Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.
Na Froehliche Wissenschaft, gaia ciência, diz Nietzsche que a filosofia vive nas geleiras das altas montanhas, tendo por única companhia o monte vizinho, onde mora o poeta. No país da ciência, a filosofia aparece como uma montanha solitária, envolta numa luz marginal. Por isso toda vez que ela desce da montanha, tem que exibir o passaporte de suas credenciais. Tem que justificar o direito de sua aparência. E há mais de dois mil e seiscentos anos, sempre que a filosofia apresenta suas credenciais, se repete uma cena tragicômica. À luz de seu espectro ela se descobre a si mesma no fundo de cada ciência, enquanto o olho indagador da ciência, que, vendo tudo, não vê a si mesmo, é cego para seus próprios fundamentos. Por isso mesmo só pode rir das credenciais da filosofia . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Já no primeiro aparecimento da filosofia entre os gregos no século VII antes de Cristo esse impasse de incompreensão é testemunhado por uma história, que Platão recolheu e nos conservou no Diálogo Teeteto (174a e ss.): “Tales de Mileto refletia certa vez sobre o significado dos astros para a existência e, olhando para o céu estrelado, caiu num buraco. Uma doméstica da Trácia, bela e galhofeira, dele se riu e o gozou, dizendo: aquele ali se preocupa tanto com o que se passa no céu, enquanto não tem olhos para ver o que tem diante do nariz e debaixo dos pés”. — Platão acrescenta ao relato dessa história as palavras significativas: “à mesma gozação está sujeito todo aquele que se dedica à filosofia “! Assim, desde suas origens, a filosofia se vem apresentando como o esforço de pensamento que traz consigo o risco de cair num buraco e do qual as domésticas sempre riem! Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Na idade da ciência e técnica essas risadas atingiram um número sem conta. Todas elas, porém, se fundam na constatação simples e convincente, que já Rogério Bacon assim exprimiu no Opus Maius: “Si bene inspicis, philosophia nullius est utilitatis”: “Se bem se examina, a filosofia não é de utilidade alguma”. Com ela não se pode compreender nada. Na Einführung in die Metaphysik diz Heidegger que essa constatação, muito em voga nas esferas dos homens de ciência, é a expressão fiel da verdade. É tão verdadeira, que quem procurar mostrar o contrário e quiser provar que com filosofia se pode fazer alguma coisa, lhe presta um des-serviço. Pois contribui para aumentar ainda mais a confusão reinante, de que se pode avaliar a filosofia segundo os critérios práticos com os quais se julga da utilidade de automóveis ou da eficácia de antibióticos! Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Não, está muito certo! Com filosofia não se pode fazer nada. O errado é apenas pensar que com isso a filosofia terminou. Pois ainda há o reverso da medalha. Se nós não podemos fazer nada com filosofia , resta ainda acertar se também a filosofia não pode fazer nada conosco, caso naturalmente nos dediquemos a seu cultivo. O que é inútil pode muito bem desempenhar uma força existencial incontrolável. O que não conhece ressonância imediata na vida pode muito bem estar em consonância com as molas profundas, que acionam o acontecer histórico da humanidade. Pode até mesmo servir-lhe de prelúdio. Imediatamente, porém, a filosofia não poderá jamais proporcionar os recursos nem criar as condições de nenhuma situação histórica. Movimentos de massa nunca são impulsionados imediatamente por reflexões filosóficas. Por uma razão muito simples, que Kant lembrou ao dedicar a Crítica da Razão Pura ao Ministro de Estado, o Barão von Zedlitz: na filosofia se trata de “esforços, cujo bem é grande, mas distante, e por isso mesmo permanece de todo inacessível à visão comum”. Diretamente a filosofia diz respeito e afeta apenas uma minoria sem expressão numérica. Só indiretamente, e ainda assim por meio se processos incontroláveis, ela vai alargando sua base social, para em determinado momento histórico, mas já então de há muito esquecida como filosofia , incorporar-se à terra dos homens, transformando-se numa evidência da condição humana. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Devido ao modo estranho de seu vigor a filosofia se vê relegada, na idade da ciência mais do que em qualquer outra idade, a uma posição marginal. Por isso se torna imperiosa a necessidade de se discutirem as relações entre filosofia e ciência. Pois só discussões dessa natureza poderão preparar o espírito do homem moderno para a grande decisão. A decisão sobre o sentido de sua existência, que toda época histórica sempre de novo impõe ao homem finito. Na era atômica se trata de uma decisão que interessa ao significado existencial-ontológico da ciência: será a ciência a suprema instância do saber humano ou haverá um outro saber mais originário em que se lançam os fundamentos, se traçam os limites e dessa maneira se assegura à ciência ‘ sua verdadeira eficácia? Para o destino histórico do homem moderno será necessário um tal saber originário ou poderá ser ele dispensado e largamente substituído? — É isso o que a presente conferência não diz mas procura dizer em tudo que diz ao discorrer sobre a posição da filosofia na idade da ciência. ; Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Toda trama de relações nunca se compõe apenas de dois termos. Pressupõe antes um terceiro fator, que serve de espaço comum à articulação das divergências e convergências entre os termos relacionados. No caso de ciência e filosofia é a existência humana, que, em seu desejo originário de saber, serve de ponto comum de referência. A identidade e diferença, a convergência e divergência entre ambas, se articulam em função da atitude do homem frente a elas. Na terra dos homens a ciência, não constituindo uma exteriorização essencial da existência, se afirma numa presença de fato, historicamente condicionada. Isso, a ciência. E a filosofia , como o homem se com-põe com ela em sua existência? Existirá ele de per si numa situação extra-filosófica ? ou enquanto existe, in-siste necessariamente no espaço da filosofia ? Ou só edifica seu ser dentro da filosofia em virtude da mesma tradição cultural, que lhe impõe também a ciência? Haverá uma genealogia da filosofia de uma vida pré-filosófica, como há uma genealogia da ciência da vida pré-científica? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
A primeira divergência, que opõe filosofia e ciência, diz respeito à essencialização de ambas. Como quer que se relacione com a existência humana, a filosofia nunca, e isso em razão de sua própria essência, é segura de si mesma, como a ciência. Embora conheça em seus fundamentos crises de crescimento, o movimento da ciência é sempre linear e contínuo: as conquistas das gerações passadas se conservam e completam nas novas conquistas. Uma ciência pode ser cega para seus fundamentos de possibilidade, sua transparência reflexa pode esquivar-se em princípio a seus processos de investigação, de uma coisa, porém, ela tem sempre certeza;,de seu objeto. A ciência sempre se reconhece como ciência. Ela duvida de mil coisas, só não de si mesma. É que, como tal, a ciência nunca é objeto de investigação científica. Quando um físico investiga o que é a física, não empreende uma investigação física. Se é, como pró-físico ou como metafísico, não interessa discutir agora, em todo caso não é como físico, que pergunta pela essência da física. Pois em sua essência a física não é uma coisa, que se possa observar num espectroscópio de massa ou experimentar num bico de Busen ou calcular com equações maxwellianas. Do mesmo modo, num electroencefalograma ou numa mielografia o neurologista pode encontrar um foco epilético ou um carcionoma medular, nunca, porém, a medicina, como ciência. Assim, a impossibilidade de uma investigação científica da ciência, como tal, é condição de possibilidade de toda ciência. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Outra, bem outra, a essencialização da filosofia . À constituição de sua essência pertence sempre uma dúvida angustiante sobre si mesma. O abismo do buraco, que não oferece nem fundamento aos pés nem amparo às mãos, é o próprio espaço de seu desenvolvimento. A filosofia é um pensamento originário visceralmente problemático, porquanto faz de tudo, e em primeiro lugar de si mesma, problema de suas reflexões sobre a origem da verdade. Daí, a impossibilidade de se dizer positivamente numa definição o que é filosofia . O máximo que assim se poderá dizer é o que ela não é. Daí, a perplexidade ao pretender se determinar a posição do homem dentro da filosofia , o modo da presença humana em sua problemática. Daí, as gargalhadas das domésticas. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Essa luz estranha, que a filosofia irradia de si, não resulta, porém, de uma deficiência de conhecimentos. Não é, por sabermos pouca coisa, mas por sabermos muita coisa demasiado externa da filosofia , que encontramos dificuldade em pensar filosoficamente. Hoje conhecemos toda uma galeria historiográfica de grandes filósofos, um museu doutrinário, em que há concepções, opiniões e interpretações para todos os gostos, classificadas em rótulos precisos: realismo, idealismo, socialismo, criticismo, existencialismo, a lista de todos os ismos não têm fim. Se é verdade que em sua presença a filosofia não é uma ciência, não é menos verdade que em sua ausência o sistema dos ismos compõe uma ciência da pior espécie, a ciência de catalogar as doutrinas filosóficas, e a intitula de história da filosofia , muito embora de história e filosofia mesmo só haja o título. Pois saber filosofia não é apenas saber as sentenças dos filósofos, o que eles pensaram e disseram. É saber pensar e dizer o que lese quiseram pensar e dizer. Essa é para Kant, que certamente sabia filosofia , a máxima de toda reflexão filosófica. Máxima, que ele recordou a Eberhart e consortes com as palavras: “.. .muitos historiadores da filosofia … não percebem a intenção dos filósofos, por desprezarem a chave de toda interpretação filosófica, a essência da própria razão, e por isso não conseguem ver, por entre o que os filósofos disseram, o que quiseram dizer”. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
As mais das vezes esse acúmulo de conhecimentos periféricos só nos cega para a presença extraordinária da filosofia na existência. A fim de identificá-la, não basta conhecer a historiografia filosófica e abstrair dos grandes pensadores um traço que seja comum a todos. Desde o fim da antigüidade nos foram transmitidos seis conceitos abstratos de filosofia : 1. conhecimento das: coisas enquanto são; 2. conhecimento das coisas divinas e humanas; 3. preocupação com a morte; 4. assimilação de Deus segundo as possibilidades do homem; 5. arte das artes e ciência das ciências; 6. amor à sabedoria. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Será que poderemos aceitar simplesmente alguma dessas caracterizações em que se exprimiu a experiência do homem com a filosofia no fim da antigüidade? Em que medida nós, homens modernos, filhos do átomo e da máquina, desdobramos ainda nossa existência no espaço de experiência do que os gregos chamavam “on”, “theós”, “episteme”, “techne” e que traduzimos por “ser”, “Deus”, “ciência”, “arte ou técnica”? Ainda dispomos de tanta força criadora de espírito para opor à experiência filosófica grega uma outra, ao mesmo tempo moderna e originária, que sirva de fundo e fundamento a um novo humanismo? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
A interpretação da filosofia como amor à sabedoria, “philia sophias”, tem sido a pista mais freqüentada, apesar de não ser esse o sentido originário da palavra grega. Sabedoria é algo que todos os homens dizem conhecer e prezar, algo em que os povos de todos os tempos vêem um valor supremo. Mas talvez se dê com a sabedoria o que acontece com a felicidade: todos se empenham em buscá-la mas cada um a interpreta diferentemente. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
No primeiro livro da Metafísica Aristóteles esboça uma graduação das dimensões em que se articulam as possibilidades da sabedoria. Num primeiro grau a percepção sensível, “aisthesis”, se estende a todos os seres vivos. Localizada no espaço e situada no tempo a sensibilidade percebe apenas o que lhe é dado “hic et nunc”. Alguns seres vivos, porém, os animais, retém o conteúdo de suas percepções, integrando-os na síntese da memória, “mneme”, e nesse sentido já sabem mais, são mais sábios do que os vegetais. Os homens, além de sensibilidade e memória, dispõem ainda de experiência, “empeiria”, e pela experiência se lhes torna familiar uma prática no trato com as coisas, o que os gregos chamavam “techne” e que melhor do que “técnica” traduz a palavra portuguesa “perícia”. Da “techne” procede num plano superior a reflexão sobre os princípios constitutivos da existência, a “episteme”, cuja tradução por ciência é no mínimo desviante. Por fim coroando, como chave, toda a abóbada da sabedoria, a suprema forma de saber, o esforço pela “sophia”, a filosofia . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
O que Aristóteles pretende nesse esquema não é um sistema estático de graduação, uma cadeia de vasos comunicantes desde as plantas através dos animais até o homem e dentro do espaço humano desde os técnicos através dos cientistas até os filósofos. A graduação constitui, como um todo, um movimento só, um único processo de autopotenciação, de auto-essencialização do saber. A filosofia não é uma posse tranqüilamente estática. É a dinamização de uma conquista. Ao homem finito não é dado desde sempre nem para sempre o ser de sua essência. Para ser aquilo que é, ele deve lutar na conquista das estações de sua constituição ontológica. O último grau da graduação já opera virtualmente desde o primeiro, constituindo-se na força, que aciona todo o processo da sabedoria. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Sensibilidade e memória, experiência e perícia, reflexão e filosofia formam a perspectiva em cujo horizonte se articulam previamente as dimensões significativas das palavras “sábio”, “sophos”, e “sabedoria”, “sophia”. Aristóteles ausculta e investiga as condições de possibilidade, implícitas na mais vulgar compreensão, das palavras “saber”, “sábio” e “sabedoria”, a fim de explicitar a maneira latente em que a filosofia exerce uma virulência velada mas vigorosa no ambiente da vida prática. O pré-sentimento, difuso na existência, do que é sabedoria, serve-lhe de esteira à investigação temática da filosofia . Nela se deslindam as pressuposições, que sempre se fazem, mesmo nas condições da vida prática mais alheias a um interesse filosófico. O homem só chegou à filosofia , por sempre conhecê-la virtualmente nos ventrículos de sua existência, por sempre necessitar dos tentáculos de sua força até mesmo para poder negá-la. Supremo grau de autoconsciência da existência, a filosofia não é um saber, que simplesmente aspira a conhecer alguma coisa, independente da existência, mas um saber “kai tou eidenai charin”, um saber, isto é, que, tendo por força o jato próprio do saber humano, como tal, tende à suprema projeção da existência. Assim, o que, re-velando o dinamismo inerente à sabedoria, Aristóteles procura pensar no início da Metafísica, é a presença da filosofia na existência, a trama das relações, que soldam numa interdependência indissolúvel o ser do homem ao ser da filosofia . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
A filosofia sempre está toda presente em todas as suas questões, a começar pela questão sobre si mesma. Pretender-se antes de filosofar determina-lhe o objeto, desmoitar-lhe o terreno, discutir-lhe o método, ou demarcar o âmbito de suas questões, estabelecer os órgãos de seu exercício, as-segurando-se primeiro de sua eficácia e reto uso eqüivaleria ao vão esforço de se querer pensar sem o pensamento. Toda propedêutica da filosofia já pressupõe a posse de sua essência. Exige saber-se de antemão em que relações se encontra o homem com a filosofia e a filosofia com o homem. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Já a filosofia exclui em princípio qualquer introdução. Não é uma possibilidade que o homem ou a humanidade pudesse ou não realizar historicamente. Trata-se de uma necessidade existencial, cuja virulência instaura o próprio movimento histórico. O homem não poderá jamais pôr-se fora da filosofia . Não dispõe de nenhum pouso, livre totalmente da atração de seu magnetismo. Desde que Prometeu roubou aos imortais o fogo do Ser, desde quando Adão comeu o fruto da árvore do conhecimento, quebrou-se, no dizer de Rilke, a paz da escuridão animal, e o destino onto-lógico do homem tem sido lutar pela verdade dos entes na arena da história. Desde então o homem existe. Estendendo-se no espaço da linguagem, usa sempre da palavra ser — para Parmênides, o verbo mais banal e mais indispensável da linguagem, — chama as coisas e pessoas de seres, com elas se comunica em termos de essência e existência, de constância e mutabilidade, de ser e não-ser, de poder e dever ser, de ser verdadeiro e falso, bom e mau, de ser presente, passado e futuro. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Isso, todavia, não quer dizer que todos os homens se tenham dedicado sempre em todos os tempos ao cultivo explícito e temático da filosofia . De maneira alguma! Comparado à extensão dada aos negócios e afazeres, aos sonhos, paixões e desejos, o pensamento filosófico ocupa sempre um espaço insignificante de história. São apenas uns poucos, somente alguns marginais sobem a montanha solitária das geleiras para se consagrarem ao ócio inútil da filosofia . E todos se banham na mesma luz trágica, em que Sócrates apareceu aos atenienses; sentindo-se muito embora investido do destino messiânico de resguardar e promover a verdade do homem, sempre se viu marginalizado por Atenas, para, acusado de subversão da juventude, ser condenado a beber cicuta em nome das tradições democráticas e religiosas do povo ateniense. O poeta Hölderlin exprime o destino de todos os filósofos, quando diz que Sócrates foi condenado por ter um olho demais. Para Nietzsche, o filósofo é um homem, que constantemente sente, vê, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias. Ora, em todos os tempos, a vida despreocupada dos homens parece defender-se com êxito total contra as dúvidas, contra as suspeitas, contra as visões e esperanças dos pensadores. Ela confia mais no espírito empreendedor e na tradição consagrada do que no pensamento. Ao considerarmos quão pouco a filosofia condiciona expressamente a paisagem da vida, ao constatarmos quão insignificante é sua ressonância nos quadros de publicidade, quão estreita a base social dos filósofos, não poderemos deixar de ver um exagero monstruoso na afirmação de que o homem existe sempre no espaço da filosofia . E todavia assim é! Apenas se trata de uma afirmação filosófica e não científica. Para compreendermos, portanto, devemos considerá-la com o olho socrático da filosofia . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Não exprime a constatação de um fato imediatamente verificável. Não resulta de uma indução sobre a natureza humana, que se articulasse em razão da freqüência da filosofia na existência de indivíduos e grupos. Mais freqüente na terra dos homens do que filosofia , é a não- filosofia . Muito mais comum do que a reflexão, é a irreflexão. Todavia, para constatá-lo, faz-se mister de uma escala, tem-se de usar um critério prévio, em função do qual se possa distinguir a vida não-filosófica da filosófica. Em geral não se pensa nisso. Até lá não chegam os dois olhos. E por isso se lança mão de uma oposição já pronta. Distinguem-se numa rigidez hermética os dois comportamentos e se esquece precisamente da maneira curiosa em que a filosofia se insinua na distinção e se esconde no próprio cerne da não- filosofia . Já não se percebe, então, como a filosofia dorme na alcova da vida cotidiana. Já não se lhe descobre a presença sorrateira mas operante no que se apresenta como o seu contrário. A não- filosofia é a forma em que na existência imediata a filosofia se exterioriza numa alienação, palavra que hoje pode valer uma taça de cicuta. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Ao homem pertence por necessidade de natureza a compreensão do Ser! Embora repouse imóvel nas preocupações imediatas da vida, nela se constrói o arcabouço das categorias em que as coisas re-velam sua presença no mundo dos homens. Na compreensão do Ser se estrutura o horizonte, em que, antes de toda experiência, isto é, a priori, se edifica a totalidade do real. No movimento da filosofia , então, toda essa con-juntura de categorias a priori do Ser como que acorda e se põe em atividade constituinte. Libertam-se os conceitos originários para ser novamente questionados em sua originariedade: o que é uma coisa e o movimento, ser e aparência, o que é essência e existência, realidade e possibilidade, história e sociedade, o que é a ciência e filosofia , o que é a natureza, a liberdade, o mundo, o homem, Deus? São questões velhas de milênios. O que possuem de sempre novo é apenas a necessidade histórica de serem investigadas sempre de novo. São o tipo das questões que Sócrates tomara para tema de suas discussões maiêuticas com os atenienses. Refere Diógenes Laércio que um famoso sofista, ao voltar de uma viagem de ensino pela Ásia Menor, encontrou Sócrates no Agora de Atenas, perguntando a um sapateiro: “ti esti tó hypódema?”, o que é isso, um sapato? E o interpelou, indagando: “ainda está ai, Sócrates, dizendo a mesma coisa sobre a mesma coisa?” — Sócrates o encarou, — de certo com o olho que tinha demais — e respondeu: “é o que sempre faço. Você, porém, que é tão sábio, certamente nunca disse a mesma coisa sobre a mesma coisa!” Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Nessas questões milenárias a filosofia se essencializa como ontologia, articulando a pré-compreensão do Ser no sistema dos conceitos transcendentais, que instauram na totalidade dos entes as regiões de objeto e os projetos de constituição das pesquisas científicas. Pois nas categorias ontológicas se desenvolve a interpretação do sentido da realidade e a concepção da essência da verdade, que empurram o dinamismo de sucessão das épocas históricas. Sendo a esteira, em que se desenrola historicamente o desejo originário de saber, a pré-compreensão do Ser não é um processo no cérebro de um mamífero inteligente. Não se trata do modo de o homem comportar-se e referir-se à essência daquilo que é. Trata-se antes de tudo da modalidade de o próprio Ser inserir-se na existência, reportando às oscilações de sua Verdade as vicissitudes e peripécias da história humana. É a maneira em que o Ser mesmo apela o homem, impelindo-o à sua luz temporal. Nada de mais profundo determina o vigor da existência do que esse apelo. As conhecidas auto-interpretações do homem, a antropológica, como “homo sapiens”, a psicológica, como “animal rationale”, a técnica, como “homo faber”, a socialista, como “operário da história”, permanecem todas, em profundeza e originariedade, muito aquém da ontológica, que o interpreta como o lugar da auto-revelação do Ser. O homem é o prisma do Ser. O receptor da mais antiga mensagem e da primeira de todas as revelações. É o ouvinte de um apelo, que rompe o silêncio da noite dos entes e compele o Filho de Prometeu a existir no testemunho do fogo do Ser, promovendo os significados das coisas. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Na existência o vigor desse apelo mora num pressentimento do próprio Ser, cuja originariedade, lançando-nos no campo de forças da filosofia , a subtrai a nosso controle. É por isso que a filosofia faz conosco tudo que somos, enquanto com ela nós não podemos fazer nada. Por se estruturar no jogo de referência e diferença entre Ser e homem, a filosofia se essencializa no paradoxo existencial. Aquele paradoxo, de que se serviu Nietzsche para mote de seu Zarathustra: “Ein Buch für alie und keinen”: “um livro para todos e para ninguém”! O mesmo vale da filosofia . É o destino de todos os homens e de nenhum. De todos, enquanto articula o fundamento em que o homem planta os alicerces de sua existência. De nenhum, enquanto, força de todo esforço, ela se esquiva em princípio a qualquer vontade de domínio do homem. Na filosofia se re-vela toda a potência e toda a impotência humana. Em seu espelho se reflete toda a envergadura da finitude. Onde o homem encontra palco para demonstrações de força, onde anda às voltas com os produtos de seu gênio dominador, lá descem sobre a filosofia as sombras do esquecimento. Um esquecimento que a era atômica potência ao máximo. Nenhuma outra idade experimentou e trabalhou tantos entes mas também se esqueceu tanto de perguntar pelo ser dos entes. Nenhuma outra época julgou tantas verdades mas também se incomodou tão pouco com a essência da verdade. Nenhum outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem, no entanto, preocupar-se com a questão sobre a mundanidade do mundo. O alarido da ciência, o roncar da técnica, enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, entorpece-nos as forças do espírito, deixando a filosofia adormecida numa paisagem de cogumelos atômicos. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
O curioso em tudo isso é a presença da filosofia em sua própria ausência. Nosso esquecimento do Ser nunca é absoluto. O sono de nosso espírito nunca é tão profundo a ponto de excluir a possibilidade de um novo despertar. A tranqüilidade, com que instalamos a existência e nos julgamos em casa no meio dos entes, pode ser sempre perturbada pela visita de hóspedes incômodos: no meio dos prazeres surge a náusea. Na atividade febril se insinua uma monotonia enervante. À familiaridade com as coisas sucede uma repentina estranheza do mundo. Nas palavras de Agostinho: media in vita in morte sumus. No próprio centro da vida nos deparamos com a morte. A filosofia , essa necessidade fundamental do homem, que não lhe advém de si mesmo mas lhe sobrevém do apelo do Ser, acompanha sempre a existência, como a morte. Sempre temos certeza da morte. Sua possibilidade sempre nos segue como uma sombra. Sabemos que a cada instante nos poderá surpreender. E mesmo assim sempre procuramos reprimir pensamento tão incômodo para a margem da vida, sepultando-o nos cemitérios fora das cidades. E como a morte é sempre pressentida a despeito de todas as tentativas de esquecê-la, assim também a filosofia , como o destino de todos e de nenhum, se apresenta na existência mais ingênua na forma do pressentimento do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Geralmente se opõe pressentimento a saber, ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber. No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber. Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência. É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Dilthey, encaminhando-se na direção de Kant e de toda a perspectiva “matemática” da idade moderna, procura um fundamento inconcusso e de valor universal para a existência humana. Kant investigara a possibilidade das ciências da natureza estabelecendo-lhes a legitimidade e objetividade na síntese transcendental do pensamento. Hegel alargara e aprofundara a fundamentação kantiana, introduzindo a história dialética do Espírito Absoluto, sempre porém na dimensão transcendental do conceito e da idéia. Dilthey aceita a problemática de ambos mas recusa-lhes energicamente o caminho. Nega a qualquer reflexão conceituai a capacidade de fundar um conhecimento seguro e universalmente válido no domínio da existência. Numa discussão com Hegel e Kant estabelece a vida, valor inconcusso, e história, a expressão autêntica da vida, o fundamento de toda filosofia verdadeira, por serem a única instância capaz de dar às investigações do filósofo a segurança e universalidade possíveis ao homem finito Dilthey introduz uma distinção rigorosa entre coisa e espírito, entre natureza e vida. A natureza é estática, sempre idêntica consigo mesma. A vida é um fluxo constante, sempre dinâmica e móvel em sua constituição. Para essa diversidade na maneira de ser exige Dilthey formas distintas dos conhecimentos. O método, o processo e os fundamentos de conhecimentos da vida diferem inteiramente do método, do processo e dos fundamentos do conhecimento da natureza. Kant tematizara as condições de possibilidade do conhecimento humano. Todavia com os recursos do método transcendental só conseguiu estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento da natureza. É que no domínio das ciências do espírito as sintetizações a priori são impotentes. De vez que os conceitos fundamentais das ciências do espírito são manifestações da vida, não se deixam fundar por uma Crítica da Razão Pura. A única possibilidade de fundação que lhes resta e corresponde é a semantização da historicidade da vida. Mas o que é historicidade da vida? Dilthey a procura determinar por uma análise da consciência histórica moderna. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Entendida assim, como autoconsciência crítica da historicidade, a consciência histórica garante validez e firmeza universais à relação homem e mundo, solucionando a luta dos sistemas e superando a insuficiência dos conceitos de “traduzirem a conexão cósmica de forma convincente”, ao mesmo tempo em que aponta o homem como o fundamento da filosofia .” Nela desaparece a relatividade das diversas concepções de mundo em sua pretensão de darem respostas absolutas aos problemas da vida: “Vê-se assim que a luta entre os sistemas metafísicos descansa em última análise na própria vida. Na experiência da vida. Nas posições assumidas diante dos problemas da vida. Nestas radica a multiplicidade dos sistemas bem como a possibilidade de distinguirem-se diversos tipos. Cada tipo abarca conhecimento, julgamento ou avaliação da vida e prescreve certos fins a adotar”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
A colocação de hoje nos propõe pensar num discurso o sentido do encontro, já sempre dado, entre filosofia e psicanálise. No curso deste discurso espera-se que nos advenha o inesperado: a gratuidade do silêncio que convocou Nietzsche às palavras pensadas: “É preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Há pois duas possibilidades, que brotam, se complementam e se integram na estrutura do pensar: o pensamento irrequieto, que calcula, e o pensamento sereno, que pensa o sentido. É da angústia deste pensamento do sentido que estamos fugindo hoje e na fuga lhe sentimos a falta. Por isso procuramos preencher o vazio com discussões sobre filosofia e psicanálise. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Nesta paciência de esperar a serenidade, todos podemos seguir, cada qual à sua maneira e na angústia de seus limites, os caminhos do pensamento, que pensa o sentido. Não é necessário voar para o espaço das estrelas. É na fala que se dá o silêncio. É no conhecido que nos chega o desconhecido. É no ordinário que estância o extraordinário. E nesta estância moramos todos nós. Por isso, para pensar o sentido, não precisamos emigrar. Basta ficarmos na proximidade de nossos empenhos e desempenhos, deixando-nos conduzir pelo que, retirando-se, nos afeta e nos atinge aqui e agora. Aqui: neste encontro de reflexão sobre filosofia e psicanálise. Agora: na hora de um envio de nossa existência. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
O que se retira neste aqui e agora? — Não sabemos. Nós não sabemos o sentido de nosso encontro. E trata-se de uma experiência radical de não saber. Pois com ela aprendemos o Nada de todas as nossas pretensões. Tanto da pretensão de saber como da pretensão de não saber. O sentido de nosso encontro se retira. E é justamente ao retirar-se que nos avia à viagem da filosofia e psicanálise. — Filosofia e psicanálise. Na retirada, somos enviados à viagem de um “e” para um “e”. De viagem o e não é apenas sintagma. É também desafio. Como sintagma, evoca simplesmente uma pertinência. Não a determina nem define. Como desafio, provoca a solidez de uma integração originária. E originária, porque é desta integração que filosofia e psicanálise receberão as determinações de suas diferenças e as definições de sua recíproca pertinência. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Uma segunda conseqüência é o lugar epistemológico atribuído à própria história da psicanálise. O recurso, que sempre de novo se faz, à literatura histórica, não encontra paralelo em nenhuma ciência, somente na teologia, na filosofia e na poética. Pois em qualquer ciência, por mais extensas que sejam as investigações precedentes, por maiores que tenham sido as descobertas, é sempre indispensável submetê-las a um processo controlável de invalidação, a fim de poderem ser protocoladas, como teorias, e usadas na explicação de novos fatos. Este recurso à história, como instância epistemológica, levou um epistemólogo inglês a uma observação irônica sobre o estatuto epistêmico da psicanálise: “Muitas vezes as teorias psicanalíticas parecem demasiado com uma antiga mansão que uma viúva piedosa se empenha em conservar tal qual era no dia da grande perda”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Assim a aceitação da ciência e a espera do sentido se completam e, completando-se, nos abrem a possibilidade de morarmos num mundo transitivo, oferecendo-nos a solidez de um novo solo de crescimento. É a viagem do “e”, em que aqui e agora nos envia o encontro de filosofia e psicanálise. A aceitação da ciência e a espera do sentido nos encaminham no caminho da modernidade, em cujo seio, de um modo inesperado, nos são novamente restituídas as palavras pensadas de Nietzsche: “é preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
1. Já foram intitulados de Pré-aristotélicos, Pré-platônicos e Pré-socráticos. Sob a correção cronológica do prefixo, pré-, se escamoteia uma perplexidade de pensamento. Em Sócrates, Platão e Aristóteles se inaugura uma de-cisão Histórica. A decisão das diferenças que, sendo já em si mesma metafísica, instala o domínio da filosofia em toda a História do Ocidente. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Trata-se de uma de-cisão que vive da perplexidade em pensar a identidade como identidade e não como igualdade, isto é, que vive da dificuldade de se encontrar com a identidade no próprio seio das diferenças. Esta de-cisão, ao instituir as dicotomias de um comparativo ontológico, se pronuncia pelo ser contra o nada, pela essência contra a aparência, pelo bem contra o mal, pelo inteligível contra o sensível, pelo permanente contra o mutável, pelo verdadeiro contra o falso, pelo racional contra o animal, pelo necessário contra o contingente, pelo uno contra o múltiplo, pela sincronia contra adiacronia. No poder de seu jogo é uma de-cisão que se de-cide pela filosofia contra o pensamento. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
