“A apropriação (Ereignis) tem a propriedade peculiar de trazer o homem para si mesmo como o ente que percebe o Ser” (GA14:TB 23). Heidegger manteve, desde os primeiros trabalhos, a ideia de que somos a clareira, o lugar onde os entes emergem à luz. É em nossa consciência que os entes são revelados. Inicialmente, isso ocorre dentro de uma estrutura kantiana que atribui a clareira a nós. É porque nos importamos com o que acontece conosco que projetamos metas e papéis por cuja luz refletida vemos heranças passadas e oportunidades presentes. Nossa atividade projeta ou abre o espaço no qual as coisas podem ser vistas e usadas, e nossa postura pode causar uma mudança no modo de ser das entidades individuais.
No trabalho posterior, a ênfase muda de nossa criação da clareira para nossa recepção dela. “Como o homem poderia se comportar em relação aos entes — ou seja, experimentar os entes como entes — se a relação com o Ser não lhe fosse concedida?” (GA6T2). O paradoxo central da tecnologia é a ideia, expressa por Descartes, de que podemos formular nossa própria maneira de pensar sob nosso próprio poder e de acordo com os ditames que escolhemos, sem sermos impedidos por nada que não tenha sido escolhido. Conforme discutido no Capítulo 9, para que Descartes pudesse pensar nessa possibilidade, ele já deveria estar pensando de forma tecnológica, ou seja, buscando transformar materiais na forma correta para realizar o que desejamos. Ele não poderia ter escolhido essa maneira de ver as coisas, sob pena de regressão infinita.
Nós pensamos, mas somente ao longo das correntes que se originam com o ser. Não poderíamos ter nos tornado seres pensantes — teríamos de ser capazes de perceber quaisquer recursos e ferramentas necessários e considerar a meta possível e atraente para fazê-lo, o que significaria que já estávamos pensando — nem poderíamos ter criado nossa forma particular de pensar. Tudo isso nos é “dado”, um termo com o qual Heidegger brinca. Antes de recebermos algo específico, precisamos ter a capacidade de receber o que nos foi dado, que é como ele define o pensamento. “Recebemos muitos presentes, de muitos tipos. Mas o presente mais elevado e realmente mais duradouro que nos é dado é sempre nossa natureza essencial, com a qual somos presenteados de tal forma que somos o que somos somente por meio dela. (…) Mas a coisa que nos foi dada, no sentido desse dote, é o pensamento.” (GA8) Assim, o duplo significado do título deste livro (Pensamento do Ser): quando pensamos, só podemos pensar ‘de’ ou sobre o ser, mas, ao fazê-lo, também estamos pensando os pensamentos ‘de’, como se pertencessem ou viessem do ser. Somos o órgão pelo qual o universo pensa seus pensamentos.
Há uma inter-relação fundamental e inescapável entre o ser e o homem, na qual Heidegger insiste repetidamente em toda a sua obra posterior.
O homem é essencialmente essa relação de resposta ao Ser, e ele é apenas isso. … E o Ser? Vamos pensar no Ser de acordo com seu significado original, como presença. O Ser está presente ao homem não incidentalmente nem apenas em raras ocasiões. O Ser está presente e permanece somente na medida em que diz respeito ao homem por meio da reivindicação que faz a ele. Pois é o homem, aberto para o Ser, o único que permite que o Ser chegue como presença. Esse tornar-se presente precisa da abertura de uma clareira e, por essa necessidade, permanece apropriado ao ser humano. Isso não significa, de forma alguma, que o Ser seja postulado primeiro e somente pelo homem. … O homem e o Ser são apropriados um do outro. Eles pertencem um ao outro.(GA11)
O homem e o ser não são duas entidades distintas ou fases separáveis em um processo, mas sim os dois lados de uma única moeda, aspectos diferentes de um “acontecimento”. O ser está aparecendo e o homem é o aparecido. Modificando seu termo anterior, podemos dizer que o homem e o ser são, em cada caso, mútuos. Nosso modo de ver e pensar sobre o mundo, de certa forma, ecoa a manifestação do mundo para nós, na medida em que revelamos a autorrevelação do ser. Enquanto o ser presencia os entes, podemos trazer o próprio ser à presença ao pensá-lo. É por isso que nosso “deixar os entes serem é a realização e a consumação da essência da verdade no sentido da revelação dos entes”.(BW)
Assim, encontramos uma essência do homem, a única característica que continua ao longo de todas as mudanças históricas: somos a clareira do ser, somos o círculo de luz neste universo escuro. As épocas da metafísica não podem mudar isso porque, para que haja metafísica, deve haver uma clareira. Heidegger acredita ter encontrado a condição mais profunda da possibilidade de experiência possível, vencendo Kant em seu próprio jogo. Os entes em seus vários modos de ser são os cenários e os personagens que têm suas saídas e entradas, mas a clareira é todo o palco.
Isso é essencial para os tipos de entes que somos; de fato, é a nossa essência, como ele diz muitas vezes nos trabalhos posteriores. Não há como não estarmos na clareira, uma vez que, para fazer, pensar ou dizer qualquer coisa, precisamos ter alguma consciência do assunto em questão. Do nascimento à morte, do momento em que nos levantamos pela manhã até o momento em que adormecemos à noite e, muitas vezes, em algum momento intermediário, estamos conscientes de algo de alguma forma; essa é a apropriação posterior de Heidegger da ideia central de intencionalidade da fenomenologia, a ideia de que toda consciência é consciência de algo. Mas também é uma das leis básicas da fenomenologia o fato de que as características mais difundidas em nossa experiência são as mais difíceis de nos tornarmos explicitamente conscientes — a imperceptibilidade do onipresente. É por isso que a capacidade dos metafísicos de capturar o sentido de ser de sua época, encontrado em todos os fenômenos de uma época, é tão impressionante e valiosa. Esse estado de ocultação à vista de todos é uma magnitude maior para o fato da consciência. Embora já estejamos sempre dentro da clareira, ou seja, em contato com os entes, tomamos isso como certo, ignoramos isso ao nos concentrarmos na agitação da vida cotidiana.
Heidegger quer iluminar essa luz para nós. “A clareira é a região aberta para tudo o que se torna presente e ausente. É necessário que o pensamento se torne explicitamente consciente da questão aqui chamada de clareira” (BW 442). Embora isso nos ensine uma compreensão mais profunda de nós mesmos e de nosso pensamento, o motivo principal é ético — não no sentido de nos dar regras a serem obedecidas, mas no sentido de estabelecer o tipo certo de vida. Devemos assumir esse fato de consciência para valorizá-lo e celebrá-lo. É isso que ele quer dizer quando nos chama de pastor, guarda ou preservador do ser.