Carneiro Leão – ciência

Esta de-cisão metafísica não é um presente para sempre passado nem se reduz a simples fato de um passado encoberto pela poeira de dois mil e quatrocentos anos. É mais do que objeto de curiosidade historiográfica. Mais do que uma relíquia no museu do Ocidente. É um passado tão vigente que constitui a fonte donde vivemos hoje, a tradição, que nos sustenta. Seu vigor Histórico promoveu as transformações, as experiências e as interpretações de quase 25 séculos. Deu lugar a motivos orientais. Concebeu o Cristianismo. Provocou o Humanismo, o Esclarecimento e a Ciência Moderna. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

a) Dicotomia entre ciência e vida. Ciência é exclusivamente ciência exata, isto é, hipotético-dedutiva ( ciência real) e axiomático-dedutiva ( ciência formalizada). Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

Hoje a tempestade nos chega, pelo vigor planetário da Linguagem, na civilização da ciência e da técnica. Nos vórtices da planetariedade toda diferença entre Pensamento e Ciência é uma função de referência. Pois sempre de alguma maneira pertence a toda ciência uma semântica. Semântica é a articulação de fatos referenciais com fatos referenciados que uma sintaxe possibilita e exerce. Destituído de semântica, o Pensamento se apresenta como alguma coisa de estranho em nosso tempo e sua tempestividade. É por esta estranheza, por ser daquelas causas, cujo destino é nunca poder encontrar ressonância semântica em seu próprio tempo que o pensamento de Heidegger é intempestivo. Daí toda a incompreensão por parte da ciência e da filosofia. Pertence à atualidade de seu pensamento ser incompreendido pela exatidão de qualquer cálculo. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador

Por muito repetir-se já se vulgarizou dizer que vivemos na era atômica. O que significa, porém, chamar uma época da história da humanidade de era atômica? À primeira vista exprime o domínio planetário da ciência . A energia do átomo, descoberta pela ciência e controlada pela técnica, constitui o sistema de forças, que doravante determinará a construção da existência e o curso da história. Numa progressão sempre crescente, o homem moderno se vê cercado cada vez mais dos produtos e artefatos da ciência . A ponto de o físico alemão Werner Heisenberg (Das Naturbild der heutigen Physik, Hamburgr 1955, p.14) escrever que num futuro não muito distante os aparelhos e instrumentos técnicos serão partes integrantes do homem, como a teia é parte da aranha e a concha do caramujo. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Esse, porém, é apenas o sentido de superfície, não o significado profundo do domínio da ciência . Não é essa a razão de existirmos na era atômica nem é por isso que a idade moderna se chama a época da ciência e da técnica. Esses títulos, de que hoje em dia se usa e abusa com tanta irreflexão, possuem um significado eminentemente histórico-ontológico. A nossa era é científica em sua essencialização. Vivemos na idade da ciência , porque é a ciência que determina o ser e a verdade do real. Porque a ciência é o meio em que se faz a experiência e se entende o sentido de tudo aquilo que é. O elemento, em que se decide o destino da história humana. A ciência é hoje a forma, que informa toda a nossa compreensão e avaliação da realidade, independente e qualquer que seja nossa atitude frente a esse ou àquele resultado científico. Quer atribuamos à ciência valor humano, quer lho neguemos, quer vejamos nela apenas algo indiferente para os valores, a ciência determina sempre o sentido do ser que somos e do ser que não somos. Decide da concepção da verdade em que vivemos, nos movemos e existimos. É que a informação científica não constitui um simples efeito, uma mera consequência dos resultados e conclusões científicas. É antes o espaço de essencialização da própria ciência , que continua aumentando o vigor de seu predomínio ainda quando alguns de seus resultados, tidos como contrários a ideais dos vários humanismos, são impugnados cientificamente pelas respectivas ideologias. Pois então a ciência não faz senão consolidar-se, de vez que o mecanismo de seu vigor tanto mais se afirma quanto mais impera de modo velado e implícito. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Na Froehliche Wissenschaft, gaia ciência , diz Nietzsche que a filosofia vive nas geleiras das altas montanhas, tendo por única companhia o monte vizinho, onde mora o poeta. No país da ciência , a filosofia aparece como uma montanha solitária, envolta numa luz marginal. Por isso toda vez que ela desce da montanha, tem que exibir o passaporte de suas credenciais. Tem que justificar o direito de sua aparência. E há mais de dois mil e seiscentos anos, sempre que a filosofia apresenta suas credenciais, se repete uma cena tragicômica. À luz de seu espectro ela se descobre a si mesma no fundo de cada ciência , enquanto o olho indagador da ciência , que, vendo tudo, não vê a si mesmo, é cego para seus próprios fundamentos. Por isso mesmo só pode rir das credenciais da filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Na idade da ciência e técnica essas risadas atingiram um número sem conta. Todas elas, porém, se fundam na constatação simples e convincente, que já Rogério Bacon assim exprimiu no Opus Maius: “Si bene inspicis, philosophia nullius est utilitatis”: “Se bem se examina, a filosofia não é de utilidade alguma”. Com ela não se pode compreender nada. Na Einführung in die Metaphysik diz Heidegger que essa constatação, muito em voga nas esferas dos homens de ciência , é a expressão fiel da verdade. É tão verdadeira, que quem procurar mostrar o contrário e quiser provar que com filosofia se pode fazer alguma coisa, lhe presta um des-serviço. Pois contribui para aumentar ainda mais a confusão reinante, de que se pode avaliar a filosofia segundo os critérios práticos com os quais se julga da utilidade de automóveis ou da eficácia de antibióticos! Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Devido ao modo estranho de seu vigor a filosofia se vê relegada, na idade da ciência mais do que em qualquer outra idade, a uma posição marginal. Por isso se torna imperiosa a necessidade de se discutirem as relações entre filosofia e ciência . Pois só discussões dessa natureza poderão preparar o espírito do homem moderno para a grande decisão. A decisão sobre o sentido de sua existência, que toda época histórica sempre de novo impõe ao homem finito. Na era atômica se trata de uma decisão que interessa ao significado existencial-ontológico da ciência : será a ciência a suprema instância do saber humano ou haverá um outro saber mais originário em que se lançam os fundamentos, se traçam os limites e dessa maneira se assegura à ciência ‘ sua verdadeira eficácia? Para o destino histórico do homem moderno será necessário um tal saber originário ou poderá ser ele dispensado e largamente substituído? — É isso o que a presente conferência não diz mas procura dizer em tudo que diz ao discorrer sobre a posição da filosofia na idade da ciência . ; Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

É sempre um esforço penoso e muito difícil o acesso à ciência , apesar de toda a ajuda dos professores. O processo de aquisição da ciência descreve uma trajetória de crescentes graus de dificuldades: desde o saber pré ou extra-científico da criança até o saber profundo e transformado do especialista. Numa ciência temos que ser introduzidos. De antemão não já estamos em seus domínios. Não nascemos com nenhuma ciência inata. O homem pelo simples fato de ser homem ainda não é cientista. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Pois a ciência é uma possibilidade historicamente concretizada do homem, em primeiro lugar do homem ocidental. Essa possibilidade realizada no Ocidente começa hoje a alongar-se e cobrir o mundo inteiro, informando com sua forma todos os povos. Sem dúvida, não é um mero acaso. , Não se trata de um processo, cuja evolução poderia ter sido sustada. Estamos diante de um destino histórico. Mas donde , provém esse destino? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Costumamos distinguir a vida pré-científica da atitude científica. Nessa distinção a vida pré-científica se nos afigura mais ampla, mais rica e variada. É tecida de comportamentos e relações, que se entrelaçam numa infinidade de setores: no campo das atividades práticas, do uso e confecção das coisas; no terreno da comunicação religiosa com poderes divinos; na esfera da convivência social com os outros homens; no plano de experiências estéticas da beleza, e em muitos outros. Antes de qualquer ciência a vida humana já é dinamizada pelo jogo dos chamados fenômenos existenciais: do amor e concorrência, do trabalho e luta pelo poder, do respeito aos imortais e medo da morte. A vida pré-científica tem profundeza e superfície. Conhece a banalidade do dia-a-dia e as horas de sua grandeza. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Desse mundo pré-científico brotam os motivos que conduzem por caminhos cruzados à origem e constituição da ciência . Das preocupações imediatas pela subsistência e meios de defesa, da sabedoria mágica dos sacerdotes, do espírito curioso de povos aventureiros, da ociosidade dos senhores, da admiração de naturezas contemplativas, da dúvida de espíritos céticos e de tantas outras fontes surge a ciência . Toda genealogia de uma ciência nos diz sempre da possibilidade de o homem existir sem ciência . Hoje, porém, na era atômica, não se trata de uma possibilidade ao alcance de nosso arbítrio. Por uma simples decisão de vontade não nos poderemos livrar da situação histórica em que de fato existimos. O caminho da ciência ocidental já não pode ser refeito nem há meios de escaparmos a nosso destino. Não obstante, a gênese e constituição da ciência e sua cultura revela um caráter episódico, que a torna, num sentido profundo, essencialmente temporal e contingente. O que, sem dúvida, não significa que ela seja um produto do acaso ou que nela não operem forças originárias da existência humana. Todavia é possível separar humanidade e ciência . A necessidade da ciência é uma contingência histórica. O homem não precisa do espaço da ciência para desdobrar sua existência. E isso não vale apenas dos tempos arcaicos, para os períodos sem história do nomadismo primitivo. Vale principalmente para as grandes culturas não-ocidentais. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Talvez haja aqui lugar para uma objeção: depois que o homem, encontrando o conhecimento, tomou posse consciente de sua racionalidade, após ter descoberto em si a razão e na razão a liberdade, será mesmo que ele poderia deixar de fazer uso de suas possibilidades? Não teria então de aperfeiçoar, aprofundar e sistematizar seus conhecimentos? Não deveria tentar desvendar os segredos das coisas, perscrutar os mistérios do tempo e espaço, numa palavra, não teria de construir a ciência ? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Sem a menor dúvida! Mas teria ele que seguir os moldes da ciência ocidental? Será essa a única forma possível de racionalidade? A única maneira de afastar a escuridão da animalidade? O único modo de instalar-se luminosamente no mundo da realidade e promover à luz do Sentido do Ser a verdade dos entes? Que concepção da verdade e que interpretação do Sentido da realidade torna possível a essencialização da ciência ocidental, impelindo-a a expandir-se e exercer-se num vigor planetário? São essas perguntas que interessam não à gênese histórico-ôntica e sim à gênese histórico-ontológica da ciência . Para esclarecermos com a devida profundidade a objeção, deveríamos discutir suficientemente essas questões. Não poderemos fazê-lo aqui.” Pois ainda não dispomos de todos os elementos. Por isso tomaremos um atalho. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

A expressão “mundo da vida pré-científica” é um conceito introduzido por Edmundo Husserl, o fundador da moderna fenomenologia. Apesar de todas as iluminações eidéticas, uma estranha obscuridade sempre o acompanha. À primeira vista julgamos compreendê-lo numa ideia clara e distinta. Pré-cientificamente, isto é, antes da ciência , vive o homem da vida prática. Ocupa-se de negócios e afazeres, sem se preocupar com as questões e problemas da ciência . Isso ele deixa para os sábios, inventores, técnicos e cientistas das várias especialidades. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Mas as coisas não são assim tão simples. Se ele frequentou uma escola, já perdeu a inocência pré-científica. Já entrou em contacto com o mundo da ciência , ainda que tenha sido de um modo primário e inocente, aprendendo apenas a ler, escrever e contar. Se não frequentou nenhuma escola, sabe ao menos que a infinidade dos instrumentos e produtos de seu mundo são descobertas e invenções da ciência . De há muito o mundo, em que vivemos, deixou de ser a natureza intacta e virginal do selvagem. Já nem é mais a paisagem bucólica, cultivada pela habilidade camponesa e artesã. É a natureza violada pelas invenções industriais, dominada pelos recursos da técnica. A cada passo encontramos documentos, que testemunham esse domínio da ciência . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Isso significa: as ciências reagem sobre a esfera de onde nasceram, entulhando-a de seus produtos. E não apenas na forma de instrumentos técnicos. Em nosso tempo do papel impresso, da voz transmitida, da imagem projetada a vulgarização de todos os produtos da cultura já assumiu proporções grotescas. Em formas e fórmulas populares os teoremas da ciência , mesmo das ciências mais difíceis e perigosas, invadem o mundo pré-científico e o sugestionam com o lixo cultural de uma informação pela metade, muitas vezes funesta. Assim, se não vivemos diariamente dentro da ciência , também não vivemos em sentido rigoroso fora dela. A nossa vida pré-científica já é determinada pela ciência . Já nos achamos em seu poder, quando nela procuramos entrar. Nunca estamos inteiramente do lado de fora. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

O que significa essa presença inevitável do homem moderno na esfera de domínio da ciência ? Participa realmente da vida científica pelo fato de viver às voltas com os produtos da técnica, por repetir de modo semi-inconsciente as linguagens e formulações de uma literatura popular? — Ninguém ousará afirmá-lo com seriedade. Isso todavia não destrói o fato real e inconteste de já não viver mais inteiramente fora da ciência . De já ter perdido a inocência do selvagem. De existir imerso numa tradição cultural, que inclui uma longa história da ciência . Nesse sentido todos os homens da era atômica possuem sempre uma ideia, quando nada, uma ideia de papel do que seja ciência . Se bem se analisa essa imersão histórica do homem, desfaz-se por si mesma a contradição, em que à primeira vista parecemos cair. Dizíamos, de início, que o homem pode, mas não deve necessariamente existir na paisagem da ciência . A ciência não é um fenômeno existencial constitutivo do homem enquanto homem. Não possui a mesma categoria do trabalho, amor e domínio. E precisamente por isso é que o acesso à ciência é sempre um problema de solução difícil. De outro lado, porém, a análise de nossa situação histórica parece revelar o contrário. Já não há nenhuma esfera inteiramente livre do poder científico. A chamada vida pré-científica está toda imbuída de ciência . Trata-se contudo de uma simples aparência. A presença universal da ciência é uma determinada condição histórica, nunca uma estrutura existencial necessária. Trata-se de um fato, que, assim como todo “factum” é uma forma de “facere”, é sempre feito. Um feito, sem dúvida, de peso irresistível, instaurado por determinada configuração das forças históricas, impulsionado por decisões originárias da liberdade, mas mesmo assim, e por ser assim, um feito episódico. O que não nos dá a possibilidade de prever-lhe o futuro, de predizer-lhe profeticamente o fim, antes no-la nega em princípio. Dá-nos apenas a autoconsciência de que o homem, por ser simplesmente homem, não deve exercer sua humanidade na esfera da ciência , como tem de exercê-la na atmosfera do trabalho, do amor, da luta. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Nesse sentido o desejo de saber é um fenômeno central da existência, constitutivo do homem como homem. Mas não se deve identificar desejo originário de saber com ciência ocidental. Esta é apenas uma configuração histórica e sempre limitada daquele. Na era ‘atômica, em que impera a informação da ciência , o saber constitutivo da existência vê sua dinâmica revolucionária ameaçada de cassação pela racionalidade científica. Trata-se, porém, de um esforço semelhante ao do Barão de Münchhausen, tentando arrancar-se do pântano pelos cabelos. Pois a ciência , longe de ser um fenômeno existencial necessário, já é em si mesma uma articulação histórica do próprio saber originário. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Toda trama de relações nunca se compõe apenas de dois termos. Pressupõe antes um terceiro fator, que serve de espaço comum à articulação das divergências e convergências entre os termos relacionados. No caso de ciência e filosofia é a existência humana, que, em seu desejo originário de saber, serve de ponto comum de referência. A identidade e diferença, a convergência e divergência entre ambas, se articulam em função da atitude do homem frente a elas. Na terra dos homens a ciência , não constituindo uma exteriorização essencial da existência, se afirma numa presença de fato, historicamente condicionada. Isso, a ciência . E a filosofia, como o homem se com-põe com ela em sua existência? Existirá ele de per si numa situação extra-filosófica ? ou enquanto existe, in-siste necessariamente no espaço da filosofia? Ou só edifica seu ser dentro da filosofia em virtude da mesma tradição cultural, que lhe impõe também a ciência ? Haverá uma genealogia da filosofia de uma vida pré-filosófica, como há uma genealogia da ciência da vida pré-científica? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

A primeira divergência, que opõe filosofia e ciência , diz respeito à essencialização de ambas. Como quer que se relacione com a existência humana, a filosofia nunca, e isso em razão de sua própria essência, é segura de si mesma, como a ciência . Embora conheça em seus fundamentos crises de crescimento, o movimento da ciência é sempre linear e contínuo: as conquistas das gerações passadas se conservam e completam nas novas conquistas. Uma ciência pode ser cega para seus fundamentos de possibilidade, sua transparência reflexa pode esquivar-se em princípio a seus processos de investigação, de uma coisa, porém, ela tem sempre certeza;,de seu objeto. A ciência sempre se reconhece como ciência . Ela duvida de mil coisas, só não de si mesma. É que, como tal, a ciência nunca é objeto de investigação científica. Quando um físico investiga o que é a física, não empreende uma investigação física. Se é, como pró-físico ou como metafísico, não interessa discutir agora, em todo caso não é como físico, que pergunta pela essência da física. Pois em sua essência a física não é uma coisa, que se possa observar num espectroscópio de massa ou experimentar num bico de Busen ou calcular com equações maxwellianas. Do mesmo modo, num electroencefalograma ou numa mielografia o neurologista pode encontrar um foco epilético ou um carcionoma medular, nunca, porém, a medicina, como ciência . Assim, a impossibilidade de uma investigação científica da ciência , como tal, é condição de possibilidade de toda ciência . Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Essa luz estranha, que a filosofia irradia de si, não resulta, porém, de uma deficiência de conhecimentos. Não é, por sabermos pouca coisa, mas por sabermos muita coisa demasiado externa da filosofia, que encontramos dificuldade em pensar filosoficamente. Hoje conhecemos toda uma galeria historiográfica de grandes filósofos, um museu doutrinário, em que há concepções, opiniões e interpretações para todos os gostos, classificadas em rótulos precisos: realismo, idealismo, socialismo, criticismo, existencialismo, a lista de todos os ismos não têm fim. Se é verdade que em sua presença a filosofia não é uma ciência , não é menos verdade que em sua ausência o sistema dos ismos compõe uma ciência da pior espécie, a ciência de catalogar as doutrinas filosóficas, e a intitula de história da filosofia, muito embora de história e filosofia mesmo só haja o título. Pois saber filosofia não é apenas saber as sentenças dos filósofos, o que eles pensaram e disseram. É saber pensar e dizer o que lese quiseram pensar e dizer. Essa é para Kant, que certamente sabia filosofia, a máxima de toda reflexão filosófica. Máxima, que ele recordou a Eberhart e consortes com as palavras: “.. .muitos historiadores da filosofia… não percebem a intenção dos filósofos, por desprezarem a chave de toda interpretação filosófica, a essência da própria razão, e por isso não conseguem ver, por entre o que os filósofos disseram, o que quiseram dizer”. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

As mais das vezes esse acúmulo de conhecimentos periféricos só nos cega para a presença extraordinária da filosofia na existência. A fim de identificá-la, não basta conhecer a historiografia filosófica e abstrair dos grandes pensadores um traço que seja comum a todos. Desde o fim da antiguidade nos foram transmitidos seis conceitos abstratos de filosofia: 1. conhecimento das: coisas enquanto são; 2. conhecimento das coisas divinas e humanas; 3. preocupação com a morte; 4. assimilação de Deus segundo as possibilidades do homem; 5. arte das artes e ciência das ciências; 6. amor à sabedoria. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

No primeiro livro da Metafísica Aristóteles esboça uma graduação das dimensões em que se articulam as possibilidades da sabedoria. Num primeiro grau a percepção sensível, “aisthesis”, se estende a todos os seres vivos. Localizada no espaço e situada no tempo a sensibilidade percebe apenas o que lhe é dado “hic et nunc”. Alguns seres vivos, porém, os animais, retém o conteúdo de suas percepções, integrando-os na síntese da memória, “mneme”, e nesse sentido já sabem mais, são mais sábios do que os vegetais. Os homens, além de sensibilidade e memória, dispõem ainda de experiência, “empeiria”, e pela experiência se lhes torna familiar uma prática no trato com as coisas, o que os gregos chamavam “techne” e que melhor do que “técnica” traduz a palavra portuguesa “perícia”. Da “techne” procede num plano superior a reflexão sobre os princípios constitutivos da existência, a “episteme”, cuja tradução por ciência é no mínimo desviante. Por fim coroando, como chave, toda a abóbada da sabedoria, a suprema forma de saber, o esforço pela “sophia”, a filosofia. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Na ciência tudo é mais claro e definido. Toda ciência apresenta um estado atual de progresso. Resultado de uma longa história de desenvolvimento, da colaboração de gerações inteiras de cientistas, documentado em obras estandardizadas, o estado atual se dinamiza nas pesquisas dos laboratórios e no ensino de institutos especializados. Constando de um acervo de teoremas estabelecidos, projeta o sistema das questões em que se desdobra o progresso das investigações. Não significa estado final e definitivo mas apenas corte transversal numa marcha de desenvolvimento. Desse estado atual é que se determina o acesso e aquisição de uma ciência . No fato da cultura basta o esforço do estudo para o indivíduo introduzir-se no movimento da ciência . Mas o homem pode, não deve fazê-lo, de vez que ao ser de sua hominização não pertence necessariamente o desdobrar-se da racionalidade no estilo da ciência ocidental. E é por isso que o acesso à ciência , embora difícil e penoso, é sempre fundamentalmente possível. Toda introdução repete de alguma maneira a genealogia da ciência da vida pré-científica. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Ao homem pertence por necessidade de natureza a compreensão do Ser! Embora repouse imóvel nas preocupações imediatas da vida, nela se constrói o arcabouço das categorias em que as coisas re-velam sua presença no mundo dos homens. Na compreensão do Ser se estrutura o horizonte, em que, antes de toda experiência, isto é, a priori, se edifica a totalidade do real. No movimento da filosofia, então, toda essa con-juntura de categorias a priori do Ser como que acorda e se põe em atividade constituinte. Libertam-se os conceitos originários para ser novamente questionados em sua originariedade: o que é uma coisa e o movimento, ser e aparência, o que é essência e existência, realidade e possibilidade, história e sociedade, o que é a ciência e filosofia, o que é a natureza, a liberdade, o mundo, o homem, Deus? São questões velhas de milênios. O que possuem de sempre novo é apenas a necessidade histórica de serem investigadas sempre de novo. São o tipo das questões que Sócrates tomara para tema de suas discussões maiêuticas com os atenienses. Refere Diógenes Laércio que um famoso sofista, ao voltar de uma viagem de ensino pela Ásia Menor, encontrou Sócrates no Agora de Atenas, perguntando a um sapateiro: “ti esti tó hypódema?”, o que é isso, um sapato? E o interpelou, indagando: “ainda está ai, Sócrates, dizendo a mesma coisa sobre a mesma coisa?” — Sócrates o encarou, — de certo com o olho que tinha demais — e respondeu: “é o que sempre faço. Você, porém, que é tão sábio, certamente nunca disse a mesma coisa sobre a mesma coisa!” Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Na existência o vigor desse apelo mora num pressentimento do próprio Ser, cuja originariedade, lançando-nos no campo de forças da filosofia, a subtrai a nosso controle. É por isso que a filosofia faz conosco tudo que somos, enquanto com ela nós não podemos fazer nada. Por se estruturar no jogo de referência e diferença entre Ser e homem, a filosofia se essencializa no paradoxo existencial. Aquele paradoxo, de que se serviu Nietzsche para mote de seu Zarathustra: “Ein Buch für alie und keinen”: “um livro para todos e para ninguém”! O mesmo vale da filosofia. É o destino de todos os homens e de nenhum. De todos, enquanto articula o fundamento em que o homem planta os alicerces de sua existência. De nenhum, enquanto, força de todo esforço, ela se esquiva em princípio a qualquer vontade de domínio do homem. Na filosofia se re-vela toda a potência e toda a impotência humana. Em seu espelho se reflete toda a envergadura da finitude. Onde o homem encontra palco para demonstrações de força, onde anda às voltas com os produtos de seu gênio dominador, lá descem sobre a filosofia as sombras do esquecimento. Um esquecimento que a era atômica potência ao máximo. Nenhuma outra idade experimentou e trabalhou tantos entes mas também se esqueceu tanto de perguntar pelo ser dos entes. Nenhuma outra época julgou tantas verdades mas também se incomodou tão pouco com a essência da verdade. Nenhum outro tempo fez tamanho progresso na conquista dos mundos sem, no entanto, preocupar-se com a questão sobre a mundanidade do mundo. O alarido da ciência , o roncar da técnica, enchendo-nos os ouvidos de esquecimento do Ser, entorpece-nos as forças do espírito, deixando a filosofia adormecida numa paisagem de cogumelos atômicos. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

Geralmente se opõe pressentimento a saber, ora colocando-o abaixo ora acima, em todo caso fora do saber. No vigor de sua essencialização, porém, o pressentimento do Ser não é uma coisa abaixo, acima ou fora do saber originário da existência. É o espaço de articulação, a esteira de movimento, o campo de exercício do próprio saber. Ele apresenta, no sentido de tornar e fazer presente, o modo em que o Ser, apropriando-se da existência, a instaura originariamente. Nunca existimos sem ele como nunca dele nos poderemos apoderar. Da revelação do Ser o homem não se pode nem esquecer nem recordar inteiramente. Pois é no horizonte esticado pelo bruxulear intermitente de esquecimento e recordação do Ser que se edifica a existência. Mesmo no supremo esforço de suas virtualidades, o espírito humano não consegue prendê-lo nas malhas de seus conceitos. Nunca nos poderemos instalar inteiramente numa claridade sem sombras. A pretensão de um saber absoluto, sonho de toda metafísica do espírito, é um sonho que terminou na era da ciência no pesadelo do átomo. O pensamento só leva realmente a sério a finitude na medida em que integra em sua reflexão a finitude da verdade do próprio ser. Na era atômica, em que a técnica e a ciência desenvolvem um vigor planetário, a missão da filosofia não é corrigir ou substituir-se à ciência . É apenas ser a catarsis de uma autoconsciência. Na reflexão sobre as condições de possibilidade da própria ciência ela recorda que todo conceito humano é sempre uma configuração histórica da Verdade do Ser, em cujo dinamismo se articulam as manifestações existenciais das várias épocas da humanidade. Na terra dos homens não há previdência nem providência escatológica. O homem nunca é o autofalante do absoluto. De antemão não sabe aonde vai chegar, nem mesmo se vai chegar. É que não nos podemos despir de nossa finitude, como de um manto vergonhoso, para revestirmo-nos da clareza meridiana de um saber sem sombras. O homem não é um Deus mascarado que nas vicissitudes históricas da existência fosse desmascarando sua divindade. A filosofia permanecerá sempre a reflexão finita do mais finito dos entes, por ser o único cônscio de sua finitude. Assim, os filósofos serão sempre os aventureiros que se afastam da terra firme dos entes e se lançam nas peripécias da história em busca da verdade do homem. Os argonautas do Ser. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência

A originalidade de nosso século está em haver deslocado o problema das relações entre história e verdade para o próprio diferir e referir da diferença e referência de temporal e intemporal, de relativo e necessário, de processo e validez, de ato e conteúdo. Assim a validez formal de uma verdade não somente não exclui mas até inclui necessariamente um horizonte histórico em que ela se possa verificar, isto é, em que se possa exercer e articular. Pois a correção lógica de uma conformidade e concordância pressupõe sempre como condição indispensável de sua possibilidade que se manifestem previamente os termos da relação. Ora uma manifestação em que se revela uma essência, se des-cobre um ser, se des-venda um sentido, se expõe um mundo, não é possível nem compreensível senão como processo histórico. Esse aprofundamento da perspectiva reflexiva transformou o problema da história e da verdade. A ciência da história, a historiografia, não institui nem atinge o vigor originário da história, a historicidade, em cujo fundamento os fatos históricos se constituem justamente como históricos, o homem pode fazer experiências históricas da história e levar uma vida histórica. Assim como a ciência da verdade, a lógica e gnoseologia, não alcança a promoção originária da verdade, a manifestação de sentidos, em cuja força se elabora a concordância entre conhecimento e realidade e o homem pode pro-duzir a verdade das coisas. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

A consciência histórica moderna deve sua formação e desenvolvimento à consciência científica moderna. Esta se caracteriza por uma nova relação do homem com o mundo. “A natureza, escreve Dilthey, já não se lhe apresenta como uma criatura divina. O homem meteu-lhe as mãos para arrancar as “forças de suas formas”.’ Na formação dessa nova consciência entram três elementos essenciais: o cristianismo reformado que se funda na experiência humana da religiosidade cristã, a arte como processo de apreensão da realidade e a ciência , enquanto análise da experiência. Lutero, L. da Vinci e Galileu são os corifeus da nova consciência do homem moderno. O traço comum e unificador dessa tríplice estrutura é a autocerteza garantida pela experiência interna. Uma exigência de natureza crítica, que faz da consciência histórica moderna fundamentalmente uma consciência crítica tanto no tocante à realidade do mundo externo quanto no referente ao próprio processo histórico. A autoconsciência dessa historicidade se torna crítica no movimento espiritual que culmina em Carlyle, Ranke e Tocqueville. É aqui que a consciência histórica se dá conta de que toda a sua vida é uma objetivação de seu próprio desenvolvimento histórico. O resultado dessa tomada de consciência crítica é a superação mais radical do individualismo que em todas suas formas se funda numa consciência ingênua de introspecção. ” Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

A descoberta fundamental de Dilthey em suas análises do curso da vida nas ciências do espírito foi a tensão dialética que constitui a dinâmica de toda vicissitude histórica. Exprimiu-a na coesão de vivência e compreensão. Não se trata de dois fatores autônomos mas de um único processo. Do campo ou sistema de forças consubstanciai à dinâmica da própria vida. Nem basta vivência sem compreensão nem pode haver compreensão sem vivência no vigor vital da história. O desenvolver-se da compreensão histórica não é possível senão “acompanhado da consciência filosófica de como surge a vivência do que acontece, a conexão intuitivo-conceptual do mundo humano histórico-social”.” A historiografia, se não se basear na vivência, não apreenderá a história só com abstrações conceituais: “Não é possível estabelecer os princípios da ciência histórica em proposições abstratas que expressam equivalências, porque, de acordo com a natureza de seu objeto, têm que descansar em relações fundadas na vivência. Na vivência se concentra a totalidade de nosso ser. Essa vivência, a reproduzimos na compreensão. Aqui temos em primeiro lugar o princípio da afinidade dos homens entre si”. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey

A pergunta decisiva agora é saber o que é ensinar e aprender. Ao ouvir a pergunta e sentir-lhe a necessidade, poderemos facilmente pensar que a resposta só pode ser dada pela ciência . Mas só poderemos pensar assim, se e enquanto em nosso empenho de perguntar e desempenho de responder, não nos colocarmos, nós mesmos, em questão. Pois, questionando a questão fundamental, de que a existência é o penhor de todo empenho e desempenho, a ciência não é senão uma determinada elaboração e exercício de ensinar e aprender. Mas então o que há com ensinar e aprender que pode não ser explicado somente pela ciência ? — A Linguagem grega é a passagem obrigatória de todos os caminhos do saber e da cultura ocidental. Como chamavam os gregos o movimento de ensinar e aprender? Chamavam com um só radical: mantháno. Assim, máthesis é o ensino e a aprendizagem, tanto no sentido do que é aprendido e ensinado, como no sentido do processo de ensinar e aprender. Mathémata, o que pode ser ensinado e o que pode ser aprendido; e mathetés, o aluno, aquele que ensina aprendendo; o professor, aquele que aprende ensinando. Pela língua dos gregos, portanto, a Linguagem nos diz que ensinar e aprender toma a realidade num determinado aspecto. E o problema é precisamente saber qual será este aspecto. Quando se ensina e se aprende uma coisa, em que perspectiva e sob que ângulo se toma a realidade? A resposta é que então se toma a realidade enquanto pode ser aprendida e pode ser ensinada. Aprender é um modo de tomar posse: de apossar-se e de apropriar-se. Mas em que nível e em que acepção? Pois podemos tomar uma pedra e colocá-la numa coleção. Nas bulas dos remédios se lê muitas vezes: tomem-se três drágeas ou seis gotas. É que tomar diz vários modos de apossar-se, apropriar-se e dispor de uma realidade. Dentro dessa variedade, qual será o modo de tomar que exerce o aprender? Segundo o jogo da Linguagem, não podemos propriamente aprender uma realidade, por exemplo, um veículo. Do veículo só podemos aprender o uso, o valor, o funcionamento, a fabricação etc. Em todo caso, temos aqui uma indicação e um primeiro aceno sobre o modo de tomar próprio do aprender. Aprender é um tomar em que se apropria e se dispõe do uso de alguma coisa. Esta apropriação se dá pelo treino e exercício. Mas, por outro lado, treinar e exercitar-se é apenas uma espécie de aprender. Nem todo aprender é treinar. E o que mais se aprende num veículo além do uso e funcionamento? Pelo que se toma e como se toma a realidade, quando dela aprendemos alguma coisa? Aprendendo a pensar I: Aprender e Ensinar

Não se trata de um propósito moderno de hoje. É um propósito velho de milênios. O que possui de sempre novo é apenas a necessidade de se propor sempre de novo, com a novidade de ser cada vez a primeira vez. A novidade, que a velhice milenar do pensamento nos põe a pensar hoje, como a primeira vez, é o sentido do cálculo, dominante na ciência e na técnica planetária de nossos dias. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

A falta de pensamento vive numa fuga. Na fuga da angústia de pensar. É tão angustiante pensar que não queremos nem ver nem reconhecer a indigência de pensamento. Chegamos até a negar-lhe a possibilidade de presença. Como é possível fugir de pensar numa época como a nossa, na era da ciência e da técnica? Como se pode falar hoje em indigência de pensamento, quando por toda parte se multiplicam os sucessos do saber e cresce o interesse pelo conhecimento? O que não nos falta hoje é pensamento. Em nenhum outro tempo se planejou com tantas perspectivas, se investigou tão fartamente, se investiram tanta energia e recursos em pesquisas, como hoje em dia. Onde está a falta de pensamento? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Há séculos se vem operando gradativamente uma revolução radical em todos os parâmetros decisivos da história. O homem se vê cada vez mais transplantado numa outra realidade. É o transplante do pensamento que calcula. Dele nasce esta nova posição do homem no mundo e para “com o mundo que designamos com o título de moderno: idade moderna, ciência moderna, homem moderno, mundo moderno. Na voragem da modernidade impera o objeto, cuja objetividade ministram e administram a ciência e a técnica planetárias. Tudo é processado em reserva de controle e de domínio. A natureza já não é senão um gigantesco reservatório, a fonte dos recursos para a indústria moderna. O homem se reduz a um sistema fechado de energia que funciona tópica e economicamente. A linguagem se iguala às vicissitudes de língua e discurso que uma coordenação de eixos, sincrônico e diacrônico, vai destilando. A comunicação equivale às trocas de codificação e descodificação que, fazendo circular as informações, assegura um nivelamento assintótico dos repertórios. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Hoje, no entanto, ainda nos é dado um mundo trancado em sua auto-suficiência produtiva, onde o pensamento do sentido se retrai. Os discursos se entregam cada vez menos ao silêncio da fala. As coisas vão-se despindo de serenidade à proporção em que se revestem de velocidade. Tudo se torna fugaz, transitório, substituível. Só o cálculo, indiferente a qualquer empenho, permite diferir sempre mais e sempre novas diferenças de indiferença. E, no entanto, mesmo nesta paisagem sem sentido, a viagem do “e” ainda fala do sentido, ao colocar Filosofia e Psicanálise no curso da ciência e da técnica. Por quê? — Porque neste caso se torna cada vez mais inevitável a pergunta: O que acontece com a psicanálise de viagem pela paisagem do cálculo onde se recolhe hoje todo o vigor de nossa modernidade? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Resposta: Nos discursos teóricos e nos percursos clínicos, a psicanálise é um recurso constante ao sentido que nos ocorre no silêncio dos próprios cálculos diferenciais da ciência e da técnica. Nestas condições, pensar o sentido da psicanálise já não será apenas examinar experiências clínicas à luz das teorias psicanalíticas, nem somente criticar as teorias analíticas à luz de experiências clínicas. Pensar o sentido da psicanálise será, sobretudo, deixar-se questionar nas teorias e nas experiências clínicas pela provocação fundamental do “e”, que continuamente convoca ao silêncio do sentido tanto o discurso das teorias como o percurso das clínicas. Este pensar não é um fazer: nem o fazer de um meta-discurso, nem o fazer de um meta-percurso. É simplesmente um deixar fazer-se silêncio nos afazeres próprios da teoria, da clínica, do questionamento. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Uma segunda consequência é o lugar epistemológico atribuído à própria história da psicanálise. O recurso, que sempre de novo se faz, à literatura histórica, não encontra paralelo em nenhuma ciência , somente na teologia, na filosofia e na poética. Pois em qualquer ciência , por mais extensas que sejam as investigações precedentes, por maiores que tenham sido as descobertas, é sempre indispensável submetê-las a um processo controlável de invalidação, a fim de poderem ser protocoladas, como teorias, e usadas na explicação de novos fatos. Este recurso à história, como instância epistemológica, levou um epistemólogo inglês a uma observação irônica sobre o estatuto epistêmico da psicanálise: “Muitas vezes as teorias psicanalíticas parecem demasiado com uma antiga mansão que uma viúva piedosa se empenha em conservar tal qual era no dia da grande perda”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

O que Freud descobriu não foi uma nova hipótese dentro do universo de discurso da medicina de seu tempo, para explicar a origem e o desenvolvimento das neuroses. Não se tratava de uma nova etiologia que explicasse a neurose pela frustração sexual. Com uma tal explicação, a psicanálise não teria mobilizado tanta resistência e ansiedade, nem ontem nem hoje. O que Freud descobriu foi um novo universo de discurso. Neste novo universo todo discurso era revolucionário, por mais comuns que fossem a gramática e o vocabulário utilizados, por mais correntes que tenham sido os modelos e as regras empregadas. É este novo universo que lhe possibilitou formular, com a língua vigente na ciência de seu tempo, as ideias revolucionárias sobre a dinâmica inconsciente. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Para a medicina, um sintoma é um fato. Ora, sendo sempre feito, todo fato resulta de causas. É um efeito. Por isso, para o novo universo, a neurose não é um sintoma mas um sentido. Todo sintoma pertence ao universo de discurso dos fatos e é como tal que se torna objeto de pesquisa e tratamento de ciências fatuais. A medicina é uma ciência de fatos. Quando um médico diz que a medicina só conhece o homem da sola dos pés até aos cabelos da cabeça, está dizendo, sem dúvida, uma verdade. A questão é apenas saber sobre que está dizendo uma verdade. Decerto, não está falando sobre a verdade do homem, mas a partir dela sobre a verdade da medicina. Pois a verdade sobre que se fala nunca é a verdade a partir da qual se fala. Do contrário já não haveria nem homem nem medicina para falar. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Limitadas pela identidade, as relações de identificação estão sempre sujeitas às tempestades de transferências e projeções, que a angústia de onipotência-impotência gera, de acordo com a maior ou menor tolerância às frustrações. A crítica das transferências e projeções, de um lado, e o desenvolvimento correspondente da habilidade técnica, de outro, produziram pouco a pouco o pensamento do cálculo, a forma de relacionamento adequada para se lidar com o inanimado. Na impossibilidade da identificação e na angústia das frustrações se constroem outros caminhos de conhecimento. Por observação, por tentativa e erro, por experimento se descobre o que fazer com o inanimado, se determina para que serve, de que é feito, como manipulá-lo, transformá-lo, adaptá-lo. Em sua origem, a ciência é um perfeito pensamento, que calcula. Seu vigor mora na oficina e no laboratório, onde o cálculo demonstra toda a eficiência, não perde tempo com a espera do inesperado, onde não há tempo a perder com interpretações, onde não interferem as transferências da angústia. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Que apelo de pensamento nos surpreende neste texto de Bion? Trata-se de uma condenação da ciência acusada de despersonalizar o homem e reduzi-lo a um autômato incapaz de relacionar-se com a vida de seus objetos? É uma denúncia da psicose de angústia do cálculo que resultaria de uma ansiedade de arriscar uma identificação com a morte na vida? Somos convidados a arremeter contra a ciência e a técnica para podermos viver? Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Entender assim é unidimensionar ciência , técnica, psicose, cálculo, vida, morte, pensamento, psicanálise. Unidimensionar é correr apenas numa dimensão, seguindo o trilho de uma só bitola. Ora, enquanto discorremos numa bitola só, seja na do cálculo seja na do sentido, ainda não pensamos o bitolamento de nossos discursos. Presos à oposição de uma ou outra alternativa, ainda não chegamos à composição do pensamento. Pensar é compor oposições. No texto de Bion nos advém o apelo desta composição, o apelo de pensarmos a pertinência de cálculo e sentido. É o convite para encontrarmos na própria fraqueza e indigência de pensamento a festa e a fecundidade do sentido. Assim como para ser psicótico, o psicótico não é só psicótico, assim como para ser ciência , a ciência não é só ciência , assim como para ser técnica, a técnica não é só técnica, assim também para não ser só psicótico, o psicótico tem de ser psicótico, para não ser só ciência , a ciência tem de ser ciência , para não ser só técnica, a técnica tem de ser técnica. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Para nós, filhos precoces do pensamento, tardos em pensar, os modelos e técnicas, as teorias e métodos do cálculo nos concernem no próprio sentido de nossa existência. Por isso sempre dizemos “sim” e “não” tanto ao cálculo, como ao sentido. Ao concordarmos e para concordarmos com o cálculo, somos acordados por um sentido incalculável. Nesta atitude os modelos e as teorias deixam de ser apenas ciência e técnica para virem a ser o envio de um sentido, que, retraindo-se, nos atrai. A transformação radical, operada em nossos relacionamentos pela modernidade, já não nos ameaça de morte. Aceitamos nossa mortalidade, como o dar-se de um sentido, que reivindica de novo todas as nossas possibilidades com a novidade de uma primeira vez. Se não sabemos o que nos concerne na transitoriedade de nosso mundo, se o sentido do predomínio do cálculo se retrai, é na angústia deste não-saber e deste retraimento que somos provocados a uma crescente libertação pela espera, na própria aceitação do cálculo, de um sentido inesperado. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

Assim a aceitação da ciência e a espera do sentido se completam e, completando-se, nos abrem a possibilidade de morarmos num mundo transitivo, oferecendo-nos a solidez de um novo solo de crescimento. É a viagem do “e”, em que aqui e agora nos envia o encontro de filosofia e psicanálise. A aceitação da ciência e a espera do sentido nos encaminham no caminho da modernidade, em cujo seio, de um modo inesperado, nos são novamente restituídas as palavras pensadas de Nietzsche: “é preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela”. Aprendendo a pensar I: Filosofia e Psicanálise

A linha é a linha zero. Em contraste com os dados e fatos, os feitos e fados, com o cheio da ciência , o zero indica o vazio da nesciência. Pois é justamente lá, onde tudo se -esvazia de ciência e escorre para a nesciência, que corre a fronteira do pensamento. Neste sentido, o painel é fronteiriço. A linha da fronteira não é só crítica. É também clínica. Pois nela se decide se o movimento de transpor a linha finda numa ignorância arrogante ou se recolhe em novas possibilidades de saber e não-saber. Aprendendo a pensar I: Psiquiatria e Filosofia

2. Não é possível pensar o pensamento dos primeiros pensadores gregos só com os recursos da ciência e da filosofia. Toda historiografia já é sempre uma filosofia da história, quer o saiba ou não. Uma investigação de pensamento, que não pretender negar–se a si mesma como pensamento, tem necessariamente de ser uma restauração da mesma empresa. “Mesma”, no entanto, não diz aqui igual. Diz idêntica nas vicissitudes de mundos diferentes. Quem na interpretação de um pensamento se ativer exclusivamente aos textos e se limitar apenas ao sentido objetivo, destruirá precisamente o que constitui o vigor de seu esforço de pensar. As palavras e os textos são função do pensamento, como este é função do que, provocando a pensar, o torna possível como pensamento. Não há outra maneira de se interpretar um pensamento do que pensá-lo nas relações de identidade e diferença com a coisa de suas próprias virtualidades. Apreender-lhe o vigor Histórico será sempre um esforço de abrir, através do diálogo, horizontes diferentes para um novo principiar do mesmo mistério. Por isso a História do pensamento é uma tarefa exclusiva de pensadores. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

3. No século VI a religião, a política, a educação gregas exercem determinada consciência da poesia e mitologia. Houmeros tem Hellada pepaideuke. Prisma e espelho, nesta consciência se refletem e analisam as peripécias de verdade e não verdade da existência grega. Denunciando a miopia da consciência vigente, os primeiros pensadores se lançam a pensar reciprocamente as diferenças de religião e política, de educação e habilidade, de poesia e mito pela identidade do pensamento, pensando a com-pertinência de ser e pensar. Para nós, filhos do petróleo e da técnica, tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por que? – Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia, temos os olhos tão consumidos pelas utilidades que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, mas sobretudo porque, quando pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência . Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência , a técnica, o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda, nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não se poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é o útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que tijolo e cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável, caso já esteja acertado que crescer é aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado, o que é o homem. Realmente, pensar é contra-producente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Só não devemos entender o trágico no sentido filosófico da tradição. Neste sentido, tragédia é desgraça, a queda das alturas, a transformação súbita ou paulatina da glória em sofrimento. Trágico é o abandono desesperado do homem às forças da natureza, à vontade dos deuses, à fatalidade do destino. Onde impera a desolação, onde não há salvação humana possível, há tragédia. Apesar de fundamentais diferenças, os mistérios de Eleusis, a razão filosófica, a pregação do cristianismo, o poder da ciência , o progresso da técnica, a força do trabalho, a sociedade sem classes aceitaram este sentido de trágico e procuraram dar cobro à tragédia da condição humana com um evangelho de salvação. A situação de Jó, sentado num monturo de esterco a raspar as chagas do corpo, não é trágica. Jó não é um aniquilado. Vive da fé no Senhor: “O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor”. Em sua atitude de confiança não há tragédia. Tudo que lhe parece sem saída, possui um desígnio de salvação na sabedoria, na bondade e na justiça de Deus. Sempre que se crê numa salvação seja da parte da religião ou da filosofia, seja da parte da ciência ou do trabalho, seja da parte do progresso ou da sociedade, a existência perde os acentos trágicos, apesar de todo sofrimento, de toda desventura, de todas as lutas. Nenhuma dor é tão desesperada, nenhuma desgraça é tão desolada que já não haja salvação. O sentido filosófico de tragédia se orienta pelo homem. Restringe-se a determinada linguagem da condição humana. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

O que assim nos é dado, livra-nos também da arbitrariedade no esforço de pensar-lhes a originariedade de pensamento. Pois o que hoje nos é dado, como pro-vocação para pensar, é a filosofia ocidental na forma da ciência moderna. Os recursos da filologia clássica, da historiografia literária, da linguística e arqueologia nos possibilitam recuperar os fragmentos dispersos nas vicissitudes da tradição. Os caminhos da ciência constituem uma via em que se torna acessível a Historicidade da história. Seguindo o modelo de pesquisa da ciência , as diversas investigações submetem os documentos conservados a um processamento que visa a constatar, analisar, aproveitar e interpretar as fontes, para assim assegurar e estabelecer os textos originais. É o processo conhecido com o nome de crítica das fontes e dos textos. Não se trata de simples relato das fontes nem de mero levantamento dos textos. Todo o esforço converge para tornar objetiva a Historicidade. Na história, porém, só é objetivo o que se deixa comparar, uma vez que, na comparação de tudo com tudo, se chega a uma explicação. Por isso também a possibilidade de comparação vale como modelo de objetividade histórica. O alcance das pesquisas só se estende até onde vai a comparação, base da explicação que processa em objetividade a história. Sendo incomparável, o único, o simples, o original, em uma palavra, o extraordinário na história permanece inexplicável e, como tal, fora da história ou, quando não é explicitamente excluído, é então explicado como exceção. Neste tipo de explicação, o extraordinário é reduzido ao ordinário e, desta maneira, eliminado da história. E não há alternativa para as pesquisas historiográficas, enquanto explicar supuser comparação, visando à objetividade, e pesquisa significar explicação. Porque a ciência histórica objetiva a história numa estrutura de explicação, exige e impõe como processo de objetividade a crítica das fontes e dos textos. As pesquisas historiográficas computam o por-vir pelos modelos de objetividade do passado, processados explicativamente no presente. Nas programações da computação historiográfica não há futuro, por se destruírem as condições de advento do inesperado. Pois o inesperado também é esperado. Só não pode ser computado. É o que nos recorda o Frag. 18 de Heráclito: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso”. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

5. Para, nos caminhos da ciência , chegarmos à via da Historicidade, temos de aprender a pensar no meio do próprio des-espero da ciência que, não tolerando esperar, se atropela na impotência de seu poder em alcançar o mistério do pensamento. Um maior conhecimento crítico dos textos estabelecidos, uma explicação mais objetiva dos contextos sociais não nos ajudam a pensar o pensamento dos primeiros pensadores, se todo este esforço científico não tiver por pre-texto um diálogo a partir da coisa do pensamento. Sem o pre-texto de pensar, os recursos da ciência se tornam uma luz que tanto mais obscurece quanto mais esclarece. Pois pretender explicar o pensamento de um texto pela comparação com outros textos equivale a procurar esclarecer a veracidade de uma notícia de jornal, conferindo o maior número possível de exemplares da mesma edição. Mas o obscurecimento da ciência não provém de desleixo ou falhas nos métodos das pesquisas científicas. Deve-se ao abismo da con-juntura em que o mistério do pensamento envia a via Histórica do Ocidente. Por isso se impõe sobretudo questionar o próprio poder da ciência em sua impotência de pensar. É o que nos proporciona unia hermenêutica originária. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

O verbo, hermeneus, significa trazer mensagens. O hermeneos, o mensageiro, pode ser posto em referência com Hermes, o mensageiro dos deuses. Ele traz e transmite a mensagem do destino que trama as vicissitudes da história de homens e deuses. Nem toda interpretação é uma hermenêutica. Somente a que descer até o vigor do mistério que estrutura a história. Na hermenêutica, a interpretação procura, retornando-lhe à proveniência, recuperar o vigor originário do pensamento. Originário, porque foi a redução deste vigor que deu origem à filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, de quem a ciência é uma transformação Histórica. Nesta perspectiva, o problema da ciência não é apenas um problema de epistemologia. A verdade da ciência não é apenas um resultado entre outros resultados ou o conjunto de todos os resultados. É inseparavelmente o vigor do mistério e o vigor da verdade. O pensamento procura levar a sério a radicalidade de sua errância e sente no estrangeiro a nostalgia da pátria. Não rejeita a ciência com a onipotência de quem rejeita o bárbaro e primitivo. Para pensar, o pensamento sente a dependência de uma pro-vocação de sua coisa. Aceita sua decadência na filosofia e na ciência como uma outra infância, como um novo principiar da identidade do mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Um pensamento originário é a coragem de descer às raízes das próprias possibilidades de pensar. Um pensamento originário é um pensamento radical. Procura interpretar os modos de ser da realidade, restituindo as estruturas de suas diferenças à identidade do mistério. O modo de ser, que nos apresenta como presente, não é originariamente um determinado presente cronológico. É tão antigo como a história. Algo, que é e sempre foi como é, por mais que se recue no tempo, é reconduzido ao vigor de um destino que estrutura a dimensão radical do Ser e por isso remonta para além de toda memória historiográfica. É a partir deste diapasão que nos fala o pensamento originário. O que é e como é o espaço-tempo de todas as coisas nas diferenças de seus modos presentes de ser é pensado num pensamento re-velador da identidade no mistério das dicotomias de ser e não ser, de movimento e permanência, de uno e múltiplo, de aparência e verdade. O propósito desta hermenêutica não é corrigir ou substituir-se à ciência . Nem mesmo é o diálogo pelo diálogo mas exclusivamente o que no diálogo se faz linguagem: a identidade que misteriosamente reivindica, de modo diferente, a nós modernos e aos gregos antigos, por ter aviado a aurora do pensamento no Dia do Ocidente. É na viagem deste Dia que o pensamento dos primeiros pensadores se faz originário. Originário não diz, portanto, uma determinação cronológica nem indica uma explicação diacrônica do modo de ser ocidental. Originária é a aurora em que a própria escuridão do Ser se dá em sempre novas vicissitudes de sua verdade, ora como pensamento ora como filosofia, ora como cristianismo ora como modernidade, ora como ciência ora como mito, ora como técnica ora como arte, ora como planetariedade ora como marginalidade, mas sempre em qualquer ora, tanto outrora como agora, só se dá enquanto se retrai como mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário

Nesta pressuposição reside a única mas também a deficiência fundamental da investigação de H. Cherniss, como se vê da seguinte caracterização: “Um dos métodos favoritos de Aristóteles é a tendência de desenvolver os antecedentes necessários ou as consequências necessárias de uma sentença antiga assim como de reconstruir o escopo original da doutrina em discussão e o sentido por ela visado”. Aristóteles não se propõe extrair a perspectiva originária do pensamento antigo nem apreender o significado pretendido pelo antigo pensador. Seu propósito é apenas descobrir o sentido filosoficamente destinado de uma doutrina, tirando-lhe as consequências que o avio de identidade do pensamento lhe envia nas diferenças entre as vias do princípio e os des-vios do ocaso. O que hoje como propósito se impõe ao pensamento é pensar nas diferenças entre o pensamento originário e o pensamento filosófico e suas decorrências (a ciência , a técnica, a poluição etc), o mistério da identidade no movimento da própria diferenciação histórica. Neste propósito nos valem mais os testemunhos de filósofos que pensam do que testemunhos de qualquer outra fonte, que não pensa. É o sentido filosófico do conselho dado por Hegel a seus ouvintes nos primeiros decênios do século XIX. Por não pensar o que faz, quando trata dos testemunhos de Aristóteles, é que Cherniss nega a existência de uma interpretação aristotélica e equipara o primeiro livro da Metafísica a toda passagem semelhante encontrada em qualquer lugar. Aprendendo a pensar I: Fontes de Acesso ao Pensamento Originário

A reflexão sobre a situação de nossa existência revela a consciência de uma unidade e de uma interrupção histórica. Sentimo-nos viandantes de um único Dia Histórico, que se estende do sol nascente na aurora grega de Homero ao sol poente na era atômica. Temos uma consciência nítida de nossa ruptura com a tradição e da diferença entre a manhã e a tarde da História Ocidental. Assim qualquer investigação se insere hoje necessariamente na época da técnica e da ciência . Época da ciência não é, para dizer com Kant, uma generatio aequivoca. Não nasceu por geração espontânea ex nihilo sui et subiecti, como diriam os aristotélicos latinos. Pertence a uma tradição milenária, da qual é uma transformação histórica. Quem hoje se empenha num problema filosófico, não pode impedir de achar-se no fim de jornada da grande tradição grega. Pois a metafísica grega não é algo, que num tempo foi, e agora já não é mais. Não se trata de um presente para sempre passado. É uni pretérito ainda hoje presente no vigor e no império da ciência e da técnica. E não só no sentido de que o homem moderno evoca e faz reviver por meio de reconstruções historiográficas o passado de sua história, mas no sentido existencial de constituir o próprio fundamento de seu modo de ser moderno. Heráclito e Parmênides, Platão e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes, Kant e Hegel, Marx e Nietzsche estão presentes, embora transformados pelo dinamismo de seu próprio princípio, no cérebro eletrônico, do qual depende hoje a segurança do Capitalismo e do Socialismo. A consciência dessa ruptura na unidade de uma tradição determina a situação de nossa existência, que impõe ao pensamento moderno a problemática central de suas reflexões. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

4. O Lugar da Introdução à Metafísica: A obra apresentada agora em tradução portuguesa se enquadra dentro do pensamento de Heidegger na passagem do primeiro para o segundo movimento. Como as Preleções de Hegel são indispensáveis para a compreensão de suas obras sistemáticas, assim também o presente curso de preleções é imprescindível para se penetrar na oscilação dialética da superação da metafísica no pensamento de Heidegger. Escrita em 1935, a Introdução à Metafísica descreve o espaço de movimento da superação, dando os passos decisivos do retorno às origens do esquecimento do Ser da metafísica. Retomando o conteúdo do escrito, Vom Wesen der Wahrheit (Da Essencialização da Verdade), conferência pronunciada já em 1930, Heidegger mostra como as raízes mais profundas do mundo moderno se foram implantando, através do processo de constituição histórica, num esquecimento sempre mais acentuado do Ser. A metafísica é o fundamento em que se edifica toda a civilização Ocidental. A tecnocracia desenfreada, o império. da ciência , a estetificação da arte, a fuga dos deuses, a massificação do homem, a organização planetária, a disposição da natureza, os estados totalitários, a despotencialização do espírito, todas essas manifestações do mundo ocidental são criações e obras do predomínio da metafísica. O esquecimento do Ser não é um episódio da vida intelectual de filósofos. É o destino histórico da existência do Ocidente, cuja máxima virulência moderna constitui um apelo. O homem da era atômica, ator e vítima de uma Época sem memória para o Ser, é constantemente provocado a recobrar essa memória, que lhe dará as forças para instaurar um Novo Dia Histórico. A Noite Longa, que a experiência da História de Hölderlin sente iniciar-se com os tempos modernos, é o espaço de restauração das forças do Ser para o amanhecer de uma outra época. Assim a Introdução à Metafísica é a preparação de uma superação, que não substima o que o homem do Ocidente tem pensado e construído. Visa ao contrário recuperar o Sentido do Ser necessariamente esquecido no destino da tradição histórica. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Com efeito o vigor histórico do esquecimento do Ser, que na era da técnica e da ciência atinge o paroxismo de sua virulência, opera na metafísica segundo a dialética de re-velação da diferença ontológica. Nela a Verdade do Ser, retraindo-se e velando-se em si, extrai e re-vela o ente na divergência e convergência entre fundamento e fundado. Jogado por tal dialética, o pensamento metafísico se edifica em duas dimensões. Enquanto estruturado na diferença lógica de ente e ser, reconduz o ente ao fundamento de possibilidade próximo em seu ser e remoto no ser supremo. Essa estrutura é a dimensão do pensado no pensamento metafísico. De vez que, por pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico não pensa a diferença ontológica como diferença, a dimensão do pensado é a dimensão do esquecimento do Ser. Por outro lado, uma vez que, para pensar nessa estrutura, o pensamento metafísico já está determinado pela diferença ontológica, a recondução do ente a seu ser implica a configuração lógica da diferença. Essa implicação não é um nada. É antes a dimensão do não-pensado no pensamento metafísico. Assim o horizonte dentro do qual pensam os pensadores da tradição ocidental exclui diretamente e ao mesmo tempo inclui obliquamente a dimensão do não-pensado que outra coisa não é senão a dimensão da Verdade do Ser. Por isso diz Heidegger “o não-pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento”. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger

Pensar é articular o destino do Ser e esse se dá num vigor “epocal”. O pesamento dos pensadores não é, em sua Essência, a estrutura em que eles pensam as referências de ser e ente. É o que eles procuram articular com essa estrutura. Em tudo que dizem, eles querem dizer a Essência do pensamento que se lhes destinou. Daí ser um desconhecimento da dialética “epocal” do destino todo e qualquer esforço de se refutar um pensamento bem como toda tentativa de entendê-lo fora de sua Essência, segundo qualquer jogo de interesses alheios à sua articulação destinada. E se trata de um desconhecimento que se ignora como desconhecimento, por ser já, em si mesmo, um destino “epocal” do esquecimento do Ser. É o tipo do desconhecimento que, predominantemente, se impõe, como conhecimento, na época da técnica e da ciência . Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

A época da técnica e da ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade-subjetividade do ente como na subjetividade-objetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor. A arte, a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vigência da correlação de subjetividade e objetividade, que hoje vai atingindo o paroxismo, é, pensada como “época”, o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência , se derrama a escuridão da “Noite Histórica” na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua humanidade, “erra”, sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetividade. A “época” da técnica e da ciência é o império do homem a-pátrida em sua Essência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo

2. Desta perspectiva, Heidegger e Wittgenstein aparecem cada um numa luz diferente. Heidegger é o tipo do filósofo alemão. Especulativo, de formação clássica e filológica, empenha-se em repetir toda a tradição metafísica, visando não competir mas despedi-la. Neste empenho, a ciência moderna, em seu modo de reflexão técnico-matemático rigoroso, não lhe serve de modelo mas de sintoma: com o desenvolvimento planetário da técnica, a metafísica celebra, na decadência vigente do pensamento, o maior triunfo de seu domínio histórico. — Wittgenstein é o lógico da língua técnico-científica. Antiespeculativo por excelência, seu Tractatus e as Investigações Filosóficas valem como documentos clássicos da Filosofia Analítica nos círculos do que se poderia chamar de Epistemologia Dogmática. A mentalidade antiespeculativa, que desde Ockham através de Hobbes, Locke e Hume veio dominando o nominalismo inglês, e a crítica fundada na análise lógica da língua, que começou a florescer com Boole, Frege, Russell, Peirce e Moore, convergiram em Wittgenstein numa suspeita cética: toda metafísica, sendo destituída de sentido, é, na acepção própria do termo, uma insensatez, oriunda de uma incompreensão lógica da língua de nossos discursos. Aprendendo a pensar I: Wittgenstein e Heidegger

b) Alternativa de análise-tautologia e síntese-empiria. O discurso das ciências formalizadas é analítico e tautológico, enquanto o discurso das ciências reais é sintético e empírico. Fora destes dois tipos todo discurso é sem sentido, toda ciência , impossível. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

c) Sobre as relações entre estas duas ordens de ciência não poderá haver discurso, uma vez que tais discursos não seriam nem sintético-empíricos, nem lógico-analíticos. Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

9. O Tractatus não é uma corrente de discursos, que pretendesse demonstrar teses segundo uma ordem hipostática ou para tática de argumentação. É que todo discurso está ordenado à organização lógica de fatos relativos a um conhecimento objetivo do mundo. O pensador não quer provar nada. Visa tão-somente a re-velar nas funções da língua o vigor do pensamento e assim denunciar a ilusão de se lhe atribuir o registro próprio da ciência . O projeto do Tractatus é inteiramente despojado de qualquer pretensão científica. A vitalidade de seus aforismos não pode ser determinada como um sistema de sentenças. Só fatos são suscetíveis de discurso. Uma sentença não pode exprimir senão um fato, simples ou complexo. Como o autor de Delfos, o pensador não afirma nem nega coisa alguma. Ele apenas assinala, enviando-nos à viagem de todas as nossas línguas. A metafísica tem sido vítima de seus próprios encantos. Mobilizada pelo narcisismo metafísico, a epistemologia se encantou pelos encantos metafísicos de uma antimetafísica. A metafísica cai sob a crítica da epistemologia por pretender pensar a Essência da realidade num discurso. A epistemologia, usando a arma da crítica sem fazer a crítica da arma, recai na metafísica, por não pensar a Verdade da Essência e assim desconhecer que há um pensamento mais originário do que o pensamento discursivo. É o que nos sugere o Tractatus de Wittgenstein: “Meine Saetze erlaeutern dadurch, dass sie der, welcher mich versteht, am Ende als unsinnig erkennt, wenn er durch sie — auf ihnen — über sie hinausgestiegen ist. (Er muss sozusagen die Leiter wegwerfen, nachdem er auf ihr hinausgestiegen ist). Aprendendo a pensar I: Contexto Problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein

Ironicamente é na própria febre do desenvolvimento que nos chega hoje o sentido da intempestividade de Heidegger, daquilo que o pensamento do Ser quer dizer para nós, filhos progressistas do progresso. Em nossos dias, indiferente às diferenças ideológicas, invade-nos cada vez mais a vida cotidiana uma nova provocação, um desafio inesperado que põe em questão nosso modo de viver, a civilização em sua essência, a ideologia da dominação do homem na terra. O fracasso do progresso se afirma em todos os sucessos da produção e do consumo. As sociedades industrializadas vão caindo uma a uma nas armadilhas de sua própria industrialização. O domínio do homem já não acena com as promessas do Antigo Testamento nem tem mais diante de si o futuro radiante com que o iludia a ciência na aurora da Idade Moderna. De chofre a perspectiva, que equiparava progresso e sobrevivência, inverteu o sentido das sombras e a esperança se fez desespero. O que hoje apavora são as ameaças do progresso, os perigos que a industrialização acarreta para a natureza, para a sobrevivência do homem e de toda a vida na terra. Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador

O simples uso do candelabro não nos transmite as manifestações do mundo que seu ser instaura. É que seu emprego reside justamente em servir-se de suas relações efetivas, em usar seus serviços sem procurar realçar o sistema de referências que os possibilita. Usar um instrumento é obrigá-lo a desaparecer no uso que dele se faz. O bom candelabro é aquele de que não se sente a presença. Usar um instrumento é não se deter em seu modo de ser e sim passar através de sua utilidade à obtenção de sua finalidade. Para que o instrumento nos manifeste seu modo de ser, é necessário mudar de comportamento. É o que acontece na arte. A obra de arte nos abre e mostra o ser do candelabro como instrumento de iluminação. O modo de ser da arte é manifestar o mundo de tudo aquilo que é. É verdade que essa manifestação do ser se opera em toda atividade e em todo comportamento humano. Todavia, nem sempre é desenvolvida explicitamente. A ciência , por exemplo, é implicitamente uma manifestação do mundo, não obstante ela não se preocupa nem se atém à revelação do ser das coisas. Atenta ao que no real é determinação objetiva, universalizável e pragmática, a ciência não considera o mundo, a presença, a abertura do real. A graça das correntes, a seriedade do verde-ouro no candelabro, nenhum cálculo, nenhuma experimentação científica seria capaz de nos revelar. Assim a arte é um modo de verdade da existência enquanto instauradora de mundo. Essa instauração ela consegue pela obra. A obra é necessária. Para aparecer em seu mundo, as coisas devem ser subtraídas a nossos propósitos de utilização, elas se devem fazer inúteis. Em segundo lugar, devem ser integradas na dinâmica de um mundo. A inutilização das coisas não é contemplação. É uma integração no sistema de coordenadas de referência e apoio. A obra de arte é uma operação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Agora talvez esteja mais claro qual é o problema da Crítica Literária, onde reside toda a angústia do Crítico. É o problema de não ser arte literária, de não ser Literatura para ser apenas ciência da Literatura. É a angústia de criticar a arte literária com os critérios da filologia e da linguística, da poética e da teoria. É a angústia de exercer apenas uma crítica científica sem ser principalmente a consciência literária da existência e a consciência existencial da Literatura. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Um Destino Histórico Essencial implanta a terra linguística na galáxia da metafísica em cuja órbita gravitam as ciências. O pensamento precursor do poeta erra pelo espaço sem peso das ciências, à procura de gravidade. Por isso a preparação da semeadura exige uma formação do poeta no interior das ciências. Aqui o desafio é educar-se sem confundir poesia nem com erudição nem com ciência . O desafio é o perigo. Um perigo tanto mais salutar quanto mais, na descendência Histórica da metafísica, o poeta tem sempre de novo que encontrar a via de sua paisagem. Aprendendo a pensar I: O Poeta na Terra Linguística

É que descobrir que uma coisa, além de si mesma, apresenta outra, em razão de uma isomorfia de estrutura em todos os níveis dos fatos, é descobrir a mecânica da representação. O grilo não cabia em si. Dispunha de uma mecânica universal a que nada poderia resistir. Aprendeu a falar, pois era a mecânica da linguagem. Aprendeu a cantar, pois era a mecânica da música. Aprendeu a calcular, pois era a mecânica da técnica. Aprendeu a controlar, pois era a mecânica do poder. Aprendeu a conhecer, pois era a mecânica da ciência . Antes o grilo não tinha nem coisas. Agora surge-lhe o mundo, a totalidade dos fatos. Toda a clareira da Floresta ficou grilada de mecânica. Aprendendo a pensar I: A Poesia e a Linguagem

Heráclito: A abertura não nos abre apenas o acessível. Também o acesso ao inacessível, como tal, nos é facultado pela abertura, que se exerce na própria diferenciação de aberto e fechado, de acessível e inacessível. Abertura não é assim uma coisa que se pudesse fazer ou encontrar entre outras coisas. Abertura só se dá no movimento bruxuleante de, abrindo, vedar e, vedando, abrir passagem. Neste movimento é que somos presenteados com a verdade de nossa finitude. Pois a in-verdade pertence essencial e constitutivamente à verdade. Estando sempre numa configuração de verdade, estamos também numa configuração de in-verdade. Esta tensão é o que evoca a provocação da palavra grega alétheia. Pois lanthano significa cobrir e velar, manter-se encoberto e ficar velado. Lethe é o nome de uma torrente no Hades, cujas águas encobrem a vida e velam as vivências dos mortos. É também o nome do esquecimento, cujo verbo, usado na forma medial de lantháñomai, quer dizer propriamente: se me encobre para mim mesmo, eu fico encoberto para mim de tal sorte que o eu, o me e o para mim resultam e nascem do próprio movimento de encobrir. Sendo profundamente reflexiva, a língua grega, ao falar, é atraída pelo vazio que deixa ecoar nas palavras o retraimento da Linguagem. / Diana: Somente neste vazio poderiam medrar o mito e a música, a poesia e o pensamento, o teatro e os jogos, a pintura e a escultura, a democracia e a tirania, a filosofia e a ciência em seu vigor originariamente grego. O mais provocante nesta experiência nasciva da alétheia não é apenas a riqueza inesgotável de sua fulguração em palavras e em mármore mas sobretudo a serenidade madura de sua vigência tanto na aurora como ocaso de sua jovialidade. É esse vigor originário que Hölderlin procura evocar com o título Oriente e Oriental, quando, no poema, Griechenland, A Grécia, chama os gregos de Oriente do Ocidente. Aprendendo a pensar I: Diana e Heráclito

É difícil para o homem de um mundo transiente e profano aceitar as inúmeras definições, os muitos dogmas, as qualificações, cânones, constituições, sentenças, decisões, regras, ordenações, resoluções, leis, respostas, preceitos, mandamentos de uma Teologia, como a Linguagem salvífica de Deus. Tudo isso lhe parece demasiado antropomórfico e complicado para ser o modo necessário e divino com que Deus se revela a si mesmo como Deus. Será que se pode condenar simplesmente esta resistência como materialismo e racionalismo, como má-fé e ateísmo? Sem dúvida, o homem do mundo transiente e profano é racionalista e ateu mas apenas no âmbito do mundo. No espaço de suas atividades não admite a presença de forças numinosas. Tudo que encontra a seu alcance, é material de transformação para a técnica, é objeto de pesquisa para a ciência . Mas no âmbito de sua existência ele sente e cultiva o Mistério. Respeita e venera o incompreensível. — E é precisamente por isso que resiste e recusa uma teologia. Ela se lhe afigura demasiado complexa para ser divina. Ela sabe demais sobre o mistério de Deus. Fala demais sobre o inefável. E não lhe soa convincente recorrer à revelação de verdades para se construir um sistema de dogmas e apresentá-los em definições como mistérios. Para ele o mistério de Deus é insondável e impenetrável, é singulare tantum, e por isso os muitos mistérios revelados, estes pluralia tantum não lhe parecem senão resultado da complicação de uma dialética humana emaranhada em suas próprias malhas. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Porque o homem é sempre a ponte de passagem para o mistério, seu conhecimento nunca é apenas o poder da discursividade. É sobretudo e em tudo o vigor de deixar ser o mistério. Destarte, o mistério não é o provisório e passageiro mas o originário e permanente. A tal ponto que é o não-mistério, a não-consideração do mistério, o mover-se na discursividade do compreensível e inteligível que continuamente é ultrapassado em tudo que o homem faz e conhece. Neste sentido nos convida a pensar um pensamento radical de S. Tomás: nenhum ser é tão finito que não possua nada de infinito, ou ainda: Deus é conhecido em tudo que se conhece. Há uma nesciência, isto é, um não-saber que não significa mera negatividade e ausência vazia mas constitui a estrutura fundamental do encontro do homem com o outro. É a indocta ignorantia. Pertence essencial e constitutivamente à verdadeira ciência e a seu crescimento a nesciência tanto da pretensão de saber como da pretensão de não saber, a experiência de que todo saber como todo não-saber, nascendo do Nada do mistério, têm aí não as fronteiras de suas limitações mas o vigor de sua Essência. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Esta nesciência nesciente do mistério que se dá enquanto se retrai em nossa época de mistério é o princípio fundamental de toda hermenêutica digna deste nome. O nome, hermenêutica, deriva-se do verbo, hermeneúein, que os romanos traduziram com interpretari. Numa longa história de constituição foi-se firmando o costume de se entender hermeneúein e hermeneía, interpretari e interpretatio, como um nome comum, onde se empacotam todas as funções semânticas da linguagem: explicar, traduzir, comentar, expressar. No NT encontramos o nome usado para designar estas quatro funções semânticas da linguagem. (Assim por exemplo para explicar: ICor 12,10, hermeneía glossõn; para traduzir: Jo 9,7, Siloám — ho hermeneúetai apestalménos —; para comentar: Lc 24,27, dierméneusen autpis en pasáis tais graphais tà perl heauton; para expressar: At 14,12, ekáloun te ton Barnabãn Día, tón dè Paulon Hermen, epeidè autos en ho hegoúmenos tou lógou.) O denominador comum de todas elas costuma-se encontrar no fato de que sempre em qualquer função hermeneía e hermeneúein exercem o papel de esclarecer, seja uma mensagem obscura, uma língua estranha, uma passagem pouco clara ou uma vontade desconhecida. Por isso também, assim se usa dizer, a hermeneia se aplica às palavras divinas, à mensagem de Deus, que, sendo por sua própria natureza obscuras e misteriosas, necessitam de interpretação. Os métodos e técnicas, as leis e teoria desta interpretação nos proporcionam uma ciência , a hermenêutica. Ora, estas leis e métodos, estas técnicas e teoria da interpretação são os mesmos do pensamento objetivo que o homem emprega sempre que pretende conhecer em sua intenção o sentido de qualquer contexto semântico. Daí também a definição hoje corrente de hermenêutica: a leitura do sentido de uma estrutura significante em sua intenção significativa dentro de uma comunidade linguística. No nível do pensamento objetivo da ciência hermenêutica não há como distinguir a exegese de um texto da escritura da interpretação de qualquer outro texto literário, do mesmo modo como no nível da química não é possível distinguir uma tela de van Gogh de um cartaz de cocacola ou no nível da linguística uma poesia, de um jingle de propaganda. Está muito certo, o método histórico-crítico, a filologia, a arqueologia, a história das formas literárias, a linguística estrutural, a crítica das fontes e dos textos, a história comparada das religiões, a antropologia são meios e recursos indispensáveis à interpretação e ao entendimento da Escritura. O errado é pretender que tudo isso se dê sem nenhuma pré-compreensão e perspectiva prévia sobre o ser em causa no texto e no intérprete. Tal pretensão seria tão espirituosa como a de quem procurasse apreender a força criadora de um quadro de van Gogh só com a análise química das tintas ou quisesse encontrar-se com uma poesia só na análise estrutural da língua. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

Assim, por exemplo, quando Bultmann, valendo-se dos meios e recursos da ciência , mostra presentes em São Paulo a teologia judaica ou o cristianismo do povo, o iluminismo helenista ou a vivência sacramental dos gnósticos, estes resultados não explicam a causa de São Paulo e de Bultmann. Por quê? Porque esta causa é o mistério. Porque a Linguagem do mistério de Cristo em causa no texto e na interpretação é que permite aos recursos e meios da ciência a diákrisis pneumáton. Pois o que diretamente fala no texto são sempre as palavras dos outros espíritos, do espírito judaico, do espírito do povo, do espírito helenista, do espírito gnóstico, breve, das espiritualizações do espírito humano. Mas a força de todas estas espiritualizações, a Linguagem de todas estas línguas é o pneuma Christou. A interpretação, qualquer que sejam os meios e recursos de seu exercício, só será interpretação quando ouvir o Sim de Cristo nas vozes dos espíritos do texto. Aprendendo a pensar I: Hermenêutica, Revelação, Teologia

10. No tocante à diferença entre autoridade e poder, esta provocação nos chega hoje na virulência da funcionalidade de tudo e de todos. Em seu processo de elaboração, o Ocidente aciona a integração das possibilidades humanas numa estrutura que submete a seu serviço todas as estruturações possíveis da humanidade. A vida desta estrutura é a força da igualdade. No movimento de sua tendência absorvente, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A sua verdade é una, universal, necessária. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência , a verdade do saber, na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da funcionalidade, que atinge hoje o paroxismo de suas virtualidades. Pois o que vale são as funções. Tudo, que preencher a mesma função, se equivale. Na procura da função universal se concentram todos os esforços da modernidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo

A perspectiva de diferença do presente diálogo é constituída pelo Pensamento Essencial (das wesentliche Denken) de Martin Heidegger. Em seu processo de elaboração, o Ocidente é o movimento de integração das possibilidades do homem numa estrutura determinada, que submete a seu serviço todas as demais estruturas possíveis de hominização. O característico desta estrutura é a identidade “lógica” de racionalidade e animalidade. Segundo a tendência absorvente de sua virulência, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo. A verdade é una, universal e necessária. Sua essência está na adequação como na lógica reside o seu lugar gerador. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência , a verdade do saber, na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da Metafísica que atinge sua plenitude no Espírito Absoluto. Aprendendo a pensar I: Hegel, Heidegger e o Absoluto

a interpretação das Sagradas Escrituras se faz hermenêutica quando chega à identidade da Linguagem de Deus nas diferenças de tempo e vida entre a língua das Escrituras e a língua de nosso martírio. É que esta identidade constitui o óleo da consagração de qualquer texto enquanto nos coloca no envio do mistério da fé. a fé é a via em que somos en-viados à viagem do mistério de Cristo. Daí também o problema hermenêutico não ser o desafio da construção de uma ponte que nos proporcione passar do presente para o passado. É o desafio da consagração da diferença de nosso presente. a fé do presente é a presença da fé nas diferenças que ligam a uma mesma tradição passado e presente. Não foi decerto a partir da experiência da fé que se disse naquela semana da LEB, dever o teólogo abster-se de falar sobre economia e política econômica. Como todas as demais diferenças, também a economia e a política econômica gemem na ânsia de identidade na fé. É isso também que se passa com a exegese, enquanto ciência da interpretação dos textos sagrados. Como ciência , a exegese é uma diferença de nosso presente. Cristo, os apóstolos, os primeiros cristãos não podiam nem necessitavam fazer exegese. Erani mártires. Testemunhavam a verdade da fé com suas próprias vidas. Pois o nosso martírio é o mesmo, sempre que testemunhamos com nossa exegese a verdade da fé. O exegeta é um mártir. Sacrifica a ciência em testemunho da fé. E só por isso ele tem de ser todo o rigor da ciência . Só por isso ele tem de conhecer mais do que ninguém a ciência da Linguagem. Algumas das investigações da linguística das Escrituras que mais nos ajudam a ser esta radicalidade da exegese, são as seguintes: I.T. Ramsey, Models and Mystery; John Wilson, Philosophy and Religion; James Barr, The Semantics of Biblical Language. Aprendendo a pensar I: Carta para um Exegeta

Mas o que tem a ver a flora da flor com o cristianismo do povo? — Resposta: tudo! Sem ciência , até mesmo sem consciência, o povo é flor! Sabe recolher-se sempre no mais profundo mistério do Ser. É que o povo vive na fraqueza da ternura. Dele é a loucura da cruz e a fragilidade do mundo, que, no dizer do Apóstolo, são vigor e sabedoria de Deus. O povo não necessita do grandioso da filosofia nem da riqueza da ciência . O povo não precisa de sabedoria nem de poder. Já mora no infinito do finito. Sua casa é a mortalidade da vida! Desde sempre o povo se encantou pelos encantos do infinito que a voz da escola de samba cantou num carnaval passado: “vou m’embora, vou m’embora, eu aqui volto mais, não. Vou morar no infinito e virar constelação”! Aprendendo a pensar I: A Propósito do Cristianismo Popular

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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