Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.
Da palavra Crítica , geralmente só costumamos ouvir os acentos negativos. Toda atividade de crítica , criticar e fazer crítica é logo entendida no sentido de corrigir: constatar e suprir erros e deficiências. É esse sentido de nosso modo comum de ouvir a palavra que temos de afastar do primeiro plano da Crítica Literária. Pois não corresponde nem ao significado etimológico nem à origem histórica da palavra nem tampouco à vigência, isto é, à função e o modo de ser da Crítica Literária. Etimologicamente, crítica provém do verbo grego krinein, cujo primeiro sentido é “separar para distinguir” o que há de característico e constitutivo. Essa separação distintiva se exerce, remontando à ordem dos fundamentos constituintes e por isso elevando-se a uma ordem superior, à ordem originária. O primeiro sentido de crítica é tão pouco negativo que indica o mais positivo do positivo: a posição do que é decisivo e determinante de todo positivo. Só secundariamente, como consequência dessa posição constitutiva, é que a palavra Crítica inclui a recusa do não-determinante, do não-decisivo e não-constitutivo. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Nesse sentido também se originou o uso da palavra na Estética da segunda metade do século XVIII. Nas discussões sobre a arte, a obra de arte e a atitude frente a elas, a Crítica estabelecia o decisivo, o constitutivo e definitivo do fenômeno estético em oposição aos demais fenômenos. Kant enriqueceu e aprofundou este uso com a trilogia: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Em sua vigência na Literatura, em sua função e modo de ser literário, a Crítica reflete a estrutura literária da existência no estruturar-se existencial da Literatura. A Literatura necessita da Crítica para tomar consciência de sua existencialidade enquanto estrutura da existência. No mais profundo de seu dinamismo, a Crítica Literária é a um tempo só tanto a consciência existencial da Literatura como a consciência literária da existência. Ao articular-se nessa dupla função, a Crítica Literária se faz crítica e se faz literária. Para se ver e sentir então o problema da Crítica Literária cumpre refletir sobre o exercício concreto destes dois momentos. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
A Crítica é literária, sendo Literatura, isto é, sendo arte. Para ser literária, tem necessidade de assumir o modo da arte. Ora, a arte chega a seu modo de ser na obra. A obra de arte é passagem obrigatória de todos os caminhos para a arte. Por isso o caminho que nos levará à arte da Crítica será também aqui a obra literária: uma poesia! Por exemplo, a poesia de Mörike, intitulada: Auf eine Lampe! “Para um candelabro”! A vantagem de uma poesia assim é fazer brilhar a nossos olhos o modo de ser da arte numa tensão com um outro modo de ser: o modo de ser do instrumento e utensílio. É uma obra literária sobre um candelabro, instrumento de iluminação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Essas reflexões nos dizem que o processo de instauração do mundo comporta sempre a edificação de uma obra, uma operação. Assim como a arte, a ação criadora do político, que funda um novo sistema de convivência, o comportamento do herói, que realiza um sacrifício transcendente, a reflexão do pensador que converte em marcha de pensamento a verdade da existência, sempre qualquer processo de instauração do mundo é a edificação de uma obra. É um primeiro resultado. O segundo se refere à Linguagem como dinamismo e potência da obra. Instituir originariamente um mundo é a força criadora da Linguagem. Toda Linguagem é articulação de um mundo em que se estrutura a existência na multiplicidade de suas manifestações. As diversas línguas traçam toda a história, as vicissitudes da Linguagem pela qual todos os povos se elevam a um mundo de presença humana que dá sentido a toda a sua existência. São assim maneiras que permitem a cada povo engrenar-se na História da Humanidade e tomar parte, dando a sua parte, na instauração do mundo humano. A obra de arte é a revelação do mundo da existência na força da Linguagem. Essa Linguagem assume na Literatura a forma de língua. Ser literária significa para a Crítica assumir a obra de arte na Linguagem das palavras. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Agora talvez esteja mais claro qual é o problema da Crítica Literária, onde reside toda a angústia do Crítico. É o problema de não ser arte literária, de não ser Literatura para ser apenas ciência da Literatura. É a angústia de criticar a arte literária com os critérios da filologia e da lingüística, da poética e da teoria. É a angústia de exercer apenas uma crítica científica sem ser principalmente a consciência literária da existência e a consciência existencial da Literatura. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
A consciência histórica moderna deve sua formação e desenvolvimento à consciência científica moderna. Esta se caracteriza por uma nova relação do homem com o mundo. “A natureza, escreve Dilthey, já não se lhe apresenta como uma criatura divina. O homem meteu-lhe as mãos para arrancar as “forças de suas formas”.’ Na formação dessa nova consciência entram três elementos essenciais: o cristianismo reformado que se funda na experiência humana da religiosidade cristã, a arte como processo de apreensão da realidade e a ciência, enquanto análise da experiência. Lutero, L. da Vinci e Galileu são os corifeus da nova consciência do homem moderno. O traço comum e unificador dessa tríplice estrutura é a autocerteza garantida pela experiência interna. Uma exigência de natureza crítica , que faz da consciência histórica moderna fundamentalmente uma consciência crítica tanto no tocante à realidade do mundo externo quanto no referente ao próprio processo histórico. A autoconsciência dessa historicidade se torna crítica no movimento espiritual que culmina em Carlyle, Ranke e Tocqueville. É aqui que a consciência histórica se dá conta de que toda a sua vida é uma objetivação de seu próprio desenvolvimento histórico. O resultado dessa tomada de consciência crítica é a superação mais radical do individualismo que em todas suas formas se funda numa consciência ingênua de introspecção. ” Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Entendida assim, como autoconsciência crítica da historicidade, a consciência histórica garante validez e firmeza universais à relação homem e mundo, solucionando a luta dos sistemas e superando a insuficiência dos conceitos de “traduzirem a conexão cósmica de forma convincente”, ao mesmo tempo em que aponta o homem como o fundamento da filosofia.” Nela desaparece a relatividade das diversas concepções de mundo em sua pretensão de darem respostas absolutas aos problemas da vida: “Vê-se assim que a luta entre os sistemas metafísicos descansa em última análise na própria vida. Na experiência da vida. Nas posições assumidas diante dos problemas da vida. Nestas radica a multiplicidade dos sistemas bem como a possibilidade de distinguirem-se diversos tipos. Cada tipo abarca conhecimento, julgamento ou avaliação da vida e prescreve certos fins a adotar”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Estabelecido o significado radical na estrutura vivência-compreensão para a consciência histórica, levanta-se o problema das condições de possibilidade de sua articulação nas ciências do espírito. É aqui que sente Dilthey a tarefa mais importante de seus esforços de filósofo. Na Crítica da Razão Pura, Kant apresentou a articulação das condições de possibilidades das ciências da natureza. Ora, em razão da diferença fundamental entre espírito e natureza a Crítica de Kant não serve para uma fundamentação das ciências do espírito. Para estas oferece Dilthey sua Crítica da Razão Histórica: “Devemos sair da atmosfera tênue e pura da crítica kantiana da razão para dar satisfação assim à índole bem diferente dos objetos históricos”. “O último problema de uma crítica da razão histórica consiste em saber… se a conexão experimentada, o valor, o significado, o fim experimentados na história, constituem a última palavra do historiador”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Dilthey não pode construir sua Crítica da Razão Histórica com os recursos do método transcendental. Tem que partir da própria vida em seu curso. Tem que tentar justificar a história historicamente por si mesma. A sua Crítica não poderá ser senão a investigação da crítica que a vida faz de si mesma em seu curso histórico. Para isso dispõe apenas das ciências do espírito que são as objetivações da vida no tempo. A missão da Crítica da Razão Histórica consiste em ressaltar e distinguir a estrutura das ciências do espírito, a fim de acompanhar o “fio condutor” que em seu decurso a vida deixou como justificação do saber humano a seu respeito.” Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
Numa leitura objetiva, ambiente diz atmosfera, o elemento em cujos limites a vida encontra condições e recursos para nascer, crescer e morrer. No ambiente da psicanálise se vive uma cissiparidade em que a geração da nova vida se dá num vaivém contínuo de posição, oposição e composição. De um lado, todos são cidadãos de dois mundos: um mundo teórico de modelos e técnicas, que abrange publicações, cursos, seminários, congressos, reuniões científicas e discussões de casos; e um mundo terapêutico de tratamento e clínica, que inclui settings, interpretações, transferências, atuações, reações, progressos, resistências, melhoras, regressões. De outro lado, todos falam duas línguas distintas: uma língua comum no mundo terapêutico e uma língua privada no mundo teórico. Muitas vezes, os discursos teóricos da língua privada contrastam nitidamente, pela ingenuidade crítica e pela insensatez epistemológica, com os discursos clínicos da língua comum, mesmo ao nível de simples conversas informais, onde a comunicação se faz sem grandes dificuldades. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Para uma crítica epistemológica a insensatez do discurso teórico da psicanálise é conseqüência de uma ingenuidade metodológica fundamental. Não há produção de objeto na psicanálise. Os casos são apresentados numa língua técnica que confunde observação com interpretação estilizada. A falta completa de métodos adequados para testar hipóteses impede qualquer produção epistemológica de objeto. O resultado são protocolos, abundantes em hipóteses explicativas, mas carentes de fatos testados. Em conseqüência, as divergências de interpretação clínica e de endereço teórico tendem sempre para um impasse epistêmico. Assim as diferenças entre uma intrepretação fálica de um dado material clínico e uma interpretação kleiniana, que o refere diretamente ao seio, permanecem sem saída. Não há meio de se decidir o impasse. A interpretação em causa fica tão aberta como a pronúncia inglesa de tomate. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Descobrindo que a neurose não é um sintoma, Freud transcende o universo dos fatos e cria para o discurso da psicanálise um novo universo, o universo do sentido. Um sentido não é o produto de causas mas a criação de um sujeito. A lógica e epistemologia do sentido vivem um outro jogo da linguagem. E é segundo as regras deste jogo que não pode haver distinção clara entre observação e interpretação. Só se exige clareza a respeito de quem está dizendo o quê. Por isso, se o discurso do fato pergunta em termos de “como” e responde em termos de causalidade-probabilidade, determinação-indeterminação, o discurso do sentido pergunta em termos de “por quê”? e responde em termos de criatividade na dependência. Esta diferença provém da linguagem em jogo. Pois nos discursos de todas as suas línguas a linguagem joga sempre com o animado e o inanimado. No jogo com o inanimado, o discurso discorre sobre a atividade-comportamento e fala de determinação-indeterminação. No jogo com o animado, o discurso recorre ao sentido da atitude e fala de identidade. As categorias de animado e inanimado são decisivas para o universo de discurso do sentido. É que a fronteira entre vida e não-vida marca os limites de nossa capacidade de identificação. Na identificação, sentimos o que um ser deve ter para viver. Na identificação, compreendemos a atitude e o sentir-se do ser vivo. A realidade das informações assim obtidas depende da capacidade de se tolerarem diferenças e, pela crítica da transferência, de se manter a identificação dentro dos limites da identidade. Dentro destes limites, a identificação nos proporciona informações que de outra maneira nos seriam inacessíveis. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Limitadas pela identidade, as relações de identificação estão sempre sujeitas às tempestades de transferências e projeções, que a angústia de onipotência-impotência gera, de acordo com a maior ou menor tolerância às frustrações. A crítica das transferências e projeções, de um lado, e o desenvolvimento correspondente da habilidade técnica, de outro, produziram pouco a pouco o pensamento do cálculo, a forma de relacionamento adequada para se lidar com o inanimado. Na impossibilidade da identificação e na angústia das frustrações se constroem outros caminhos de conhecimento. Por observação, por tentativa e erro, por experimento se descobre o que fazer com o inanimado, se determina para que serve, de que é feito, como manipulá-lo, transformá-lo, adaptá-lo. Em sua origem, a ciência é um perfeito pensamento, que calcula. Seu vigor mora na oficina e no laboratório, onde o cálculo demonstra toda a eficiência, não perde tempo com a espera do inesperado, onde não há tempo a perder com interpretações, onde não interferem as transferências da angústia. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
O pensamento, que calcula, não é, pois, um aperfeiçoamento do pensamento, que pensa o sentido. É todo um outro universo, com campo definido de referência, com modelos e técnicas exclusivas de processamento, com diferentes regras de operação, com epistemologia própria de discurso. Sem crítica , qualquer transplante de funções de um universo para outro gera discursos com formas características de insensatez. A utilização de modelos de identificação no universo dos fatos inventa espíritos, e por muito tempo o céu foi povoado de anjos com a missão de empurrar as estrelas. Por sua vez, a utilização de modelos do cálculo no universo do sentido inventa fatos ideológicos, e hoje o mundo está povoado de seres metafísicos, como colonialismo, capitalismo, imperialismo, comunismo. Assim como ontem se inventavam pessoas para empurrar constelações, sistemas de estrelas, assim também hoje se inventam sistemas de estrelas para empurrar pessoas. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise
Com simplesmente ser, a psicanálise está sempre em crise. A crise é crítica por ser clínica. Em crise, a psicanálise nos fala de outro Freud. De um Freud, que não conhecemos mas somos em tudo que de Freud temos consciência de saber. É que, na própria consciência de nossos conhecimentos, ele mostra o espelho do inconsciente e nos convida a ver o sol da clínica. Aprendendo a pensar I: Onipotência e Coisa em Si
Com o poder da consciência fragmentamos o espelho. Os fragmentos, não sendo abrangentes, nos facultam proceder por partes, na certeza crítica de assim podermos ver o sol da clínica. Mas, ao olharmos em cada fragmento, não podemos ver o sol. Só vemos nossa própria imagem. Ofuscados pelo poder de fragmentar o espelho, perdemos de vista a clínica. E todas as vezes que lhe desocupamos o lugar, encontramos em cada fragmento todo o espelho, a ofuscar-nos com o brilho uni-versal da clínica. Aprendendo a pensar I: Onipotência e Coisa em Si
A linha é a linha zero. Em contraste com os dados e fatos, os feitos e fados, com o cheio da ciência, o zero indica o vazio da nesciência. Pois é justamente lá, onde tudo se -esvazia de ciência e escorre para a nesciência, que corre a fronteira do pensamento. Neste sentido, o painel é fronteiriço. A linha da fronteira não é só crítica . É também clínica. Pois nela se decide se o movimento de transpor a linha finda numa ignorância arrogante ou se recolhe em novas possibilidades de saber e não-saber. Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia