Caeiro (Arete:§26) – prazer e depressão no tempo

Não se consegue antecipar que o tempo que segue ao prazer (ἡδονή) traga consigo a sua cessação e a sua metamorfose em sofrimento, um sofrimento resultante da qualidade do prazer (ἡδονή) sentido. Aquelas coisas são más (e trazem, assim, impossibilidade e perversão à potência da vida), porque terminam em sofrimentos e destroem os restantes prazeres (Prot., 353e6-8). Quer dizer, elas não vão apenas desembocar (ἀποτελεῖν) em sofrimento como também dão origem a uma privação (ἀποστερεῖν) da possibilidade de se sentir prazer.

A diferenciação do prazer (ἡδονή) e da depressão (λύπη) relativamente à perversão impossibilitante (κακία) e à excelência (ἀρετή) resulta da aplicação de operadores temporais que permitem compreender todo e qualquer sentido (πάθος) como sendo vivido só no momento presente (ἐν τῷ παραχρήμα) sem a possibilidade de uma abertura ao que esteja fora dessa presença, sem a possibilidade de antecipar o tempo futuro (εἰς τὸν ὕστερον χρόνον).

Pode acontecer que todas aquelas situações que determinamos como boas (ἀγαθά) se transformem em situações dolorosas (ἀνιαρά) e tragam sofrimento consigo (Prot., 357a3). Pode dar-se, no entanto, o caso inverso. Há situações que são dolorosas mas que são determinadas como sendo boas. É o que acontece, por exemplo, a respeito dos exercícios físicos, das manobras militares e dos tratamentos dos médicos (Prot., 357a5). Aqueles tratamentos que são produzidos por meio de queimaduras, cortes, remédios, jejuns, são benéficos, apesar de causarem sofrimentos dolorosos (Prot., 357c4). Há uma independência das situações boas (ἀγαθά) relativamente ao prazer (ἡδονή), tal como subsiste uma independência daquelas coisas que são perniciosas (πονηρά) relativamente à depressão (λύπη). (149)

O sentido bem (ἀγαϑόν) e mal (κακόν) ultrapassa a presença momentânea do instante, característica fenoménica das aparições patológicas. O bem possibilitante (ἀγαϑόν) é o que preenche e dá completude a uma determinada situação (πρᾶξις). Ao tê-lo em vista, faz sentido um encaminhamento que nos traz sofrimento (λύπη). O sofrimento (λύπη) é vivido como momentâneo, como o que caracteriza o encaminhamento para uma situação que, uma vez constituída, trará completude a uma determinada linha de ação. Quer dizer, a característica «sofrimento» não é vista como uma situação acabada, como o que vai ficar para sempre, mas antes como a situação de encaminhamento, de passagem para uma boa qualidade de vida. Mesmo que o bem (ἀγαϑόν) não venha a ser obtido, ao ser tido em vista faz que o sofrimento (λύπη) ganhe um sentido que não tem quando está vivido na sua mera dimensão contemporânea. O bem (ἀγαϑόν) é determinado como um tempo posterior (ὕστερος χρόνος). Ao ter-se em vista o tempo seguinte (ὕστερος χρόνος), o que é vivido no momento presente (ἐν τῷ παραχρήμα) transfigura-se e é vivido como encaminhamento para uma determinada possibilidade que faz sentido.

Da mesma forma não fica excluída a possibilidade de o prazer (ἡδονή) poder ser visto como um impedimento (κακόν). Ao termos em vista o sentido do que se concretiza pela obtenção do prazer, podemos perceber que se trata de um encaminhamento que se transforma em mal (κακόν). Ao tematizarmos um prazer (ἡδονή), ele pode revelar-se como uma situação que nos encaminha para dificuldades. O prazer sentido não é eterno. Após a qualidade de vida momentânea que traz consigo transforma-se em sofrimento. É o que podemos apurar ao tematizarmos o futuro do prazer (ἡδονή). É porque uma situação que dá prazer pode estar sob a dependência de um mal que torna a existência precária que podemos determinar um prazer como nocivo e prejudicial, sem que tenha qualquer completude a dar preenchimento à expectativa que alimentara. O mal (κακόν) que se constitui faz-nos sofrer, e é por isso que o futuro de determinados prazeres nos fazem sofrer. Este sofrimento é resultante da impossibilitação (κακία), a qual, ao constituir-se, retira todo e qualquer sentido ao prazer perseguido 1.

Assim, o que se tem em vista para a tematização dos extremos patológicos prazer (ἡδονή) e sofrimento (λύπη) é o cumprimento (150) (τέλος) no qual cada sentido (πάθος) acha o seu desfecho (ἀποτελεῖν). A diferença entre o sentido «no tempo presente» (ἐν τῷ παραχρήμα) e o «tempo posterior» (ὅ ὕστερος χρόνος) permite apurar o sentido de uma determinada situação, mesmo quando só se têm em vista as características afetivas. Aqueles operadores interrogam para além da afetividade, isto é, permitem apurar se um dos limites deste horizonte está no encaminhamento para um determinado sentido, ou se se trata da conclusão de uma determinada linha de ação. Uma coisa é uma depressão (λύπη) e um prazer (ἡδονή) que não tiveram ainda todo o seu desenvolvimento concluído e que estão por assim dizer por acabar. Outra coisa é a determinação desses sentidos a partir da conclusão final do seu desenvolvimento. É a completude ou a incompletude de uma determinada situação o que lhe dá ou retira compreensão.

Ambos os limites patológicos só podem ser avaliados por um ponto de vista que de alguma forma supera o horizonte única e exclusivamente do presente em que sucedem. Essa superação procura, por seu lado, dissociar o presente de uma determinada situação do futuro em que virá a constituir-se. O sentido dessa dissociação é o de antecipar autenticamente o que virá a constituir-se no tempo futuro. A dificuldade resulta do fato de esse «depois» (ὕστερος) estar para além da dobra temporal que no presente nos está a afetar, e que só virá a estar efectivamente activo quando essa fase de vida tiver sido constituída e tiver sido dada por terminada.

Os fenômenos de prazer e de sofrimento podem, por conseguinte, durar muito tempo e ter a característica da momentaneidade, porque não correspondem a uma forma cabal da fase de vida em que se inserem, deixam ainda o seu sentido em aberto. Por outro lado, a presença de situações qualificadas como sendo benéficas (ἀγαθά) e das que são maléficas (κακά) na nossa existência pode durar só breves instantes. Mas o seu sentido é determinado a partir da fase conclusiva de um determinado encaminhamento. Essa determinação só é conseguida a partir da avaliação do tempo que se segue. Correspondem de alguma forma a estágios finais de uma determinada fase de vida.

Ao tematizarmos a estrutura da situação humana (πρᾶξις) podemos então perceber que o sentido (πάθος) nos afeta (ἐν τῷ παραχρήμα), estando para nós, de todo em todo, vedado o momento seguinte (ὕστερος χρόνος) que trará consigo o momento que dá por terminada uma qualquer situação. Sendo no momento seguinte (ὕστερος χρόνος) que se situa o cumprimento (τέλος), isto é, o sentido a partir do qual uma determinada situação tem ou não compreensão, ou seja, está ou não acabada, é também do tempo futuro e da sua qualificação (151) que depende a situação em que nos encontramos no presente. Todo o processo patalógico enquanto exposto no momento seguinte (ἐν τῷ παραχρημα) pode vir a ter um desfecho para o tempo futuro com um sentido radicalmente diferente daquele que se faz sentir. O que no momento presente pode produzir o pior dos sofrimentos e a mais terrível das dores poderá ter um desfecho futuro que, por ser benéfico, nos trará prazer 2, libertando-nos do sofrimento ou desviando-nos dele (Prot., 353b6-7), do mesmo modo que o que nos dá o maior dos prazeres pode vir a suprimi-lo e a trazer sofrimento no tempo seguinte à sua constituição.

  1. É por isso que a perseguição de Helena por Menelau é uma perseguição que não tem sentido (cf. Rep., 586c5). Em virtude de um simulacro de prazer atinge-se um sofrimento. Um sofrimento que resulta da falta de transparência e da ignorância da verdade.[]
  2. Prot., 353b6. C. C. W. Taylor, Plato Protagoras. Translated with Notes, Clarendon Plato Series, General Editor: M. J. Woods, Clarendon Press, Oxford, 1976 (1989): τέλος significa à letra «end» ou «completion». «The things in question are judged good because they result in (apoteleutai eis) pleasures and avoidance of pains» (p. 177).[]