É esta mesma de-cisão que estabelece até hoje a filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles como critério na escolha, interpretação e avaliação dos primeiros pensadores gregos. Os problemas, as concepções e os conceitos de Sócrates, Platão e Aristóteles, transformados pelas ciências modernas, servem de parâmetro para se medir o nível filosófico de todos os gregos de antes e depois da segunda metade do século V. Em pacientes pesquisas filológicas, historiográficas e lingüísticas busca-se reconstruir a lógica, a ética e a física arcaicas sem se levar em conta que só há uma lógica, uma ética e uma física na tradição de ensino das escolas clássicas. Não se permite, que os primeiros pensadores gregos sejam pensadores. Têm de ser filósofos, iguais a Sócrates, Platão e Aristóteles, ainda que só o sejam de forma arcaica, isto é, primitiva. Por isso mesmo só podem ser pré-socráticos ou pré–platônicos ou pré-aristotélicos. Assim, nestes títulos, o pré- não possui apenas sentido cronológico mas sobretudo axiomático. É o axioma de implantação da filosofia na decadência do pensamento. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
2. Não é possível pensar o pensamento dos primeiros pensadores gregos só com os recursos da ciência e da filosofia . Toda historiografia já é sempre uma filosofia da história, quer o saiba ou não. Uma investigação de pensamento, que não pretender negar–se a si mesma como pensamento, tem necessariamente de ser uma restauração da mesma empresa. “Mesma”, no entanto, não diz aqui igual. Diz idêntica nas vicissitudes de mundos diferentes. Quem na interpretação de um pensamento se ativer exclusivamente aos textos e se limitar apenas ao sentido objetivo, destruirá precisamente o que constitui o vigor de seu esforço de pensar. As palavras e os textos são função do pensamento, como este é função do que, provocando a pensar, o torna possível como pensamento. Não há outra maneira de se interpretar um pensamento do que pensá-lo nas relações de identidade e diferença com a coisa de suas próprias virtualidades. Apreender-lhe o vigor Histórico será sempre um esforço de abrir, através do diálogo, horizontes diferentes para um novo principiar do mesmo mistério. Por isso a História do pensamento é uma tarefa exclusiva de pensadores. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
3. No século VI a religião, a política, a educação gregas exercem determinada consciência da poesia e mitologia. Houmeros tem Hellada pepaideuke. Prisma e espelho, nesta consciência se refletem e analisam as peripécias de verdade e não verdade da existência grega. Denunciando a miopia da consciência vigente, os primeiros pensadores se lançam a pensar reciprocamente as diferenças de religião e política, de educação e habilidade, de poesia e mito pela identidade do pensamento, pensando a com-pertinência de ser e pensar. Para nós, filhos do petróleo e da técnica, tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por que? – Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia , temos os olhos tão consumidos pelas utilidades que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, mas sobretudo porque, quando pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia , a ciência, a técnica, o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda, nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não se poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é o útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que tijolo e cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável, caso já esteja acertado que crescer é aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado, o que é o homem. Realmente, pensar é contra-producente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Não apenas os beócios é que não pensam. Os próprios atenienses renunciaram ao pensamento quando em Sócrates, Platão e Aristóteles a filosofia inaugurou sua avalanche histórica. Para Hegel, a filosofia é uma época concentrada em pensamentos. Para os primeiros pensadores, pensar é acordar o não pensado, acionar a inércia de pensamento de uma tradição histórica. É o que. fizeram recuperando a tragédia da poesia e mitologia vigente na consciência de sua época, da religião, da política, da educação. Na crítica aos poetas, aos mitos e cultos buscavam desinstalar a consciência de uma luz sem sombras, de uma verdade sem mistério, de um dia sem noite, de uma vida sem morte. O pensamento surgiu, quando o trágico obscureceu a claridade do racional e do irracional, do físico e do político, do mito e do culto, do desespero e da salvação. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Só não devemos entender o trágico no sentido filosófico da tradição. Neste sentido, tragédia é desgraça, a queda das alturas, a transformação súbita ou paulatina da glória em sofrimento. Trágico é o abandono desesperado do homem às forças da natureza, à vontade dos deuses, à fatalidade do destino. Onde impera a desolação, onde não há salvação humana possível, há tragédia. Apesar de fundamentais diferenças, os mistérios de Eleusis, a razão filosófica, a pregação do cristianismo, o poder da ciência, o progresso da técnica, a força do trabalho, a sociedade sem classes aceitaram este sentido de trágico e procuraram dar cobro à tragédia da condição humana com um evangelho de salvação. A situação de Jó, sentado num monturo de esterco a raspar as chagas do corpo, não é trágica. Jó não é um aniquilado. Vive da fé no Senhor: “O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor”. Em sua atitude de confiança não há tragédia. Tudo que lhe parece sem saída, possui um desígnio de salvação na sabedoria, na bondade e na justiça de Deus. Sempre que se crê numa salvação seja da parte da religião ou da filosofia , seja da parte da ciência ou do trabalho, seja da parte do progresso ou da sociedade, a existência perde os acentos trágicos, apesar de todo sofrimento, de toda desventura, de todas as lutas. Nenhuma dor é tão desesperada, nenhuma desgraça é tão desolada que já não haja salvação. O sentido filosófico de tragédia se orienta pelo homem. Restringe-se a determinada linguagem da condição humana. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
O que assim nos é dado, livra-nos também da arbitrariedade no esforço de pensar-lhes a originariedade de pensamento. Pois o que hoje nos é dado, como pro-vocação para pensar, é a filosofia ocidental na forma da ciência moderna. Os recursos da filologia clássica, da historiografia literária, da lingüística e arqueologia nos possibilitam recuperar os fragmentos dispersos nas vicissitudes da tradição. Os caminhos da ciência constituem uma via em que se torna acessível a Historicidade da história. Seguindo o modelo de pesquisa da ciência, as diversas investigações submetem os documentos conservados a um processamento que visa a constatar, analisar, aproveitar e interpretar as fontes, para assim assegurar e estabelecer os textos originais. É o processo conhecido com o nome de crítica das fontes e dos textos. Não se trata de simples relato das fontes nem de mero levantamento dos textos. Todo o esforço converge para tornar objetiva a Historicidade. Na história, porém, só é objetivo o que se deixa comparar, uma vez que, na comparação de tudo com tudo, se chega a uma explicação. Por isso também a possibilidade de comparação vale como modelo de objetividade histórica. O alcance das pesquisas só se estende até onde vai a comparação, base da explicação que processa em objetividade a história. Sendo incomparável, o único, o simples, o original, em uma palavra, o extraordinário na história permanece inexplicável e, como tal, fora da história ou, quando não é explicitamente excluído, é então explicado como exceção. Neste tipo de explicação, o extraordinário é reduzido ao ordinário e, desta maneira, eliminado da história. E não há alternativa para as pesquisas historiográficas, enquanto explicar supuser comparação, visando à objetividade, e pesquisa significar explicação. Porque a ciência histórica objetiva a história numa estrutura de explicação, exige e impõe como processo de objetividade a crítica das fontes e dos textos. As pesquisas historiográficas computam o por-vir pelos modelos de objetividade do passado, processados explicativamente no presente. Nas programações da computação historiográfica não há futuro, por se destruírem as condições de advento do inesperado. Pois o inesperado também é esperado. Só não pode ser computado. É o que nos recorda o Frag. 18 de Heráclito: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso”. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
O verbo, hermeneus, significa trazer mensagens. O hermeneos, o mensageiro, pode ser posto em referência com Hermes, o mensageiro dos deuses. Ele traz e transmite a mensagem do destino que trama as vicissitudes da história de homens e deuses. Nem toda interpretação é uma hermenêutica. Somente a que descer até o vigor do mistério que estrutura a história. Na hermenêutica, a interpretação procura, retornando-lhe à proveniência, recuperar o vigor originário do pensamento. Originário, porque foi a redução deste vigor que deu origem à filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, de quem a ciência é uma transformação Histórica. Nesta perspectiva, o problema da ciência não é apenas um problema de epistemologia. A verdade da ciência não é apenas um resultado entre outros resultados ou o conjunto de todos os resultados. É inseparavelmente o vigor do mistério e o vigor da verdade. O pensamento procura levar a sério a radicalidade de sua errância e sente no estrangeiro a nostalgia da pátria. Não rejeita a ciência com a onipotência de quem rejeita o bárbaro e primitivo. Para pensar, o pensamento sente a dependência de uma pro-vocação de sua coisa. Aceita sua decadência na filosofia e na ciência como uma outra infância, como um novo principiar da identidade do mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
A hermenêutica originária exige despojarmo-nos de tudo quanto julgamos já saber sobre o pensamento dos primeiros pensadores gregos. O que geralmente julgamos saber, advém-nos da tradição platônico-aristotélica: os primeiros pensadores, quando perguntavam pelos princípios da realidade, tomavam por objeto de especulação sobretudo a natureza. No termo de Aristóteles, eram physiologoi. Suas concepções eram ainda primitivas e ingênuas, se comparadas com o conhecimento da natureza alcançado pelas escolas de Platão e Aristóteles, pelos estóicos e nas escolas médicas posteriores. Uma interpretação, que se desenvolver no espaço destas pressuposições, não poderá deixar de ver nos primeiros pensadores simples precursores da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles. Pois é dessas pressuposições que nos afastamos para, numa hermenêutica originária, pensarmos o pensamento destes pensadores a partir da própria coisa do pensamento. O único indício, que nos servirá de guia, se reduz apenas ao que é e pretende ser um pensamento originário. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Um pensamento originário é a coragem de descer às raízes das próprias possibilidades de pensar. Um pensamento originário é um pensamento radical. Procura interpretar os modos de ser da realidade, restituindo as estruturas de suas diferenças à identidade do mistério. O modo de ser, que nos apresenta como presente, não é originariamente um determinado presente cronológico. É tão antigo como a história. Algo, que é e sempre foi como é, por mais que se recue no tempo, é reconduzido ao vigor de um destino que estrutura a dimensão radical do Ser e por isso remonta para além de toda memória historiográfica. É a partir deste diapasão que nos fala o pensamento originário. O que é e como é o espaço-tempo de todas as coisas nas diferenças de seus modos presentes de ser é pensado num pensamento re-velador da identidade no mistério das dicotomias de ser e não ser, de movimento e permanência, de uno e múltiplo, de aparência e verdade. O propósito desta hermenêutica não é corrigir ou substituir-se à ciência. Nem mesmo é o diálogo pelo diálogo mas exclusivamente o que no diálogo se faz linguagem: a identidade que misteriosamente reivindica, de modo diferente, a nós modernos e aos gregos antigos, por ter aviado a aurora do pensamento no Dia do Ocidente. É na viagem deste Dia que o pensamento dos primeiros pensadores se faz originário. Originário não diz, portanto, uma determinação cronológica nem indica uma explicação diacrônica do modo de ser ocidental. Originária é a aurora em que a própria escuridão do Ser se dá em sempre novas vicissitudes de sua verdade, ora como pensamento ora como filosofia , ora como cristianismo ora como modernidade, ora como ciência ora como mito, ora como técnica ora como arte, ora como planetariedade ora como marginalidade, mas sempre em qualquer ora, tanto outrora como agora, só se dá enquanto se retrai como mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Os Fragmentos. Cerca de mais de dois séculos depois, os primeiros pensadores gregos eram chamados de physikoí ou physiológoi, isto é, aqueles que falam e tratam da physis. Nas escolas de Platão e Aristóteles, physis é o nome de um setor da realidade, definido tecnicamente por oposição a nomos, ethos e lógos, Como termo técnico, physis indica céu e terra, vegetais e animais e, em certo sentido, também o homem. São os physei onta, os entes físicos. No início da Physike akroasis, Auscultação Física, Aristóteles distingue os physei onta, os entes físicos, dos techne onta, dos entes técnicos. Aqueles são os entes que surgem e se mantem por si mesmos. Estes são os entes produzidos pela ação e representação do homem. Assim physiológoi e physikoí são nomes que, ao denominar, já encaminham a compreensão no sentido da filosofia de Platão e Aristóteles. Neste caminho erram os primeiros pensadores mesmo num tempo em que ainda subsistia integral o texto de seus escritos. Hoje só lhes conhecemos os fragmentos. Filósofos, Platão e Aristóteles; historiadores da filosofia , Teofrasto, Sexto Empírico, Diógenes Laércio; escritores, João Estobeu, Ateneu, Estrabão; comentadores, Simplício, Próculo, Porfírio; Padres da Igreja, Hipólito, Clemente de Alexandria, Orígenes, aduzem, em suas obras, passagens dos escritos dos primeiros pensadores. As pesquisas filológicas e historiográficas modernas fizeram o levantamento de todas as passagens e, como fragmentos, as reuniram em edições críticas. Trata-se às vezes de períodos inteiros, outras de algumas sentenças, às vezes, de uma sentença só, outras, de poucas palavras e até mesmo de palavras isoladas. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Aristóteles é a fonte mais rica. Estudou expressa e profundamente os filósofos mais antigos e falou deles, em seqüência histórica, sobretudo no início de sua Metafísica (muitas vezes também em outros lugares). É tão filósofo como erudito; podemo-nos fiar dele. Para a filosofia grega, não há nada melhor a fazer do que tomar o primeiro livro de sua Metafísica. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
A importância de pensamento desta indicação é ser ela fundamentalmente ambígua. Está em jogo a ambigüidade de uma provocação para pensar. Não se pode separar o filósofo do historiador. Aristóteles nunca faz história da filosofia sem filosofia da história, mesmo quando fala dos filósofos que o precederam nas peripécias do pensamento. Não pergunta pelas idéias que determinado filósofo tinha na cabeça. Isso não tem importância. Sua investigação é sempre e somente filosófica. Assim quando a tradição lhe diz que para Tales a água (hydor) é o princípio (arche) de todas as coisas (pánton) não se pergunta qual idéia de água e princípio podia ter tido Tales. Só se interessa pelo sentido filosófico da afirmação. Uma análise cuidadosa e erudita dos testemunhos de Aristóteles empreendeu H. Cherniss em seu famoso Aristotle’s Criticism of Presocratic Philosophy, Baltimore, 1935. Das análises conclui que Aristóteles é a menos fiel de todas as testemunhas. E não é para menos. Em suas pressuposições implícitas Cherniss pretendia que Aristóteles deixasse de pensar quando falasse dos primeiros pensadores. Para ser historiador da filosofia , teria de não ser filósofo. Se é verdade que Aristóteles pensa o pensamento dos primeiros pensadores na perspectiva da filosofia , é também verdade que, pondo em discussão tal pressuposto, nos dá um testemunho valioso do pensamento originário. Se é verdade que define os pensadores antigos no contexto de suas concepções e de seus termos filosóficos, é também verdade que nos faz sentir, na diferença entre pensamento filosófico e pensamento originário, a identidade da própria diferenciação. Se é um erro aceitar o testemunho de Aristóteles, como história sem filosofia , é também um erro recusá-lo, como filosofia sem história. Os dois erros provêm de uma mesma errância. Pois ambos erram na pressuposição de que pode haver uma história sem pensamento ou um pensamento sem história. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
A queda de nível que sofre o pensamento dos primeiros pensadores, quando se deixam os testemunhos de filósofos para se ater aos testemunhos de historiógrafos da filosofia , pode-se verificar na passagem de Aristóteles para Teofrasto. Discípulo e sucessor imediato do Filósofo na direção do Peripatos, Teofrasto de Ereso, na ilha de Lesbos, morreu pelo ano de 286 aC. De seus escritos, o mais importante é Physikon dóxai, As Opiniões dos Físicos. Em 16 ou 18 livros é um tratado sistemático das doutrinas antigas sobre os principais problemas da filosofia . Na antigüidade gozou de uma influência ímpar, visível na freqüência e consideração com que é sempre de novo indicado. Nas vicissitudes de citação dos primeiros pensadores, sua posição é fundamental embora só tenha sido reconhecida depois que Hermann Usener lhe reuniu os fragmentos e Hermann Diels os comparou com os fragmentos dos outros doxógrafos. É praticamente a única fonte de nosso conhecimento textual dos primeiros filósofos, excetuando-se as citações de Aristóteles e Platão. Pois todos os fragmentos conhecidos de citações posteriores à morte do Estagirita remontam, quer direta quer indiretamente, às Physikon dóxai. Assim todas as demais testemunhas se revestem da autoridade de Teofrasto. A crítica histórica chega ao ponto de considerar intocável a fidelidade de um testemunho quando se pode demonstrar-lhe a origem nas Physikon dóxai. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Em nome de uma história sem filosofia , grande parte da crítica histórica inverteu os valores e considerou a dependência de Teofrasto não como uma diminuição do discípulo mas como uma corroboração da autoridade do mestre pela aprovação do discípulo. É que, não sendo filósofo, Teofrasto seria um historiador mais objetivo por estar isento do defeito de pensar. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
As Opiniões dos Físicos de Teofrasto se tornaram a fonte principal dos manuais de história da filosofia e dos compêndios de textos que, saindo de Alexandria, proliferaram no período helenista. Era à base de bioi, epitomai, historiai, strõmateís que se nutria a formação filosófica. Foi destes compêndios e manuais que posteriormente se desenvolveu a tradição doxográfica da filosofia . Deles se recebiam os princípios e o horizonte para a interpretação dos escritos originais ainda existentes. Não é, pois, de admirar que não só o conteúdo mas também o estilo de toda esta tradição tenha determinado decisivamente a posição e atitude dos filósofos posteriores até Nietzsche exclusive, frente à História do Pensamento Ocidental. O predomínio da filosofia sobre o pensamento, que se instalara e consolidara com Sócrates, Platão e Aristóteles, assume explicitamente o imperialismo de um domínio exclusivo. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Plotino. Sua cidade natal é Licópolis no Egito. Viveu de 203/204 a 269/270. Com 28 anos se dedicou à filosofia . Estudou em Alexandria principalmente com Amônio. Juntou-se à expedição do imperador Gordiano contra os persas para ir conhecer a filosofia persa. Com o fracasso da expedição teve de fugir para Antioquia. Com quarenta anos, mudou-se para Roma onde desenvolveu intensa atividade de ensino. Procurou convencer o imperador Galiano a construir na Campânia uma cidade nos moldes do ideal platônico, a Platonópolis, mas sem sucesso algum. Após 26 anos de morada em Roma, abandonou doente a capital do Império e se estabeleceu no campo, onde morreu na propriedade de um discípulo. Em seis Enéadas Porfírio reuniu os escritos do mestre. Delas constam citações sobretudo de Heráclito e Parmênides. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Simplício. Nasceu na Cilicia pelo ano de 500 dC. Pertenceu à última geração da Escola Neoplatônica de Atenas, fechada em 529 pelo edito do imperador Justiniano, que proibiu ensinar filosofia . Escreveu grandes comentários a Aristóteles dos quais se conservam os comentários aos De cathegoriis, Physica, De coelo e De anima. Ao explicar as interpretações que Aristóteles dá de seus predecessores, Simplício cita longa e freqüentemente os primeiros pensadores, cujas obras, nos diz, se tornaram muito raras. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Com a sua coleção dos fragmentos, o propósito de Diels era dar um fundamento às preleções sobre filosofia grega. Trata-se, portanto, de um manual de textos. Para se deixar conduzir pela provocação do pensamento nas vicissitudes da reflexão grega, é indispensável acompanhar-lhe a parusia em statu nascendi nas diversas epifanias de sua linguagem originária. Neste sentido a coleção de Hermann Diels é fundamental. Pois reúne ou pretende reunir todos os fragmentos legados pela tradição, conserva fielmente a forma dialetal, quando ocasionalmente a mantém a tradição, e não corrige os vulgarismos, helenismos e pseudodorismos dos textos. Limita-se apenas a corrigir a ortografia. A ordem dos autores é a ordem externa apresentada pela tradição. A ordem dos fragmentos é alfabética, enumerados digitalmente. O gigantesco material da tradição é reunido e analisado, segundo os princípios da crítica textual e histórica, com base num conhecimento exaustivo da respectiva literatura antiga. Menos feliz se nos afigura a limitação dos Lemmata dos fragmentos e o critério que preside à escolha e disposição do material doxográfico. Diels se ateve à divisão das Phgsikõn dóxai de Teofrasto, seguindo o esquema claramente escolástico:: Princípios, Deus, Cosmos, Meteora, Psicologia e Fisiologia. A deficiência deste critério não provém tanto do anacronismo do esquema. Prende-se sobretudo ao caminho em que encaminha a compreensão do pensamento dos primeiros pensadores, um caminho fundamentalmente não originário mas tipicamente aristotélico. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário
Já houve quem o apresentasse, como “talvez… a melhor e a mais ‘fácil’… introdução à filosofia de Heidegger…” (The Journal of philosophy, II, 3 (1954), 106). Uma aparência, de certo suscitada pelo título e amparada nos pareceres correntes sobre a filosofia . Em todo caso, outra é a apresentação que faz o pensamento de Heidegger. Não se trata de uma obra de iniciação nem de fácil acesso. E por duas razões principais. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
A primeira é muito simples e por isso mesmo difícil de se compreender. Em filosofia não há possibilidade de introdução. Um abismo separa o espaço ordinário da existência, em que se move tanto o modo de ser habitual, familiar e imediato da vida cotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato da vida científica, do espaço extraordinário, em que se agita a investigação filosófica. E nenhuma ponte o poderá transpor. Não, certamente, por estar o espaço da filosofia demasiado distante e sim demasiado próximo de todos os modos de ser da existência histórica. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Daí também toda a dificuldade da filosofia para o homem moderno, que vive, habitualmente, no espaço da ordem do dia. Dessa perspectiva o mais longo e o mais difícil dos caminhos é sempre aquele que leva ao que é mais íntimo e está mais próximo. É tão íntima a presença da filosofia no país dos homens, que se torna impossível uma introdução e muito difícil o acesso à sua paisagem. A filosofia já está sempre operando em todo pensamento, que nela se procura iniciar e introduzir. O único caminho ainda possível é um retorno brusco da existência à sua origem. A paisagem da filosofia não está em lugar algum, esperando que nela se introduza o pensamento. A paisagem da filosofia se instaura e origina pelo movimento da própria investigação filosófica, que, pondo-se em questão, retorna às origens, donde ela mesma provém. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
É o que significa o título do livro, cuja tradução portuguesa ora se oferece. Introduzir à metafísica é movimentar-lhe a questão fundamental de maneira a elevá-la (-ducere) para dentro (intro-) das origens, donde a metafísica procede. Um esforço de pensamento, que nada tem de horizontal e progressivo. Cujo movimento se processa antes no sentido vertical e regressivo. Na direção do fundamento e proveniência. Longe de ser uma iniciação, a Introdução à Metafísica pressupõe intimidade com as profundezas da metafísica e a disposição de arriscar o salto nas fontes originárias de suas possibilidades e de seus limites. Não é por ser obra da “linguagem esotérica e sibilina” de Heidegger mas por ser obra de filosofia , que se trata de um livro de acesso difícil. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Já dessa explicação de termos meramente formal se pode ver que as três perguntas acima formuladas sobre o destino das diversas determinações do ser do ente, nos vários períodos da metafísica, articulam dialeticamente entre si os três momentos centrais: o ente em seu ser, o homem em sua existência e o Ser em sua Verdade, numa única questão: a questão sobre a diferença ontológica, como tal. Durante todo o decurso da história do Ocidente a diferença constitui sempre o fundamento esquecido e não pensado de todo o pensamento metafísico. O famoso esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit) não é outra coisa do que o esquecimento da diferença ontológica. Para Heidegger ela constitui o que é mais digno de ser posto em questão (das Fragwürdigste) e investigá-la é a preocupação central e única de toda a sua filosofia , como ainda veremos. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
2. Os Termos da Questão do Ser: A problemática da tensão de imanência e transcendência na existência humana se agita antes do problema clássico da analogia. Investiga o fundamento de possibilidade no qual somente toda analogia pode mover-se e o homem pode existir metafisicamente. Já na conclusão de sua tese de habilitação ao magistério, Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Skotus (A Doutrina das Categorias e da Significação de Duns Escoto), Heidegger levanta o problema da tensão da existência, que, em Sein und Zeit (Ser e Tempo) e nas obras posteriores será determinado e articulado como a questão central de seu pensamento, a questão sobre o Sentido e a Verdade do Ser: como se deverá pensar, em sua estrutura ontológica, a essencialização da existência humana, que recolhe a individualidade de suas atitudes, sempre condicionadas historicamente pela situação de tempo e espaço, na universalidade de um sentido? Quais são as condições de possibilidade da existência humana, como tensão entre imanência e transcendência, entre ente e ser? Como se comporta a filosofia com a sua própria história? Como se deve conceber a essencialização da verdade, que exige para se edificar um lugar e um momento próprio na história? Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Com a publicação dos escritos posteriores já não cabe dúvida de que a filosofia heideggeriana é uma reflexão sempre mais exclusiva sobre a essencialização da verdade do ente como a Verdade do Ser. A existência humana se agita dentro da tensão entre imanência e transcendência, porque o homem existe, enquanto in-siste no domínio da Verdade do Ser, isto é, na vicissitude instaurada pela diferença irredutível e referência necessária entre ente e ser. A tarefa do pensamento não é procurar sair desse círculo de diferença e referência e sim nele ingressar de maneira a poder regressar até a fonte originária de sua tensão e unidade. A imanência da existência, que testemunha a indigência do homem de in-sistir no mundo dos entes para poder existir, é o índice de uma outra indigência. Da indigência ainda mais profunda, por constituir-lhe todo o ser, de in-sistir nas vicissitudes da Verdade do Ser, sem nunca poder possuí-la e dominá-la. Que o homem só possa transcender o mundo dos entes na medida em que nele se encarna e mergulha, já mostra a finitude inexpugnável de sua transcendência. Ele só consegue atingir a verdade do ente, enquanto habita a luz do Ser, na qual o ente se manifesta como tal. Assim até no mais elevado grau de sua potência, na própria excelência de seu ser o homem permanece sempre um ente sensível. Um ente, que deve receber de outro as virtualidades de sua própria humanidade. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende repetir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (die Vor-frage) sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Quer ele trate da Sentença de Anaximandro, como o “princípio” (der An-fang) de toda a sabedoria do Ocidente, ou se ocupe dos Fragmentos de Heráclito e Parmênides, nos quais “Ser e Pensar” se compenetram intrinsecamente (innig zusammen-gehoeren); seja que ele explique a Doutrina de Platão como uma “mudança na essencialização da verdade” (Wandel des Wesens der Wahrheit), da qual profluiu primeiramente a “não-essencialização da metafísica” (das Un-wesen der Metaphysik), ou seja, que exponha “a constituição onto-teo-lógica da metafísica” (die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik), que encerra em si a aporia (Verlegenheit) de toda a filosofia ocidental; quer interpretando a Crítica da Razão Pura de Kant, como uma “fundamentação da metafísica” (eine Grundlegung der Metaphysik) ou evocando a Lógica Hegeliana e o Nihilismo Nietzscheano, como a “consumação” (Vollendung) da Época metafísica da história do ser (Geschichte des Seins); quer esclarecendo a poesia (Dichtung) de Hölderlin, quer expondo o significado de Rilke ou um verso de Moerike para o “tempo da penúria” (dürftige Zeit), quer instituindo a questão sobre a técnica (die Frage nach der Technik) ou investigando a essencialização da linguagem (das Wesen der Sprache), etc. etc. sempre se propõe Heidegger a questão central do pensamento sobre o Sentido e a Verdade do Ser. Esse propósito assumiu toda a clareza desejável desde a primeira página de Sein und Zeit: “Será que já temos uma resposta à questão sobre o que propriamente entendemos com a palavra “sendo”? — De forma alguma. Por isso se trata de pôr novamente a questão sobre o Sentido do Ser. Será que nos sentimos hoje perplexos em não compreendermos a expressão, “Ser”? — De forma alguma. Por isso convém primeiramente despertar de novo uma sensibilidade para o sentido dessa questão. A elaboração! concreta da questão sobre o Sentido do Ser é o propósito do seguinte tratado. A interpretação do tempo, como o horizonte de toda compreensão do Ser, simplesmente constitui a sua meta provisória” (Sein und Zeit, p.l). Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Essa necessidade não é extrínseca. A superação não só tem que falar a linguagem em vigor e servir-se de seus títulos e de sua gramática para tornar-se inteligível dentro dos limites da filosofia vigente. É antes de tudo uma necessidade intrínseca, inerente à própria dialética do movimento de superação. Pois a metafísica é “uma fase eminente e a única até agora visível da História do Ser” e por isso o único espaço de qualquer retorno à sua Verdade. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
É outra simples aparência. Não se trata de um renascimento da filosofia pré-socrática. Na famosa Einleitung (Introdução), acrescentada em 1949 à aula inaugural de 1929, Was ist Metaphysik? (O que é a metafísica?), recusa Heidegger qualquer tentativa nesse sentido como “uma pretensão vã e paradoxal”. E a razão é simples. Os chamados filósofos pré-socráticos não são filósofos. São mais do que isso. São pensadores do Ser. A filosofia só surgiu, quando o pensamento deles chegou grandiosamente ao fim com Platão e Aristóteles. Chamá-los de “pré-platônicos” com Nietzsche ou de “pré-aristotélicos” com Hegel já é diminuir-lhes a grandeza originária na “cama procrusteana” de Platão e Aristóteles. Pois apenas em aparência são inocentes e inofensivas tais denominações, que se apresentam como simples classificação cronológica. Em verdade encobrem nessa aparente inocência uma canonização de Platão e Aristóteles, como o modelo e a norma de toda perfeição do pensamento ocidental até eles. Os que pensaram antes deles teriam pensado em função deles. Seriam precursores ainda primitivos da filosofia propriamente dita, instaurada por eles. Toda grandeza e importância dos pré-socráticos estaria assim em terem sido “pré”, isto é, um Platão e um Aristóteles de modo muito imperfeito. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
Em conseqüência dessa decisão implícita naquelas denominações se leram, entenderam e interpretaram os primeiros textos com os olhos, a doutrina e os conceitos platônicos e aristotélicos. O sentido originário de seus pensamentos e da linguagem de suas palavras foi profundamente modificado pela filosofia posterior. Situação, que se agravou sobremodo com as traduções latinas, que, ao legarem à cultura do Ocidente o patrimônio grego, o desfiguraram a ponto de torná-lo quase incompreensível em sua originalidade. Hoje já não lemos o que os primeiros pensadores pensaram mas o que outro modo de pensar nas faz perceber. E não o lemos, porque o alarido da metafísica, enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, os torna surdos para a voz da origem. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
1. Sobre o Humanismo e a Essência do Homem. Ao preparar o questionamento do problema sobre o Sentido do Ser, Sein und Zeit se propõe, por motivos inerentes à própria tarefa, re-pensar a Essência do homem a partir da “experiência fundamental do esquecimento do Ser”. Para isso se serve dos termos e da gramática vigentes na filosofia , como essência, existência, substância, Dasein, ente, ser etc, como sujeito, particípio, objeto, genitivo subjetivo e objetivo etc. Mas o emprego desses termos e dessa gramática tem uma função bem precisa. Visa acionar o superamento da metafísica. Isso veio provocar uma situação fundamental e intencionalmente ambígua. A desconsideração dessa ambigüidade levou a “erros” palmares de interpretação e entendimento. É que a compreensão dessa linguagem “intencionalmente ambígua” exige que, ao esforço de aprender-lhe o sentido habitual, corresponda um esforço de superá-la num pensamento que ponha em questão a própria Essência da linguagem. A ambigüidade da linguagem reflete em si mesma a dialética inerente ao movimento de superação. Por isso toda tentativa de se determinar o sentido dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se articulam, tranca-se a qualquer possibilidade de entendimento. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
A época da técnica e da ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade-subjetividade do ente como na subjetividade-objetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor. A arte, a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vigência da correlação de subjetividade e objetividade, que hoje vai atingindo o paroxismo, é, pensada como “época”, o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se derrama a escuridão da “Noite Histórica” na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua humanidade, “erra”, sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetividade. A “época” da técnica e da ciência é o império do homem a-pátrida em sua Essência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
1, Num mapa da filosofia os nomes de Heidegger e Wittgenstein ocupariam pontos extremos. Designariam sistemas opostos na constelação filosófica de nosso século. Seriam uma espécie de chave-mestra para abrir uma compreensão em profundidade das reflexões de hoje. Os títulos, Fenomenologia, Ontologia Fundamental, Filosofia da Existência, de um lado, e Filosofia Analítica, Positivismo Lógico, Filosofia da Linguagem, de outro, não exprimem apenas diferenças de orientação sistemática e endereço metodológico. Dizem também diferenças existenciais na geografia cultural do Ocidente. Pode-se distinguir nitidamente duas regiões: uma de cunho mais anglo-saxão com irradiações para a Escandinávia e a Rússia, outra de cunho mais franco-germânico com irradiações para o Sul da Europa e América Latina. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
3. Esta seria a visão proporcionada por um mapa de filosofia . Outra, bem outra é a fisionomia que Heidegger e Wittgenstein assumem no vigor de um Pensamento Radical. É que nos vórtices do Pensamento Radical tanto o que é pensado como o próprio pensar remontam numa referência estranha, porque original, às raízes de sua proveniência. No jogo da radicalidade o pensar e o pensado chegam a si mesmos, ao se abrirem na direção da identidade de suas respectivas diferenças. O Pensamento Radical se faz então incomparável com qualquer coisa. Não é, como a queda das folhas no outono, um fato entre fatos. Enfrentando o pensado, o pensamento se enfrenta a si mesmo. Para pensar, vive o paradoxo de uma retirada. Procura, de alguma maneira, retirar-se de si mesmo e do pensado sem nunca conseguir fazê-lo de todo. E é justamente neste paradoxo que alcança a sua originalidade. Pois, não podendo retirar-se totalmente, repercute no próprio pensamento o que ele pensa do pensado. Assim, quando se pensa radicalmente por que o amor?, o porquê repercute no próprio pensamento: por que se pensa por que o amor? Em que se funda o pensar do pensamento que pretende pensar o amor? Este porquê ainda será um pensamento, de sorte que sempre se tem de encontrar o pensamento como fundamento do pensamento? Nesta virada, a repercussão, do que se pensa, no próprio pensamento envia o pensamento a sua originariedade. Nesta originariedade reside toda a originalidade. À primeira vista, parece um redemoinho de repetições da mesma partícula interrogativa. E a questão decisiva é precisamente saber se, transviados por esta aparência, logo deixamos de pensar e damos tudo por encerrado, ou se ainda temos tanto vigor de pensamento para vivermos na viagem até ao fundo desta repercussão a vocação de ser de todo pensamento. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger
É o testemunho das onze linhas que compõem o Curriculum Vitae da tese de doutoramento: “Eu, Martin Heidegger, nasci em Messkirch (Província de Baden), aos 26 de setembro de 1889, filho de um sacristão e mestre carpinteiro, Friedrich Heidegger, e de sua mulher, Johanna, da família Kempf, ambos de confissão católica. Freqüentei a escola comunal de minha terra. De 1903 a 1906 cursei o ginásio de Constança, depois, desde a Segunda, o Bertholdgymnasium de Friburgo na Brisgóvia. Após os exames finais (Abitur) em 1909, estudei em Friburgo até o Rigorosum. Segui no primeiro semestre os cursos de teologia e filosofia , desde 1911, sobretudo os de filosofia , matemática e ciências naturais e no último semestre os cursos de história”. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Estas poucas indicações autobiográficas já demonstram uma profunda identificação com a terra natal. A importância de pensamento desta identificação é única em toda a história da filosofia alemã. Celebrou-a Hebel numa frase famosa: “Nós somos plantas que —desejemos confessá-lo ou não — devemos crescer com as raízes na terra para poder florir e dar frutos no céu”! O alarido da metafísica, enchendo-nos os ouvidos de distinções e dualismos, nos faz surdos à voz da Origem, que fala da renúncia para restituir o vigor de uma identidade inesgotável pela força de integração da diferença. É a última palavra de O Caminho do Campo: “Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz de novo morar uma Origem distante onde a terra natal nos é restituída”! (Der Feldiveg, p.8). Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Hoje a tempestade nos chega, pelo vigor planetário da Linguagem, na civilização da ciência e da técnica. Nos vórtices da planetariedade toda diferença entre Pensamento e Ciência é uma função de referência. Pois sempre de alguma maneira pertence a toda ciência uma semântica. Semântica é a articulação de fatos referenciais com fatos referenciados que uma sintaxe possibilita e exerce. Destituído de semântica, o Pensamento se apresenta como alguma coisa de estranho em nosso tempo e sua tempestividade. É por esta estranheza, por ser daquelas causas, cujo destino é nunca poder encontrar ressonância semântica em seu próprio tempo que o pensamento de Heidegger é intempestivo. Daí toda a incompreensão por parte da ciência e da filosofia . Pertence à atualidade de seu pensamento ser incompreendido pela exatidão de qualquer cálculo. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
Numa formulação célebre, Hegel diz que a filosofia é uma época concentrada em pensamentos: “eine Zeit in Gedanken erfasst”! Esta formulação do Filósofo não pretende ser um juízo abstrato sobre a filosofia que atribuísse sintética ou analiticamente a um determinado sujeito, a filosofia , determinado predicado, uma época concentrada em pensamentos. A frase de Hegel é uma experiência dialética da vigência e do vigor da filosofia . De seu modo de ser. De sua essencialização. A filosofia só é filosofia quando chega a dar consistência e a concentrar o destino, que empolga de seu apelo as preocupações e atividades dominantes numa época. A filosofia é ao mesmo tempo prisma e espelho. Decomposta pela filosofia em suas possibilidades, uma época adquire transparência e lucidez de si mesma. À luz dessa transparência se esboçam os projetos das articulações que lhe permitirão realizar sua transcendência histórica e marcarão também as características de sua decadência. Prisma e espelho, a filosofia é cristalização e projeto de possibilidades. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
A corrente de idéias artísticas e literárias, sociais e morais que se convencionou reunir sob o nome de existencialismo, são expressões interpretativas destas experiências. Existencialismo é um nome coletivo. Abrange toda a gama da expressividade de comportamento: desde a forma menos expressiva de uma moda inconsciente mas “interessante” até às formas altamente expressivas de interpretações fenomenológicas e científicas. Mas existencialismo nem sempre é sinônimo de filosofia e muito menos ainda de pensamento existencial. Muito antes de o existencialismo se haver constituído numa interpretação das experiências vividas pela humanidade ocidental em nosso século, muito antes de se ter feito moda, os filósofos e pensadores já haviam elaborado filosofia s e pensamentos existenciais. Lançaram as raízes e estabeleceram os fundamentos de um esforço sem o qual não se pode compreender a reflexão e o pensamento de hoje. Uma vez que o termo, existência, desempenha uma função ora central ora decisiva nas obras de Kierkegaard e Carnus, Jaspers e Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty, a costumeira irreflexão não se preocupou em pensar e pesar o sentido dessa variedade de funções e endereços. Não obstante as profundas diferenças de endereço reflexivo, preferiu reunir todos indiscriminadamente na vala comum do existencialismo. Ganhando em extensão, o termo perdeu em dinâmica, conservando apenas um sentido meramente verbal: designa toda e qualquer interpretação que reserva à existência um papel central. Heidegger vê nessa designação o império das forças da metafísica. Para ele, como designação de seu pensamento, existencialismo é um “lucus a non lucendo”, um título que encobre o sentido e a intenção do esforço de pensar. É que a palavra, existencialismo, sugere a concepção de que a existência, isto é, o modo de ser próprio e característico do homem, constitui o centro da filosofia . E não só isso. Dificulta também uma compreensão do ser do homem em sua propriedade. Ora, o pensamento existencial procura fazer a experiência dos envios históricos do Ser, que lança o homem na existência, como o lugar da articulação de sua verdade. Não visa determinar o Ser pela existência mas entender a existência pelo Ser, enquanto destino, que estrutura toda a realização do homem como homem. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Heráclito: A abertura não nos abre apenas o acessível. Também o acesso ao inacessível, como tal, nos é facultado pela abertura, que se exerce na própria diferenciação de aberto e fechado, de acessível e inacessível. Abertura não é assim uma coisa que se pudesse fazer ou encontrar entre outras coisas. Abertura só se dá no movimento bruxuleante de, abrindo, vedar e, vedando, abrir passagem. Neste movimento é que somos presenteados com a verdade de nossa finitude. Pois a in-verdade pertence essencial e constitutivamente à verdade. Estando sempre numa configuração de verdade, estamos também numa configuração de in-verdade. Esta tensão é o que evoca a provocação da palavra grega alétheia. Pois lanthano significa cobrir e velar, manter-se encoberto e ficar velado. Lethe é o nome de uma torrente no Hades, cujas águas encobrem a vida e velam as vivências dos mortos. É também o nome do esquecimento, cujo verbo, usado na forma medial de lantháñomai, quer dizer propriamente: se me encobre para mim mesmo, eu fico encoberto para mim de tal sorte que o eu, o me e o para mim resultam e nascem do próprio movimento de encobrir. Sendo profundamente reflexiva, a língua grega, ao falar, é atraída pelo vazio que deixa ecoar nas palavras o retraimento da Linguagem. / Diana: Somente neste vazio poderiam medrar o mito e a música, a poesia e o pensamento, o teatro e os jogos, a pintura e a escultura, a democracia e a tirania, a filosofia e a ciência em seu vigor originariamente grego. O mais provocante nesta experiência nasciva da alétheia não é apenas a riqueza inesgotável de sua fulguração em palavras e em mármore mas sobretudo a serenidade madura de sua vigência tanto na aurora como ocaso de sua jovialidade. É esse vigor originário que Hölderlin procura evocar com o título Oriente e Oriental, quando, no poema, Griechenland, A Grécia, chama os gregos de Oriente do Ocidente. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito
Estranhamente o mito vem interessando às pesquisas de filólogos e antropólogos, literatos e psicólogos, sociólogos e historiadores. Mais estranho ainda o interesse dos filósofos existenciais. e até já haver um problema filosófico do mito. Pois o mito, assim se julga quer implícita quer explicitamente, é a-lógico. Algo de irracional. A filosofia , ao invés, não somente se afirma como algo lógico e racional mas é a própria cidadela da lógica. A gerência da razão. e isso não por uma pretensão abstrata e gratuita. Trata-se de uma pretensão concretamente histórica, que se veio consolidando em toda a curva de progresso da história ocidental. Desde o século VII antes de Cristo, o pensamento do Ocidente vem empreendendo um esforço de autonomia frente ao mito. Libertando-se da tutela mítica, vem abrindo espaço para o despregar-se das forças da razão. No testemunho milenar da história, a certidão de nascimento da filosofia é a racionalidade do pensamento. e’ na razão que reside o lugar gerador da verdade. Daí toda a estranheza que provoca a preocupação dos filósofos existenciais com o mito. Procurar uma verdade no mito seria pretender substituir pela irracionalidade a racionalidade. Seria negar a virulência histórica de mais de dois mil anos de filosofia . Assim se julga. Assim se diz. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
Enquanto faltar uma reflexão suficiente sobre o que é razão e racionalidade, não se poderá dizer nada de essencial sobre o mito, interpretado simplesmente como o irracional c o a-lógico. Enquanto não se tiverem discutido as relações entre razão e racionalidade, de um lado, e filosofia e verdade, de outro, não adianta estranhar o interesse de filósofos pela verdade do mito. Pois onde e por quem foi decidido o que é a razão e racionalidade? O simples recurso à interpretação horizontal da história mostra apenas um domínio, de fato, da razão e da racionalidade na civilização ocidental. Mas qual é o sentido desse fato? E será mesmo a interpretação horizontal da história a sua essencialização originária ? Como assim, se ela já é em si mesma histórica? E onde fica a dimensão vertical da história? Se o que vale como razão e racional se originou pela reflexão filosófica e no curso de sua história, será, no mínimo, apressado e problemático atribuir-se à razão, sem mais, a tutela da filosofia . Por outro lado seria uma ingenuidade recusar-se à filosofia a ditadura do racional para entregá-la à ditadura do irracional. Tão apressado como o domínio da razão é o domínio da irrazão. Tão problemático como uma filosofia racional é uma filosofia irracional. Pois não é possível determinar-se a filosofia como irracional sem já se pressupor sabido o que é razão e racionalidade. Para se atingir, portanto, o sentido do interesse de filósofos pelo mito, torna-se indispensável analisar as origens da existência. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
Ora, na perspectiva de uma análise originária, que problematiza tanto a racionalidade como a irracionalidade, o interesse dos filósofos existenciais pela verdade do mito brilha numa outra luz. Na luz de uma reflexão em que seu pensamento procura, retornando à proveniência, recuperar as forças de seu vigor originário. Originário porque foi a simplificação e redução desse vigor que deu origem ao binômio de razão e irrazão. Colocado, assim, aquém dessa alternativa já derivada, o problema do mito não é apenas um problema entre outros problemas. A verdade do mito não é apenas uma verdade entre outras verdades. É inseparavelmente o problema da filosofia e o problema da verda-de. Livre do absolutismo absorvente da razão e sua verdade, a filosofia começa a levar a sério a finitude de sua errância constitutiva e sente no estrangeiro a nostalgia da pátria. Já não rejeita o mito com a auto-suficiência de quem rejeita o que é infantil e pueril. Já não despreza o a-lógico e não-racional como o bárbaro e primitivo. Aceita o mito como uma nova infância. Como um novo princípio. Diante da riqueza originária da mitologia, a filosofia se sente como um filho pródigo. Tendo separado para si a razão, como sua parte da herança, entregara-se às delícias da racionalidade. E depois de milênios de esbanjamento racional, ela reconhece a sua errância e sente haver dilapidado nas definições lógicas a riqueza originária de seu patrimônio. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
Essa revisão do mito é no fundo uma revelação da autoconsciência da filosofia . O que o filósofo procura na verdade do mito é a verdade da própria filosofia . Na época de sua errância racional, a filosofia se sentia absolutamente autônoma e independente da não- filosofia . No espaço dessa independência julgava atingir com os recursos da razão uma verdade absoluta, necessária, universal. Em nome dessa verdade desprezava tudo que não se enquadrasse na bitola da racionalidade. O mito, as lendas, os sonhos, a loucura, a poesia, a religião, para terem lugar no país da verdade, guardado pela filosofia , necessitavam das credenciais da razão. No rigor dessa ditadura não se destruía, decerto, a liberdade desde que sua essencialização se submetesse aos princípios racionais da lógica. Pois a essência da liberdade era a verdade. Hoje a filosofia sente sua dependência da não- filosofia . É aquém da alternativa de racional e irracional que se instaura o espaço de toda verdade. Na liberdade dessa dimensão originária se articulam a verdade da fantasia, a verdade dos sonhos, a verdade da loucura. O juízo já não é o lugar primogênito da verdade. Há verdades, no plural, correlativas ao sentido das diversas intencionalidades. É a liberdade que é a essência da verdade. Aprendendo a pensar I: A Hermenêutica do Mito
Este ano celebra o Segundo Centenário do nascimento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Há mais de cento e cinqüenta anos que age o pensamento de Hegel. Na ação, o pensador guarda a sua presença. Encolhe-se a distância cronológica que nos separa da obra de seu pensamento. Celebrar Hegel será apresentar-lhe a presença na operação histórica de seu pensamento. Dele, o vigor do Ocidente adquiriu a lucidez e solidez da consciência de si mesmo, o que lhe permite hoje alçar-se à plenitude de uma expansão planetária. Por força da celebração, a filosofia de Hegel deixa de nos ser simplesmente estranha para se impor como a nossa própria estranheza. É, então, que nos sentimos conosco quando estamos com ele. Celebrar Hegel já não será apenas rememorar um filósofo que nasceu há duzentos anos. Será tomar consciência do que hoje somos e não somos. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
A questão: “como se integra Deus na filosofia e na História do Ocidente?”, subministra-nos o tema em que se concentra o diálogo entre a Metafísica do Espírito e o Pensamento Essencial. Na marcha do pensamento ocidental a estrutura de identidade entre verdade e poder opera na constituição onto-teo-lógica da metafísica. Essa constituição é a presença do Ser na dinâmica do esquecimento. Ora, o auge das virtualidades e potências do esquecimento é a Metafísica do Espírito de Hegel. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
No primeiro volume da Wissenschaft der Logik, observa Hegel que, indiscutivelmente, deveria ser Deus o ponto de partida da filosofia . E, no entanto, a dialética de estruturação impõe um ponto de partida “lógico”: “… logisch ist der AnfangAo mesmo tempo sendo “lógico”, o ponto de partida ainda é Deus. Por isso na totalidade de seu dinamismo dialético, o princípio da filosofia é “teo-lógico”. Mas com isso a Metafísica do Espírito é dialeticamente uma ontologia sem Ser e uma teologia sem Deus. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
À luz do Pensamento Essencial se vê que o problema de Deus ainda não encontrou no Ocidente, tanto em sua história como em seu pensamento, as condições indispensáveis para se colocar em sua verdade. Para tanto, impõe-se iluminar primeiro, em sua fonte, a estrutura em que Deus há de integrar-se. Ora, a metafísica, que pretende ter integrado Deus, é a estrutura dá ausência do Ser. E o problema de Deus só se apresenta como problema de Deus a partir da fonte donde se essencializa a metafísica. É que a integração de Deus na filosofia depende de Deus e não da metafísica. Assim, na filosofia em que Deus foi integrado, Deus não existe e ainda não existe a filosofia em que Deus se pudesse integrar como Deus. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Trata-se da oposição fundamental. É que diz respeito ao próprio vigor de essencialização da filosofia . Tanto Hegel como Heidegger pretendem ultrapassar a dicotomia, a cisão de ser e pensar. Hegel procura fazê-lo, reduzindo e dissolvendo o ser no pensamento através de uma metafísica de identidade absoluta. Heidegger contrapõe a esta identidade absoluta a com-pertinência originária de ser e pensar na qual o pensamento pertence ao ser e não o ser ao pensamento. A identidade absoluta provém do esquecimento da com-pertinência originária. A metafísica do Espírito Absoluto é um sistema de identidade sem diferença. Para Hegel o Ser é o pensamento pensando a si mesmo como idéia Absoluta. Para Heidegger, o Ser é a diferença como diferença. A “causa” do pensamento é o Ser na sua diferença do pensamento que pensa a realização do real. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
No “System der Philosophie” diz Hegel: “Die selbe Entwicklung des Denkens, welche in der Geschichte der Philosophie dargestellt wird, wird in der Philosophie selbst dargestellt, aber befreit von jener geschichtlichen Aeusserlichkeit, rein im Element des Denkens”.” A tese de Hegel é a seguinte: “o mesmo desdobramento do pensamento, que se apresenta na história da filosofia , apresenta-se na própria filosofia mas livre daquela exteriorização histórica, puramente no elemento do pensar”. Esta tese, no entanto, não pretende reduzir a filosofia a uma coletânea de representações históricas nem tampouco identificar a presença do Espírito com o pensamento presente. Hegel está convencido de que seu pensamento é historicamente tópico, pertence a uma época determinada da história: “jede Philosophie eben darum, weil sie die Darstellung einer besondern Entwicklungsstufe ist, gehoert ihrer Zeit an, und ist in ihrer Beschränktheit befangen”8: “toda filosofía, justamente por ser a apresentação de uma etapa particular de desdobramento, pertence a seu próprio tempo e é prisioneira de suas limitações”. A tese de Hegel significa, pois, que a presença do Espírito é a integração das estações históricas do pensamento. O Espírito do presente “compreende em sua estrutura todas as instâncias anteriores”: “so ist hiermit schon gesagt, dass die gegenwaertige Gestalt des Geistes alle frühere Stufen in sich begreift”. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Para Hegel, o espírito do presente é a Presença do Espírito. Para Heidegger, o espírito do presente é a ausência do Ser. A marcha da filosofia é, para Hegel, um progresso dialético enquanto para Heidegger o caminhar do Pensamento Essencial é um regresso, “ein Schritt zurueck”, um passo atrás. Pois o Pensamento Essencial é a dinâmica da com-pertinência originária de ser e pensar. Nos vórtices dessa dinâmica a filosofia do Ocidente se revela como a força da metafísica cuja plenitude é o sistema de controle do real. O regresso é um passo que passa do sistema de controle à sua proveniência na estrutura onto-teo-lógica da metafísica, que, por sua vez, vive das vicissitudes de esquecimento da com-pertinência originária de ser e pensar. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto
Mas o que tem a ver a flora da flor com o cristianismo do povo? — Resposta: tudo! Sem ciência, até mesmo sem consciência, o povo é flor! Sabe recolher-se sempre no mais profundo mistério do Ser. É que o povo vive na fraqueza da ternura. Dele é a loucura da cruz e a fragilidade do mundo, que, no dizer do Apóstolo, são vigor e sabedoria de Deus. O povo não necessita do grandioso da filosofia nem da riqueza da ciência. O povo não precisa de sabedoria nem de poder. Já mora no infinito do finito. Sua casa é a mortalidade da vida! Desde sempre o povo se encantou pelos encantos do infinito que a voz da escola de samba cantou num carnaval passado: “vou m’embora, vou m’embora, eu aqui volto mais, não. Vou morar no infinito e virar constelação”! Aprendendo a pensar I: A Propósito do Cristianismo Popular