Carneiro Leão – comunicação

Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.

Costumamos distinguir a vida pré-científica da atitude científica. Nessa distinção a vida pré-científica se nos afigura mais ampla, mais rica e variada. É tecida de comportamentos e relações, que se entrelaçam numa infinidade de setores: no campo das atividades práticas, do uso e confecção das coisas; no terreno da comunicação religiosa com poderes divinos; na esfera da convivência social com os outros homens; no plano de experiências estéticas da beleza, e em muitos outros. Antes de qualquer ciência a vida humana já é dinamizada pelo jogo dos chamados fenômenos existenciais: do amor e concorrência, do trabalho e luta pelo poder, do respeito aos imortais e medo da morte. A vida pré-científica tem profundeza e superfície. Conhece a banalidade do dia-a-dia e as horas de sua grandeza. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Há séculos se vem operando gradativamente uma revolução radical em todos os parâmetros decisivos da história. O homem se vê cada vez mais transplantado numa outra realidade. É o transplante do pensamento que calcula. Dele nasce esta nova posição do homem no mundo e para “com o mundo que designamos com o título de moderno: idade moderna, ciência moderna, homem moderno, mundo moderno. Na voragem da modernidade impera o objeto, cuja objetividade ministram e administram a ciência e a técnica planetárias. Tudo é processado em reserva de controle e de domínio. A natureza já não é senão um gigantesco reservatório, a fonte dos recursos para a indústria moderna. O homem se reduz a um sistema fechado de energia que funciona tópica e economicamente. A linguagem se iguala às vicissitudes de língua e discurso que uma coordenação de eixos, sincrônico e diacrônico, vai destilando. A comunicação equivale às trocas de codificação e descodificação que, fazendo circular as informações, assegura um nivelamento assintótico dos repertórios. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Numa leitura objetiva, ambiente diz atmosfera, o elemento em cujos limites a vida encontra condições e recursos para nascer, crescer e morrer. No ambiente da psicanálise se vive uma cissiparidade em que a geração da nova vida se dá num vaivém contínuo de posição, oposição e composição. De um lado, todos são cidadãos de dois mundos: um mundo teórico de modelos e técnicas, que abrange publicações, cursos, seminários, congressos, reuniões científicas e discussões de casos; e um mundo terapêutico de tratamento e clínica, que inclui settings, interpretações, transferências, atuações, reações, progressos, resistências, melhoras, regressões. De outro lado, todos falam duas línguas distintas: uma língua comum no mundo terapêutico e uma língua privada no mundo teórico. Muitas vezes, os discursos teóricos da língua privada contrastam nitidamente, pela ingenuidade crítica e pela insensatez epistemológica, com os discursos clínicos da língua comum, mesmo ao nível de simples conversas informais, onde a comunicação se faz sem grandes dificuldades. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

E não obstante, a pretensão de uma vitória definitiva do princípio racional da luz, de um império eterno do Olimpo de Zeus, que alimenta a religião e a mitologia dos primeiros tempos, vai servir de base para a fundação da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, quando o pensamento trágico dos pensadores dos séculos VI e V chegar gloriosamente ao fim nas grandes Tragédias. A filosofia surge então como ocaso do Oriente e aurora do Ocidente na história grega. Vespertinos do Dia Ocidental, já não sentimos com tanta facilidade a profundeza de revolução que significou a filosofia para toda a existência dos gregos. Estamos plantados num solo, cuja solidez devemos precisamente à ruptura metafísica no curso do pensamento e da poesia. O que dessa ruptura prorrompeu, como estrutura e modelo de mundo, como princípio e técnica de conhecimento, como gramática e lógica de linguagem, como norma e conceito de valor, nos determina mais radicalmente do que costumamos suspeitar. Seguimos na esteira da metafísica ainda quando não queremos nada com filosofia e nos entregamos de corpo e alma a fazer guerra para podermos respirar o ar poluído pelos derivados de petróleo, ouvir os altos decibéis de uma civilização motorizada ou absorver as massagens dos meios eletrônicos de comunicação de massa. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

À dificuldade inerente a toda citação se vêm ajuntar outras, provenientes das condições culturais da antiguidade. As obras antigas não são livros impressos. São volumina, no sentido literal do termo, isto é, manuscritos enrolados de peso e tamanho consideráveis para o manuseio. Cedo se espalhou o costume de substituir os grossos volumina por compendia, extratos e resumos, muito mais fáceis de compulsar. Assim, não era necessário ler a obra original. Bastava citar os compêndios, conhecidos desde o tempo de Hipias e produzidos em larga escala depois da fundação de Alexandria. Eram considerados substitutos adequados dos originais. Acresce ainda que o sistema de comunicação cultural vigente era predominantemente oral. Os antigos ainda não pertenciam à galáxia de Guttenberg. Geralmente as citações eram feitas de memória. As deficiências deste método de citação aparecem quando se pode comparar duas ou mais citações de um mesmo fragmento. É o caso do fragmento 6 de Empédocles citado por Hipólito de maneira bem diferente de Sexto Empírico e Aécio. Felizmente, o próprio Hipólito sentiu a infidelidade da memória e acrescentou à citação as palavras de aviso: légõn hõde põs, “dizendo, de alguma maneira, assim”. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário

No modo cotidiano de ser só vemos na linguagem o instrumento. Uma técnica de comunicação , que nos apresenta, já prontas para o uso, as distinções com que operamos nas situações concretas da vida. Essa linguagem cotidiana não é a essencialização originária da linguagem. É apenas a forma mais frequente de sua presença. A compreensão do Ser, que aqui se articula, entretanto, não é apenas ingênua e primitiva. Uma longa história de pensamento metafísico a precedeu, interpretando instrumentalmente a linguagem na lógica e gramática da tradição. Hoje operamos de modo inconsciente com distinções, que, num supremo esforço de reflexão, foram criadas e estabelecidas pela metafísica. Nos quadros dessa interpretação se movem os recursos e as regras lingüísticas, que hoje determinam as qualidades do estilo. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Não vivemos apenas na era da comunicação . Vivemos sobretudo a virulência de uma comunicação planetária. Hoje tudo não só se comunica. Em tudo, que se comunica, age o vigor de uma comunicação bem determinada. De todos os teóricos e técnicos desta comunicação Marshall McLuhan é o único que procura apreender-lhe a força histórica na Saga do pensamento. Sua presença tem sido uma constante provocação. Seus temas ocupam espaços de jornais, reportagens de revistas, programas de televisão. Sua interpretação do mundo moderno é discutida, combatida, celebrada. Só não é pensada nas dimensões de diálogo que lhe abre o pensamento. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

A primeira tese é fundamental: as relações de comunicação constituem a estrutura de sustentação e desenvolvimento de todo o processo da história. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

Na perspectiva do sistema de comunicação estamos ligados ao mundo pelos sentidos. Tudo que imaginamos, construímos ou descobrimos, resulta de uma elaboração longamente sentida de nossa sensibilidade. A tecnologia é a expressão fundamental desta elaboração. Toda técnica constitui uma projeção extensiva de uma função humana, embora nem sempre seja tão visível como a relação martelo-mão. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

O livro não é um amplificador da vivência, é um dique com o ladrão sangrando racionalidade. Na dinâmica da comunicação o livro é um meio de informação, um veículo de mensagens, assim como o avião, o navio são veículos de transporte. De que se compõe o livro? De signos exclusivamente visuais para uso exclusivamente individual. A qualquer instante pode-se abrir, fechar, ler, reler o livro. Milhões de pessoas podem tê-lo simultaneamente em mãos. O livro é um “meio quente” de comunicação , pois fornece uma informação explícita e saturada. O livro só é capaz de mobilizar uma única faixa, a relação olho-cérebro. O livro é uma abstração e um promotor de individualismo. Assim a pessoa que sabia ler era encarada com certa desconfiança nas comunidades analfabetas. É que o alfabetizado fugia da comunidade, isolava-se desenvolvendo por conta própria uma determinada forma de inteligência. O livro produziu uma civilização mecânica, individualista, fragmentada, racional, porque apelou exclusivamente para a relação olho-cérebro. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

A televisão possibilitou globalizar a convivência da conversa. Um mundo vivo, global, instantâneo, que cobre numa unidade todas as faixas da vivência, se torna presente por toda parte, dando condições de participação a todos. Os telespectadores americanos, que assistiram ao assassinato de Lee Oswald, tomaram parte no acontecimento. É que a verdadeira mensagem, aquilo que realmente nos influencia, não é o conteúdo do meio, mas o próprio meio de comunicação . A mensagem é a massagem. Decerto que a mensagem e o conteúdo existem e agem na comunicação , mas sempre subordinados ao intermediário. A maneira como a mensagem é recebida, decide do nível e da carga de comunicação . Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

Hoje se inicia uma transformação radical nas relações de comunicação . Termina a era mecânica, montada sobre o livro, e começa a era eletrônica, montada na televisão. Por quê? — Porque a comunicação conhece “pontos críticos”, cuja superação inverte o processo. É a lei da reversibilidade dos “meios superaquecidos”. Quando a difusão da informação tende a igualar-se à velocidade da luz, a distância é abolida de chofre. Já não há necessidade de centro emissor. O centro está por toda parte. O mundo tornou-se uma aldeia global. Hoje marchamos de uma civilização mecânica para uma civilização integrada. Readquirimos o contacto direto, a possibilidade de. vivenciar a totalidade de modo integral e instantâneo. É a “implosão”, que começa tanto no plano individual como no plano coletivo. A experiência dessa implosão impõe uma ascese de desmontagem de nossos hábitos milenares de viver e relacionar-se. Pois ela reivindica o homem em sua totalidade, envolvendo-o de maneira global, e não mais linear. A modalidade de apreensão total do mundo repercute sobre todo o comportamento físico e mental do homem. Novo diálogo tem início entre homem e tecnologia. Uma nova história começa. A eletrônica já não é a projeção de um órgão ou função. É a projeção de toda a vivência. Para McLuhan não é preciso ir longe a fim de buscarmos as origens da sociedade de consumo. Consumimos para nos vingar. Compensamos a sensação, de que nada somos em nosso trabalho, por uma afirmação exterior, que no fundo não nos satisfaz. É por isso que a sociedade de consumo está condenada a perder sua velocidade para dar lugar à aldeia global onde se reintegram todos os fragmentos provocados pela explosão do alfabeto. Aprendendo a pensar I: Civilização Escrita e Cultura de Massa

Este pensar não é um fazer. É um deixar fazer-se. Ele pensa enquanto deixa ser. E é somente por isso que um pensar assim é o Hermes da Revelação. Pois deixa a revelação ser Revelação — o mistério de Deus no vigor da Linguagem de salvação — e não uma comunicação de sentenças sem evidência de conteúdo. É o Hermes da teologia. Pois deixa a teologia ser teologia — a história do mundo no mistério da Linguagem de Deus em Cristo — e não um dicionário de definições sem ordem alfabética. É o Hermes da hermenêutica. Pois deixa a hermenêutica ser hermenêutica — a Linguagem de mistério da existência — e não a teoria e método de tradução de uma comunidade lingüística para outra. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Para o pensamento objetivo, quando alguém faz uma revelação, comunica alguma coisa que não consta do repertório de conhecimentos mas está no código de articulação do receptor. Ora, a revelação do Mistério não é nem um meio nem um instrumento nem um sistema de comunicação . Revelar não é transmitir palavras ou conteúdos de conhecimento, com ou sem evidência. Revelar é o acionar-se do Misterio como o solo em que se plantam as raízes de todo estruturar-se da existência histórica. Pouco conhecimento e muita jovialidade é o que faz o pensamento pensar radicalmente, isto é, articular-se com a Linguagem de seu Mistério. A jovialidade é a radicalização do pensamento radical, pensando a revelação a partir do Mistério. É que a radicalização não depende do pensamento. É o pensamento que depende dela. Pois o pensamento só pode pensar a revelação de acordo com o destino de jovialidade que lhe envia o Misterio. Este envio de jovialidade decide as interpretações históricas do pensamento. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Mas não foi somente o mistério que ficou à margem desta racionalização do homem. Também a revelação foi progressivamente reduzida a uma comunicação divina que garantisse a verdade dos mistérios. Ora, como será possível comunicar a alguém discursos misteriosos sem lhe conceder o vigor e a vigência do próprio mistério, em cuja força ele poderá então ouvir a misteriosidade dos discursos? Em sua raiz originária a revelação não é uma comunicação de verdades misteriosas e sim o processo de acionar-se do próprio mistério. Somente no dar-se do mistério é que se satisfazem as condições de possibilidade para uma revelação de verdades misteriosas. Uma comunicação sobre o mistério pressupõe sempre a doação do mistério que se comunica. Pois uma comunicação é apenas uma conscientização da doação já feita e nunca um substituto provisório, um sucedâneo temporário da realidade sobre que por enquanto só se discorre e fala. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

A solidariedade entre o entendimento da revelação, como comunicação verbal, e o entendimento do mistério, como discurso misterioso, nos mostra a pressuposição básica de toda esta teologia. Tanto num como no outro caso, trata-se sempre de discursos que de per si pertencem à razão discursiva mas devido à pouca discursividade da razão humana são ininteligíveis e incompreensíveis por enquanto. É o primado da razão tal como o construiu o ideal de conhecimento e de homem dos séculos XVIII e XIX, orientado no fundo pela essência de pesquisa das ciências naturais. O racionalismo condenado é, pois, o racionalismo acanhado e menor da razão humana. Pois o mistério é o racionalismo acabado e supremo da razão infinita. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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