Carneiro Leão – instrumento

Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.

Na escola de motorista treinamos e nos exercitamos no uso até nos apossarmos dos meios e modos de lidar com o carro. Só então lhe dominamos o uso. Dominar o uso significa sintonizar nosso modo de proceder e agir com o que exige e requer o funcionamento do veiculo. Mas no treino não aprendemos apenas a debrear, frear, acelerar, guiar os movimentos do carro. Não aprendemos apenas a manejar e coordenar os reflexos mas, em tudo isso e por tudo isso, aprendemos sobretudo a conhecer o veículo. Aprender inclui sempre um conhecer. Nos treinos aprendemos a conhecer o carro. É que na aprendizagem há dimensões de aprender, tais como aprender a usar, aprender a conhecer. E este aprender a conhecer possui vários níveis e graus. Assim, aprendemos a conhecer um determinado carro, aprendemos a conhecer um carro de passeio, um carro de carga; aprendemos a conhecer um carro mecânico ou um carro automático, em suma, aprendemos a conhecer o que é um veículo. No treino e exercício, que se restringe apenas a aprender o uso, o aprender a conhecer se mantém dentro de determinados limites. Só aprendemos a conhecer o carro o necessário para ser motorista amador. Há ainda no carro muito mais para aprender a conhecer. Por exemplo, as leis de eletricidade, de aerodinâmica, de mecânica, de combustão, a1 combinação e mistura de certas substâncias, as leis de geometria. Há ainda a aprender o que é um instrumento em sua instrumentalidade, em que sistema de relações econômicas, sociais, humanas tem seu lugar um veículo. Mas disso tudo não necessitamos saber para dirigir! Certamente que não. O que não quer dizer que não pertença também e necessariamente ao carro. Pois quando se trata de fabricar o veículo, cujo uso aprendemos nos treinos, o fabricante deve saber que função e finalidade, que papel e valor terá o carro em todos esses níveis. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

A respeito da realidade de qualquer coisa há também um aprender a conhecer mais originário ainda. Algo que deve ter sido aprendido previamente, para que estejam à disposição modelos, peças e acessórios, mercados, fábricas e publicidade. É o aprender a conhecer o sentido de um veículo. E é este sentido, o que deve ser tomado antes de mais nada; o que sobretudo deve poder ser ensinado e aprendido. Pois este aprender a conhecer o sentido constitui a base de sustentação e o fundamento de possibilidade para qualquer outro aprender. É ele que possibilita a produção do carro, assim como o carro produzido é a base de referência e o fundamento de possibilidade do uso e do treino. O que aprendemos no uso e exercício não passa, pois, de um setor apenas do que pode ser aprendido e ensinado a respeito da realidade. E é este setor limitado do uso, do funcionamento, do know how, dos modelos que nos proporciona a informação, enquanto o aprender originário é aquele tomar em que se toma conhecimento do sentido de uma realidade, de um veículo, de um instrumento , de um modelo, de uma função etc. Mas isso, este aprender a conhecer o sentido, propriamente nós já temos. Ao aprender a conhecer um carro de qualquer categoria, finalidade ou modelo que seja, nós não aprendemos pela primeira vez o sentido de um veículo. Já o sabemos e já o devemos saber, de alguma maneira, do contrário nunca chegaremos a perceber o carro como veículo, nem a entender as lições do treino. Pois é por já o sabermos que o olhamos, e que se nos torna gradativamente visível como carro. Sem dúvida, o sentido de um veículo só o sabemos previamente em suas invariantes gerais e de modo muito indeterminado e impreciso. E não obstante, ao aprendermos nos treinos de modo variado e preciso, não fazemos mais do que tomar progressivamente conhecimento de algo que, de alguma maneira, já temos. Pois é justamente neste tomar posse do que já temos, que reside o modo de ser e todo o vigor de ensinar e aprender. Assim, em sua essência de formação, ensinar e aprender não é outra coisa do que tomar conhecimento da realidade enquanto já a temos e a sabemos. Conhecer, na dinâmica originária de formar, é um nascer com, um reconhecer: do amor a amorosidade, da vida a vitalidade, do ódio a odiosidade, da morte a mortalidade, do outro a alteridade, da pessoa a pessoalidade, do instrumento a instrumentalidade, da matéria a materialidade, do animal a animalidade, do homem a humanidade, das diferenças a identidade. Sendo um tomar, o aprender nos apresenta um propósito muito estranho. Pois nos propõe um tomar em que no fundo se toma o que já se possui, a nossa identidade. Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

3. O que é Psiquiatria? — A pergunta é banal mas de uma dificuldade a toda prova. É tão difícil a pergunta que até fervilham as respostas. A julgar pela Psiquiatria, dir-se-ia mesmo que quanto mais difícil é uma pergunta, tanto mais freqüentes, tanto mais diferentes e tanto mais oniscientes são as respostas. Tanto quanto da Filosofia, não faltam definições da Psiquiatria. Umas são demasiado extensas, mas tão extensas que já não se vêem as árvores, só se vê a floresta. Então, tudo é Psiquiatria. Outras são demasiado estreitas, mas tão estreitas que, com os olhos presos às árvores, não se vê nem a floresta. Então, a Psiquiatria é tudo. Umas são demasiado idealistas: reduzem candidamente o esforço da Psiquiatria apenas à busca desinteressada da saúde bio-psico-social dos homens. Então a Psiquiatria é a brancura e limpidez do jaleco dos psiquiatras. Outras são demasiado materialistas: a psiquiatria não passa de um extraordinário instrumento de dominação a serviço das diversas instâncias de poder. O hospital psiquiátrico é o cárcere de todos os marginais que a repressão dos sistemas ideológicos já não consegue manter marginalizados. Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

No modo cotidiano de ser só vemos na linguagem o instrumento . Uma técnica de comunicação, que nos apresenta, já prontas para o uso, as distinções com que operamos nas situações concretas da vida. Essa linguagem cotidiana não é a essencialização originária da linguagem. É apenas a forma mais freqüente de sua presença. A compreensão do Ser, que aqui se articula, entretanto, não é apenas ingênua e primitiva. Uma longa história de pensamento metafísico a precedeu, interpretando instrumentalmente a linguagem na lógica e gramática da tradição. Hoje operamos de modo inconsciente com distinções, que, num supremo esforço de reflexão, foram criadas e estabelecidas pela metafísica. Nos quadros dessa interpretação se movem os recursos e as regras lingüísticas, que hoje determinam as qualidades do estilo. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

A Crítica é literária, sendo Literatura, isto é, sendo arte. Para ser literária, tem necessidade de assumir o modo da arte. Ora, a arte chega a seu modo de ser na obra. A obra de arte é passagem obrigatória de todos os caminhos para a arte. Por isso o caminho que nos levará à arte da Crítica será também aqui a obra literária: uma poesia! Por exemplo, a poesia de Mörike, intitulada: Auf eine Lampe! “Para um candelabro”! A vantagem de uma poesia assim é fazer brilhar a nossos olhos o modo de ser da arte numa tensão com um outro modo de ser: o modo de ser do instrumento e utensílio. É uma obra literária sobre um candelabro, instrumento de iluminação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

O modo de ser do instrumento manifesta uma dupla referência: serve ao homem para alguma coisa. Servindo para alguma coisa, o ser do instrumento se insere num complexo de coordenadas e relações. Mas as relações deste conjunto são utilidades do homem. Servindo para alguma coisa, o instrumento serve ao homem. Esta dupla referência revela que a realidade é uma coordenação de todas as coisas. Um sistema de coordenadas. É esse sistema que faz com que toda e qualquer realidade reúna em si e faça alusão a todas as outras, que uma coisa se apóie e repouse em todas as coisas, constitua um ponto de referência e apoio. Neste sistema de coordenadas e apoio, de alusão e referência, reside o modo de ser próprio do instrumento , mora a estrutura constitutiva do utensílio, a instrumentalidade, a utensilidade. Pelo sistema de coordenadas e referências, o candelabro não é apenas um meio de iluminação da sala mas também a revelação de um mundo através de sua própria mundanidade. Na luz de sua iluminação o candelabro ilumina não só o mundo que o integra, mas também a si mesmo como integrante do mundo. O candelabro constitui o mundo e é constituído pelo mundo. Mas ouçamo-lo da poesia de Mörike: 1. Noch unverrückt, o schöne Lampe, schmückest Du, / 2. An weissen Ketten zierlich aufgehangen, / 3. Die Decke des nun fast vergessnen Lustgemach. / 4. Auf Deiner weissen Marmorschale, deren Rand / 5. Der Efeukranz von grüngoldenem Erz umflicht, / 6. Schlingt eine Kinderschar die Ringelreihn. / 7. Wie reizend alles! Lachend! Und ein sanfter Geist des / 8. Ernstes doch ergossen durch die ganze Form. / 9. Ein Kunstwerk echter Art. Wer achtet sein! / 10. Was aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst. // 1. Ainda não removido, belo candelabro, enfeitas, / 2. Preso à graça de correntes delgadas, / 3. A abóbada do quarto de prazeres, hoje quase esquecido. / 4. Em tua bandeja de mármore branco, orlada / 5. Pela grinalda de um bronze verde-ouro, / 6. Um bando de crianças abraça as fileiras de argolas. / 7. Como tudo é sedutor! Risonho! E, no entanto, um ar / 8. De seriedade se derrama suave por toda a forma. / 9. Uma obra de arte da melhor espécie! Quem tem olhos para ver? / 10. Todavia, o que é belo, apresenta em si mesmo um brilho feliz. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Os três penúltimos reúnem os anteriores, isto é, o candelabro, na unidade de sua presença de sedução e gravidade, de alegria e seriedade. Ambas impregnam toda a forma. Forma aqui não se opõe nem exclui mas se compõe e inclui o conteúdo. A forma é o vigor da unidade do candelabro articulada nos primeiros versos. Neste vigor a poesia faz brilhar a beleza do candelabro. Embora não acenda o candelabro, ela permite que apareça a luz de sua beleza. E a beleza aparece numa oposição e diferença, que os versos 7-9 procuram evidenciar. O nono resume toda a poesia até agora, ao dizer que se trata de uma obra de arte verdadeira. Resumir o candelabro é tomá-lo no vigor de sua unidade. É tomá-lo em sua beleza de obra de arte que sempre se opera numa distinção. Por isso Mörike, resumindo o candelabro, refere-se à falta de olhos para a beleza: quem ainda tem olhos para ver? É uma pergunta retórica. O que o poeta pretende é afirmar que já ninguém ou somente poucos os possuem. A pergunta é uma afirmação de pesar. Com o pesar, a pergunta afirma não só que a obra de arte escapa em seu modo de ser à consideração do homem mas também que ela pertence ao homem. Por isso há poesia e o poeta suporta o pesar. O último Verso nos diz desse modo antitético de a arte — o que é belo — morar no país dos homens. Todavia o que é belo apresenta em si mesmo um brilho feliz. O modo de ser da arte é fazer brilhar em si mesmo o mundo dos homens. Na poesia de Mörike isso ocorreu na iluminação do mundo por um instrumento , o candelabro. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

O simples uso do candelabro não nos transmite as manifestações do mundo que seu ser instaura. É que seu emprego reside justamente em servir-se de suas relações efetivas, em usar seus serviços sem procurar realçar o sistema de referências que os possibilita. Usar um instrumento é obrigá-lo a desaparecer no uso que dele se faz. O bom candelabro é aquele de que não se sente a presença. Usar um instrumento é não se deter em seu modo de ser e sim passar através de sua utilidade à obtenção de sua finalidade. Para que o instrumento nos manifeste seu modo de ser, é necessário mudar de comportamento. É o que acontece na arte. A obra de arte nos abre e mostra o ser do candelabro como instrumento de iluminação. O modo de ser da arte é manifestar o mundo de tudo aquilo que é. É verdade que essa manifestação do ser se opera em toda atividade e em todo comportamento humano. Todavia, nem sempre é desenvolvida explicitamente. A ciência, por exemplo, é implicitamente uma manifestação do mundo, não obstante ela não se preocupa nem se atém à revelação do ser das coisas. Atenta ao que no real é determinação objetiva, universalizável e pragmática, a ciência não considera o mundo, a presença, a abertura do real. A graça das correntes, a seriedade do verde-ouro no candelabro, nenhum cálculo, nenhuma experimentação científica seria capaz de nos revelar. Assim a arte é um modo de verdade da existência enquanto instauradora de mundo. Essa instauração ela consegue pela obra. A obra é necessária. Para aparecer em seu mundo, as coisas devem ser subtraídas a nossos propósitos de utilização, elas se devem fazer inúteis. Em segundo lugar, devem ser integradas na dinâmica de um mundo. A inutilização das coisas não é contemplação. É uma integração no sistema de coordenadas de referência e apoio. A obra de arte é uma operação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Heráclito: Se esta é a experiência ocidental, outra, bem outra é a experiência grega da autoridade histórica da aparência. Sempre de novo, com a novidade de ser cada vez a primeira vez, os Gregos tiveram de acolher a aparência em todas as suas conquistas: os deuses e a polis, o templo e o trágico, os jogos e as artes, a poesia e o pensamento, tudo isso eles criaram no meio da aparência, dominados pela aparência, levando a sério a aparência, conhecendo-lhe na carne a autoridade. Basta lembrar a estória de Édipo. De início, salvador é senhor de Tebas, no esplendor da fama e na graça da aparência, vai sendo deslocado progressivamente desta aparência, que não constitui uma mera impressão subjetiva de Édipo a seu respeito mas a atmosfera, o luar em que aparece toda a paisagem de sua existência, até que, por fim, se lhe re-vele o ser, o não-ser e a aparência, como assassínio do pai e des-re-speitador da mãe. O percurso entre o princípio e o fim é o curso de um único combate de velamento e des-velamento entre as potências de ser, não ser e aparência. Com toda a paixão de quem é grego, empenha-se Édipo em acolher todo este combate para, nesta acolhida, conquistar o país de sua paisagem e assim deixar ser na angústia da finitude toda a sua fisionomia e toda a sua grandeza humana. / Diana: Em seu poder, o Ocidente não ama o trabalho. O ocidental não gosta de trabalhar por não se con-sentir a afeição da técnica, da disciplina, do instrumento . É o que Hölderlin nos convida a pensar, quando diz: se “a popularidade dos Gregos é a ternura, a popularidade do Ocidente é a secura!” Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

Heráclito: Como é possível separar-se trabalho, obra, técnica, instrumento e disciplina? E como alguém poderá con-sentir-se afeição? E a secura não pode vir a ser uma ternura? Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

O erigir em obra sobe sempre a escada de um fazer. Ser criada uma necessidade de qualquer obra. Ora, na medida em que todo criar inclui um fazer e todo fazer necessita de meios e processos para se exercer, pertencem a toda obra mecanismos e material de criação. É justamente por isso que se torna decisiva a pergunta: o que significa criar uma obra, em oposição a fazer um aparelho, fabricar uma máquina, confeccionar um instrumento ? Aprendendo a pensar I: Os Mecanismos da Criação Original

O instrumento e a máquina são determinados pela funcionalidade de uma eficiência. Por isso subordinam a seus serviços o material e os mecanismos de que são feitos. Na produção de um instrumento se usa e abusa do ferro. O ferro se consome para dar lugar à instrumentalidade. O bom sapato é aquele, cujo couro não aperta os pés. O material é tanto melhor quanto mais desaparecer nos serviços da instrumentação. A obra, ao contrário, não faz desaparecer mas eleva o material a si mesmo na tensão de cultura e natureza: assim é na escultura que a lenha vira madeira, é na pintura que a tinta se faz cor, é na sinfonia que o som se torna música, é na poesia que a língua vem a ser linguagem. Tudo se cria na criação da obra. Toda criação é original por ser originária. Nos vórtices desta originariedade os mecanismos são como as escadas. Só se chega à obra pela escada dos mecanismos. Mas nunca se chegará à obra, se desde o primeiro degrau não se for jogando fora a escada. É que uma escada só é escada se não for somente escada e por isso deixar de ser escada desde que se tenha sido colhido pela originariedade da obra. Os mecanismos só se tornam veículos da criação de uma obra quando a criação libertar a obra dos veículos. Pois então a obra será a linguagem da criação. Aprendendo a pensar I: Os Mecanismos da Criação Original

Para o pensamento objetivo, quando alguém faz uma revelação, comunica alguma coisa que não consta do repertório de conhecimentos mas está no código de articulação do receptor. Ora, a revelação do Mistério não é nem um meio nem um instrumento nem um sistema de comunicação. Revelar não é transmitir palavras ou conteúdos de conhecimento, com ou sem evidência. Revelar é o acionar-se do Misterio como o solo em que se plantam as raízes de todo estruturar-se da existência histórica. Pouco conhecimento e muita jovialidade é o que faz o pensamento pensar radicalmente, isto é, articular-se com a Linguagem de seu Mistério. A jovialidade é a radicalização do pensamento radical, pensando a revelação a partir do Mistério. É que a radicalização não depende do pensamento. É o pensamento que depende dela. Pois o pensamento só pode pensar a revelação de acordo com o destino de jovialidade que lhe envia o Misterio. Este envio de jovialidade decide as interpretações históricas do pensamento. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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