Carman (2003:123-124) – ser-no-mundo

Assim, Heidegger deixa claro que não pretende que suas noções de ser-em e mundanidade simplesmente reiterem as distinções metafísicas tradicionais entre o si mesmo e o mundo. Como ele diz, “sujeito e objeto não coincidem com Dasein e mundo” (SZ 60). Os capítulos 2 e 3 da Divisão I de Ser e Tempo, no entanto, procedem programaticamente como relatos do ser-em e da mundanidade, respectivamente, entendidos como elementos formalmente distintos, mas ontologicamente inseparáveis da estrutura a priori do ser-no-mundo. “Esse (elemento) a priori da interpretação do Dasein não é uma determinação fragmentada, mas uma estrutura unitária primordial e constante”, diz Heidegger. Podemos distinguir formalmente entre seus “momentos constitutivos”, mas apenas como aspectos derivados do fenômeno tomado como um todo, de modo que “mantendo a totalidade anterior dessa estrutura constantemente em vista, esses momentos podem ser destacados” (SZ 41). Portanto, o “ser-no-mundo” não pode ser entendido como uma mera soma de seus termos constituintes:

A expressão composta “ser-no-mundo” indica em sua própria cunhagem que o que se quer dizer com ela é um fenômeno unitário. Esse dado primário deve ser visto como um todo. Sua indissolubilidade em partes componentes que poderiam ser reunidas não exclui uma variedade de momentos estruturais constitutivos em sua composição. (SZ 53)

O relato programático de Heidegger sobre o ser-em e a mundanidade, então, entendidos como aspectos formalmente distintos do ser-no-mundo, não deve nos induzir ao erro de interpretá-los como fenômenos ontologicamente discretos e independentemente inteligíveis por si mesmos. Na verdade, eles são dois lados da mesma moeda.

Tampouco o ser-em ou a mundanidade podem ser entendidos como propriedades do Dasein e do mundo, assim como o ser não pode ser entendido como uma propriedade dos entes em geral. Toda conversa sobre entidades e suas propriedades e relações permanece ôntica, não “ontológica” no sentido de Heidegger. A ontologia tradicional geralmente tenta explicar a inteligibilidade das entidades recorrendo a mais ou diferentes entidades, sejam elas mundanas ou esotéricas, por exemplo, formas ideais, substâncias autossuficientes, agentes autônomos ou vontade criativa. A ontologia fundamental, por outro lado, retoma e radicaliza a negação de Kant de que o ser é um “predicado real” e, em vez disso, indaga sobre as condições de interpretabilidade das entidades como entidades. 1. Essas condições hermenêuticas não podem ser apenas entidades ou propriedades, sob pena de regressão, uma vez que teríamos que perguntar como essas entidades, essas condições hermenêuticas, são inteligíveis para nós como tais, e assim por diante.

[CARMAN, Taylor. Heidegger’s Analytic: Interpretation, Discourse and Authenticity in Being and Time. New York: Cambridge University Press, 2003]

  1. Ao mesmo tempo, Heidegger observa que, ao negar que o ser é um predicado real, Kant “está meramente repetindo a proposição de Descartes” de que a substância em si é empiricamente inacessível, uma vez que sua mera existência não pode nos afetar como tal (SZ 94; ver Descartes, The Principles of Philosophy, §52, em The Philosophical Writings of Descartes, Vol. 1). Também em suas palestras de 1927, imediatamente após a publicação de Ser e Tempo, Heidegger argumenta que a noção de Kant de ser como posição absoluta ainda é essencialmente o conceito de ocorrência (GA24:GP 36). No entanto, é evidente que a tese de Kant é, pelo menos em parte, o que inspira a distinção de Heidegger entre ser e entidades, que ele aqui, pela primeira vez, chama formalmente de “diferença ontológica”[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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