Brague (1988:39-41) – o acesso do homem ao Todo

destaque

Os gregos viam o fenômeno do acesso do homem ao Todo, e expressavam-no através de imagens espaciais, como uma característica do espírito. Temos toda uma série de textos em que se sublinha o poder do espírito humano, com a sua capacidade de se mover instantaneamente e de atravessar as maiores distâncias, chegando assim aos confins do mundo. O tema é comum a todo o mundo helenístico, até à época dos Padres da Igreja. Podemos distinguir vários temas: o da velocidade do espírito, o da sua capacidade de se elevar acima das realidades humildes desta terra e, penetrando nas esferas celestes, atingir o mais alto e, finalmente, o da sua omnipresença. Concentrar-me-ei aqui apenas no último aspecto. É, de resto, o mais antigo de que se tem notícia. Uma breve passagem de Xenofonte põe na boca de Sócrates, que tenta converter Aristodemo à crença nos deuses, um argumento por analogia: a inteligência (phronesis) presente em todas as coisas dispõe todas elas como quer; seria absurdo que, enquanto o olho humano pode perceber objetos situados a grande distância, o olho divino não pudesse ver todas as coisas ao mesmo tempo (άμα πάντα). Do mesmo modo, enquanto a alma humana (psique) é capaz de se ocupar (φροντίζειν) do que está aqui (ένθάδε), em Atenas, e ao mesmo tempo do que está na Sicília ou no Egipto, a inteligência do deus deve ser capaz de lidar com todas as coisas ao mesmo tempo (άμα πάντων έπιμελεῖσθαι) (Mem. , I, 4, 17 f., cf. 8). Isto é assim porque o deus está presente em todo o lado (πανταχοῦ παρεῖναι). Não precisamos de nos preocupar aqui com o sentido do argumento do Sócrates de Xenofonte, e muito menos de procurar as suas possíveis fontes no pensamento pré-socrático, mas de notar a constatação do fenômeno: a alma é capaz de tomar em preocupação a totalidade do que é, sem dúvida porque a presença em toda a parte é ela própria também, mutatis mutandis, uma característica da alma humana. A observação atribuída por Xenofonte a Sócrates é mais antiga do que ele. No Teeteto, Platão dá a Sócrates o seu próprio retrato do sábio, indiferente à intriga política e absorvido pela contemplação. É como se o sábio habitasse apenas no seu corpo, enquanto seu espírito (dianoia) percorre o universo, examinando a natureza de tudo (173 e 2-174 a 2). É neste contexto que Platão se refere a Píndaro, mas de tal forma que é difícil isolar o que lhe pertence – para além, talvez, da imagem do voo. Platão exprime a mesma ideia noutro lugar, quando caracteriza a filosofia natural como a consideração da \”totalidade do tempo e da totalidade do que é\”, sendo o instrumento desta consideração a dianoia (Rep., VI, 486 a 8 f.).

original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress