o mito. Procurar uma verdade no mito seria pretender substituir pela irracionalidade a racionalidade. Seria negar a virulência histórica de mais de dois mil anos de filosofia. Assim se julga. Assim se diz. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
Essa revisão do mito é no fundo uma revelação da autoconsciência da filosofia. O que o filósofo procura na verdade do mito é a verdade da própria filosofia. Na época de sua errância racional, a filosofia se sentia absolutamente autônoma e independente da não-filosofia. No espaço dessa independência julgava atingir com os recursos da razão uma verdade absoluta, necessária, universal. Em nome dessa verdade desprezava tudo que não se enquadrasse na bitola da racionalidade. O mito, as lendas, os sonhos, a loucura, a poesia, a religião, para terem lugar no país da verdade, guardado pela filosofia, necessitavam das credenciais da razão. No rigor dessa ditadura não se destruía, decerto, a liberdade desde que sua essencialização se submetesse aos princípios racionais da lógica . Pois a essência da liberdade era a verdade. Hoje a filosofia sente sua dependência da não-filosofia. É aquém da alternativa de racional e irracional que se instaura o espaço de toda verdade. Na liberdade dessa dimensão originária se articulam a verdade da fantasia, a verdade dos sonhos, a verdade da loucura. O juízo já não é o lugar primogênito da verdade. Há verdades, no plural, correlativas ao sentido das diversas intecionalidades. É a liberdade que é a essência da verdade. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
O Pensamento Essencial, que se exerce em pensar o advento do Ser, encontra em seu caminho re-volucionário uma questão sedutora: O Ser é ou não é Deus? — Sob o peso desta pergunta arrisca-se a sucumbir. Transviado pela força lógica da alternativa arrisca-se a entregar-se logo a uma resposta negativa ou afirmativa. E nesta entrega a renunciar a si mesmo para deleitar-se nas facilidades do ateísmo e niilismo, da religião e da teologia. Longe de ser estimulante, a alternativa faz pesar sobre ele a ameaça da morte. É que o pensamento do Ser vive de uma espécie de cegueira para com a evidência lógica da pergunta, se o Ser é ou não é Deus. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
25. Contra a identidade do Mistério de Cristo nas diferentes religiões se aciona a lógica da não-contradição. Na analogia das religiões a Igreja de Cristo é o analogatum princeps, cujo significante privilegiado é a Igreja de Roma. Do contrário, sem analogado principal nem significante privilegiado, todas as religiões equiparar-se-iam em suas diferenças. É onde as diferenças se equivalem, floresce o relativismo da arbitrariedade, fenece o in-diferentismo da verdade. A idiotia do arbítrio escolhe então o senso religioso de cada um. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
A perspectiva de diferença do presente diálogo é constituida pelo Pensamento Essencial (das wesentliche Denken) de Martin Heidegger. Em seu processo de elaboração, o Ocidente é o movimento de integração das possibilidades do homem numa estrutura determinada, que submete a seu serviço todas as demais estruturas possíveis de hominização. O característico desta estrutura é a identidade ” lógica ” de racionalidade e animalidade. Segundo a tendência absorvente de sua virulência, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A verdade é una, universal e necessária. Sua essência está na adequação como na lógica reside o seu lugar gerador. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber, na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da Metafísica que atinge sua plenitude no Espírito Absoluto. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
A constituição onto-teo- lógica da metafísica é uma estrutura de três integrantes: o ôntico, o theós e o lógico. Este último é o fator mais importante, por ser a força estruturante. A metafísica é onto-teo- lógica porque é lógica . E por ser lógica , abandona a diferença como diferença, dinamiza uma ontologia sem Ser e uma teologia sem Deus, instala um sistema de controle e promove uma História sem mistério. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Fundar é a ação própria da lógica . Lógico é o modo de pensar em que se elabora uma estrutura hipotática de ideias, uma fundando a outra. Já com Aristóteles a lógica funda o ente na universalidade do ser. A lógica de Aristóteles é a primeira sistematização da força fundante da razão. Mais do que ninguém, compreendeu Hegel essa força fundante da razão e é por isso que chamou a metafísica de Wissenschaft der Logik, “Ciência da Lógica”. Mas Hegel faz das formas lógicas de Aristóteles o conteúdo do Espírito Absoluto consciente de si mesmo. É que a autoconsciência do Espírito Absoluto é um processo dinâmico de autocons-cientização. Hegel descreve este processo, explicitando os nexos necessários que unem as etapas e estações de seu desenvolvimento. Na plenitude de sua autoconsciência o Espírito Absoluto se compreende como “Logos” do ser e do conhecimento de todas as coisas. Ora, este progresso lógico para o último fundamento ” é uma ascensão a Deus, como principium essendi et cognoscendi de toda realidade: “was ueberhaupt im jetzigen Augenblicke zunaechst Interesse der Philosophie ist, naemlich einmal wieder Gott absolut vornehin an die Spitze der Philosophie ais den alleinigen Grund von aliem, ais das einzige principium essendi et cognoscendi zu stellen”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Agora se pode compreender a afirmação de Heidegger de que a metafísica é lógica , como onto- lógica , na medida em que pensa o ente no seu todo na dinâmica de fundamento e fundado: Denkt die Metaphysik das Seiende in Hinblick auf seinem jeden Seienden als solchen gemeinsamen Grund, dann ist sie Logik als Ontologik”. Essa lógica estruturante é necessariamente uma teo- lógica . Pois uma fundamentação só é realmente fundante quando chega a um fundamento absoluto, que não é capaz nem necessita de ulterior fundamentação. A lógica , portanto, só é lógica enquanto “teologia ontológica do Absoluto”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Ao aprofundar a dialética lógica do pensamento, Hegel identificara a lógica com a teologia. Trata-se de uma identificação inevitável e necessária sempre que o ente for pensado em função de um fundamento comum. Se pensar é reunir os entes no fundamento do ser em sua dinâmica de absolutização, não há como evitar uma dupla direção no articular-se lógico de ser e ente. Enquanto universal, o ser funda os entes, recolhendo-os em sua universalidade, enquanto universal concreto exige para sua universalidade um fundamento num ente que realize o supremo grau de entifica-ção, o absoluto. Assim se fecha a dinâmica da estrutura onto-teo- lógica da metafísica, que Heidegger determina como o “vigor do mútuo referir-se e diferir de ser, como fundamento, e ente como fundado-fundante”: “Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik entstammt aus dem Walten der Differenz, die Sein als Grund und Seiendes als gegruendet-begruendendes aus- und zueinanderhaelt”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
A metafísica é teológica porque é lógica . Mas por que é lógica a metafísica? Esta questão já não se põe verdadeiramente como questão no horizonte da reflexão metafísica. Para ser questionada em sua Verdade, supõe que o pensamento se encontre além da dinâmica de fundamentação, fora da força determinante da lógica . Trata-se de uma questão que só se movimenta no âmbito de experiência de um Pensamento Essencial. A metafísica é lógica , quer, então, dizer que a Verdade do Ser se destinou na figura do Logos, isto é, na dinâmica de fundamentação, reivindicando todas as forças de criação Histórica para o Absoluto da razão e sua racionalidade. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
A espera do silêncio, no entanto, não é passividade. É a construção obscura, insegura e estranha de um salto”. O salto é um “Absprung”, um salto que deixa para trás o ser concebido como fundamento, abandonando todo pensar lógico. Por isso, olhado na perspectiva da metafísica, será sempre um salto no abismo. O salto, que salta da estrutura lógica do pensamento, dá na experiência poética dos poetas. É que, enquanto diferença, a manifestação do Ser se dá na linguagem. No fazer-se linguagem do Ser, o homem vem a si mesmo e o mundo vem ao homem para ser mundo. As palavras do Pensamento Essencial não são recipientes onde se conserva em latas significantes o conteúdo significativo para uso do discurso. As palavras do Pensador, como as palavras do Poeta, são fontes e mananciais que sempre de novo jorram originariamente. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto