Capalbo (1987) – Fenomenologia da História

(Capalbo1987)

A análise do “Ser-no-mundo” aproxima-nos da compreensão de que o Ser Humano é um Ser Histórico.

A História se apresenta como um encontro onde se verifica o esforço de compreensão do outro, e onde se coloca o fenômeno da inter-subjetividade.

é pela sua manifestação no mundo que o outro se torna outro-para-mim. Isso implica em que a história, supondo o encontro, faz respeitar a distância e a proximidade, a dualidade e a unidade, o outro enquanto tal. No encontro esse outro deve ser respeitado na sua alteridade; ele nos convida a conhecê-lo naquilo que ele é.

Por outro motivo H. Marrou nos diz que para “compreender um documento, e de maneira mais geral um outro homem, é necessário que o Outro se eleve largamente na categoria do Mesmo: é necessário que eu já conheça o sentido das palavras (ou dos signos) que utiliza a sua linguagem; isso exige que eu já conheça também as realidades das quais estas palavras ou estes signos são o símbolo” (Marrou, H.I.: De la connaissance historique, Paris, seuil, 1954; p. 88).

Há, entretanto, uma diferença fundamental entre compreender o Outro que é um homem e compreender o outro que é um documento. Esta diferença nos conduzirá ao encontro estudo das relações entre compreensão e interpretação. Quem nos alerta para o problema é Ricoeur (Ricoeur, Pau: Histoire et vérité, Paris, Seuil, 1964; p. 40) quando afirma que o setor que a história recorta na totalidade intersubjetiva é definida metodologicamente pela condição de um conhecimento por traços, e portanto pelo papel inicial do documento. Será por esta razão que o encontro em história não será nunca em diálogo, pois a condição primeira deste é que o outro responda; ora, a história é exatamente esse setor da comunicação sem reciprocidade. Ela pertence ao domínio da interpretação, onde um signo possui vários sentidos. Por isto mesmo nós nos situamos aqui no terreno da história dos historiadores, da pluralidade de histórias.

Nós gostaríamos, entretanto, de fazer a observação de que, de qualquer modo, para a compreensão é sempre necessário se voltar para o Outro, encontrar a comunhão entre sujeito e objeto, entre historiador e documento. Só há compreensão quando eu me transporto a uma vida exterior à minha; e a compreensão do outro só é possível porque ele se objetiva e porque esta objetivação é plena de sentido.

A pergunta que se faz, então, é uma só: quem é este ser cujo ser consiste em compreender, e cuja apreensão só me é dada numa relação vivencial? Poderei compreender o outro nele mesmo ou deverei incorporá-lo a mim? Poderei compreender a história nela mesma ou deverei fazê-lo a partir do historiador? Como deverei estabelecer a relação entre o eu e o outro, entre a história e o historiador?

Para a concepção clássica, o conhecimento do outro se faz por semelhança, por analogia com os estados vividos pelo meu eu. As teorias contemporâneas compreendem essa abertura sobre o outro do ponto de vista de um clima existencial determinado, na qual a percepção das coisas é sempre condicionada pelo corpo e por uma situação cultural determinada. Ela se efetua na inter-subjetividade e utiliza como instrumento uma forma qualquer da linguagem. Esta será, por exemplo, a posição de Merleau-Ponty, que diz: “se o outro é verdadeiramente para si, para além de seu ser para mim, e se nós somos um para o outro, (…) é necessário que nós apareçamos um ao outro, é necessário que eu e ele tenhamos um exterior; é necessário que ele tenha, além da perspectiva do Para si — (meu olhar sobre o meu eu e o olhar do outro sobre si-mesmo) -, uma perspectiva do Para o Outro — (meu olhar sobre o Outro e o olhar do Outro sobre o meu eu). Estas duas perspectivas, em cada um de nós, não podem ser justapostas, porque senão não seria eu que o outro veria, e não seria ele que eu veria, é necessário que eu seja o meu exterior, e que o corpo do outro seja ele mesmo. Este paradoxo e esta dialética do Ego e do Alter só são possíveis se o EGO e o ALTER EGO são definidos pela sua situação” (Phénoménologie de la perception; Avant-Propos).

De modo geral, o Cogito sempre desvalorizou a percepção do outro, ensinando-os que o EGO só era acessível a si mesmo, pois ele se definia pelo pensamento que tinha de si mesmo e só a si acessível. Entretanto, a minha existência não se reduz à consciência que eu tenho de existir; ela engloba a consciência que alguém pode ter de meu existir; através da encarnação da minha consciência numa natureza e numa situação histórica. “O Cogito deve me descobrir em situação, e é graças a esta condição que a subjetividade transcendental poderá, como disse Husserl, ser uma intersubjetividade” (Ibid.).

A história nos conduzirá necessariamente ao historicismo ou a um relativismo? A historicidade é conciliável com a presença de algo imutável no homem? Haverá alguma relação entre sentido da história e historicismo?

A fenomenologia escapa a tais questões alternativas. Ela procede, inicialmente, fazendo uma análise da historicidade, da sua descrição fenomenológica, para somente a seguir ir em busca de seus fundamentos.

A análise da historicidade nos propõe que, antes de examinar os juízos e as categorias empregadas pela ciência histórica, ou mesmo por uma filosofia reflexiva, partamos para uma análise do pré-reflexo ante-predicativo, implicando em todo discurso ou em toda predicação.

“Tudo o que sei do mundo, mesmo aquilo que sei pela ciência, eu o sei a partir de uma maneira de ver que me é própria ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não valeriam coisa alguma. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivencial e se nós queremos pensar a ciência com rigor, apreciar o seu sentido exato e a sua repercussão, é-nos necessário, inicialmente, esta experiência do mundo do qual ela é expressão segunda” (Ibid.).

“A fenomenologia se ocupa com o problema da possibilidade da existência histórica. Ela não se limita a colocar o problema sob a forma epistemológica, que quer saber como a ciência histórica é possível; ela quer conhecer por que o homem é criador de historiedade, por que ele existe historicamente” (De Waelhens, Alphonse: La philosophie de M. Heidegger, Louvain, Nauwelaerts, 1955; p. 225).

Para aqueles que se engajam numa tal perspectiva, os dados imediatos sobre aquilo que é histórico nos revelam que os fatos passados, presentes ou futuros são relativos ao homem. “Todo o uso da palavra historicidade supõe a existência do homem. Um fato ou um objeto só são históricos em relação a ele. O que é primeiramente histórico é o DASEIN (O modo de ser humano situado-no-mundo). Os objetos, a natureza, os acontecimentos só o são secundariamente e relativamente”.

Se nós analisarmos a estrutura histórica do ser humano, nós verificaremos que ela é a resultante de três componentes: o caráter encarnado do espírito humano, a intersubjetividade e a temporalidade.

Dondeyne (Dondeyne, Albert: La foi écoule le monde. Louvain, Ed. Univ., 1964; p. 62) explica estes três componentes, dizendo que o homem como espírito encarnado significa que a sua liberdade é situada e que ele deve se objetivar pelo seu trabalho, exprimir-se numa obra, tornar-se presença para os outros. A obra é o traço de união entre as liberdades e, por conseguinte, entre o passado, o presente e o futuro da humanidade, tornando, assim, possível a intersubjetividade.

É por esta manifestação externa que o outro se torna outro-para-mim. A história, portanto, implica num encontro, onde a distância e a proximidade, a dualidade e a unidade são mantidas numa tensão dialética, permitindo que o outro seja respeitado na sua alteridade. O homem é também temporal idade. Sua maneira de estar presente ao mundo instaura um tempo humano onde o homem vive sua presença-no-mundo-com-os-outros.

Esta filosofia, que enfoca a história como um modo de ser do homem, não excluirá as ciências históricas. Ela será mais ontológica que epistemológica. Ela procurará a dimensão fundamental que nos permita perceber a história como um modo de ser do homem, supra-individual, transcendental, de todos os acontecimentos históricos singulares. É a historicidade do homem que engendra a história e não o contrário.

Para Heidegger esta historicidade tem suas raízes no ser do homem. Ele está preocupado em saber por que este ser possui uma existência que se es-tende, se des-enrola, constituindo uma história. De Waelhens observa que não se dirá que “o Dasein é temporal porque ele se apresenta na história; o Dasein é por si mesmo histórico porque ele é em si mesmo temporal, é pela temporalidade que a historicidade do Dasein se torna possível. A historicidade é um modo de ser da temporal idade” (La philosophie de M. Heidegger, p. 226).

O histórico, portanto, enquanto modo de ser temporal, mantém uma ligação com o passado (herdando-o e trazendo-o consigo no presente, e que será transmitido, já enriquecido pelo trabalho criador, ao futuro.

Nesta perspectiva pode-se explicar o fundamento da história e da historicidade: a fonte da historicidade (Ibid., p.233), enquanto capacidade de apreender a historicidade que se fez, está no passado.

A ideia de que a ciência histórica deve retirar fatos únicos ou leis gerais que permitirão entrever o devir histórico, é considerada uma questão mal colocada por Heidegger. O verdadeiro objeto da ciência histórica seria aquilo que fosse suscetível de repetição. A ciência histórica não se ocupa de fatos absolutamente individuais, nem das regras universais pois nem um nem outro existem. O que existem são as condições e as possibilidades reais de tal existência, possibilidades que formam um conjunto específico de elementos únicos e de elementos que se repetem. São estes últimos elementos que a história deverá retirar e se ela o fizer, ela terá descoberto o universal singular.

Esta repetição não deve ser compreendida no sentido do eterno retorno dos gregos. Ela supõe a temporalidade segundo a qual o passado pode ser transmitido e retomado como um modelo para se tornar uma recriação no presente e ser transmitido ao futuro.

Max Muller irá ainda mais longe quando afirma que a história é o SER e que ela é um dos seus transcendentais. “A história não se encontra no interior do mundo, ela é o mundo enquanto história. Ela não está no SER; ela é o SER, mesmo enquanto prolongamento da realidade, envolvendo todas as coisas desde o início até o fim. Assim, como a verdade, a unidade, a beleza, constituem para S. Tomás aspectos transcendentais do SER, assim também a história será um aspecto do todo. Ora, nunca os filósofos da tradição mencionaram a história entre os transcendentais como nós o fazemos agora” (Muller, Max: Expérience et histoire, Louvain, Ed. Univer., 1959, pp. 26-27).

Aprofundando a compreensão da palavra historicidade. Dondeyne nos diz inicialmente o que esta palavra não significa (Dondeyne, Albert: “L’historicité dans la philosophie contemporaine”, in R. Philosophique de Louvain, t. 54, fev-aug, 1956, pp. 6-12):

a) Historicidade não é sinônimo de fugacidade. O sentido moderno de historicidade supõe uma consciência que, para se engajar no presente, se projeta para o futuro. O passado é compreendido como aquilo que esteve presente e contribui para nos fixar no presente, graças a um processo de retenção e de reativação;

b) Historicidade não é sinônimo de “motus”, movimento, mudança;

c) Historicidade não é sinônimo de devenir. Esta palavra se aplica melhor ao mundo natural para a compreensão dos processos de desenvolvimento, de evolução e eclosão.

A história humana, porém, nos conduz a um mundo de liberdade situada; e

d) Historicidade não é sinônimo de duração no sentido usado por Bergson. Para compreender a Historicidade é preciso compreender os elementos componentes da estrutura de nosso ser histórico. Elas são, respectivamente:

i) Caráter encarnado do espírito humano, pelo qual nós nos introduzimos no mundo de uma liberdade situada, que se exprime no mundo material graças à mediação do trabalho;

ii) A temporalidade, como consequência desta encarnação do homem. O tempo humano nada mais é do que a maneira humana de estar-presente-ao-mundo. O presente é uma presença que engloba o passado e o futuro.

Estar presente para o homem significa ser capaz de reter o passado, de reconhecê-lo como algo que esteve presente e, ao mesmo tempo, ser capaz de projetar, antecipar um avenir a partir desta presença, de fazer surgir os sentidos das ações e das coisas, ser abertura sobre o futuro; e

iii) Intersubjetividade: um sentido nasce sempre do encontro de uma intenção e de um dado que já-estava-lá.

É por isto que o dado encontrado nos aparece sempre como um misto de facticidade e de significação, como um fato portador de significação.

A ideia de sentido é inseparável da ideia de direção, de orientação, de projeto, de horizonte, de futuro.

O mundo que eu encontro em torno de mim como já-lá, é um mundo impregnado pelas gerações passadas e pela presença presente dos outros.

Esta presença do outro pode se apresentar de maneiras diversas.

Inicialmente o outro aparece em nossa vida como um obstáculo, uma ameaça para a nossa liberdade. Ele é alguém como quem eu devo partilhar meu mundo.

Ele pode aparecer como um companheiro nos caminhos de minha liberdade. O outro é reconhecido como necessário para a minha realização e como alguém com quem eu posso partilhar algo. Assim, nós recebemos e damos em nossas relações com o outro. Isso implica uma tolerância para com o outro, em respeito à sua alteridade. O outro na sua alteridade se transforma em interpelação para mim, em exigência de uma resposta minha ao seu chamado.

Husserl encontrou, entre os seus contemporâneos, filósofos que se preocupavam com a reflexão sobre a História, tais como Dilthey, para quem a filosofia não devia ser definida como um conhecimento absoluto e sim como um conhecimento construído no tempo e sofrendo as influências do tempo presente.

Mas Husserl se distanciará destas filosofias da história que procuravam dar uma visão do mundo como simplesmente provável, apesar de reconhecer o seu valor para a existência concreta. Para Husserl, em sua primeira fase, a filosofia deve ser uma reflexão sobre a essência dos fenômenos da história, dando, assim uma resposta às questões do tempo presente.

A seguir ele percebe que a atividade filosófica não se restringe a uma reflexão sobre a essência, pois existe uma “gênese do sentido” das ideias, conforme traduz M. Ponty a palavra “Sinngenesis” (Merleau-Ponty, Maurice: Les sciences de l’homme et la phénoménologie. Lês cours de la Sorbonne, 1963; pp. 49-50). Nesta fase Husserl falará de uma história intencional, pela qual o sentido surge em virtude de uma perspectiva colocada por mim e não apenas percebida por mim. O que Husserl quer dizer com isso é que a essência só pode ser atingida através de uma série de procedimentos que se realizam na história, fazendo com que o sentido atual só possa surgir porque houve um sentido anterior que foi sedimentado e lhe serviu de suporte.

M. Ponty comentará essa fase do pensamento de Husserl dizendo que ser filósofo não significa dar um salto da existência para a essência, que para compreender a história não precisamos ir da facticidade para a essência da história; nós compreendemos o passado em virtude do elo interior que existe entre ele e nós. A compreensão se torna coexistência com os contemporâneos assim como dos antecessores e sucessores.

A fenomenologia como instituição das essências não é abandonada, mas apenas se exige que elas sejam colocadas diante dos fatos, diante de seu meio de onde derivaram as significações dos fenômenos históricos de uma determinada sociedade.

Husserl, em seu último período, não considera mais a essência fora do fato, o pensamento filosófico fora da história e do tempo. Para ele a fenomenologia da história é procura da essência ou do sentido da história a partir do fato histórico. A historicidade surge da temporalidade humana e por isso quando falamos de mundo histórico já pressupomos um mundo dos homens em relação, em situação, ou seja, em sociedade.

A história se funda na intersubjetividade transcendental, na exigência essencial da temporalidade humana; ela constitui nosso horizonte de inteligibilidade e de cultura.

A fenomenologia se propõe, então, por tarefa de “fazer a humanidade tomar consciência de que ela é sujeito. .. e o filósofo como diz Husserl, será o funcionário da humanidade, a ela servindo. . . A filosofia da história de Husserl contentar-se-á em indicar para o nosso tempo um futuro que virá, a construção de um humanismo fundado nesta vida fenomenológica da liberdade” (Kelkel, L. E Schérer, R.: Husserl, sa avie, son oeuvre; pp. 78-79).

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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