Podemos encontrar traços desse tema (o instrumento) em outro lugar? Se minha perspectiva geral for esclarecedora, eles devem ser encontrados onde a redescoberta do Dasein por trás do “homem” leva, em outras palavras, na forma como Heidegger caracteriza o que o Dasein tem a ver com uma “ferramenta” ou “instrumento” (Zeug). É possível identificar passagens em Aristóteles nas quais esse fenômeno tenha sido, se não explicitamente compreendido, pelo menos vislumbrado? Parece que sim, se nos voltarmos para certas ocorrências dos termos gregos que designam os fenômenos que Heidegger tem em mente, ou seja, a ferramenta e seu uso — o substantivo organon e o verbo chresthai. Como sabemos, esses termos são usados como conceitos pelo filósofo alemão à custa de uma generalização: é toda a realidade e toda a nossa relação com ela, e não apenas uma área restrita da realidade ou uma atitude específica em relação a ela, que aparecem como uma ferramenta e como um manuseio, onde o objetivo é descrever o “ser do ente que é encontrado no mundo circundante”. Pouco antes de nomear a forma assumida pelo que é, e depois de criticar o termo “coisa” (Ding), Heidegger observa que os gregos tinham um termo muito revelador para aquilo com que temos de lidar quando lidamos com algo: ta pragmata, “assuntos”. Mas ele imediatamente acrescenta: (199) “mas foi precisamente o caráter especificamente ‘pragmático’ dos pragmata que eles deixaram ontologicamente obscuro, e eles os determinaram ‘sem mais’ como ‘sendo apenas coisas’” (SZ:68). Cito essa passagem para exorcizar a tentação de procurar um pensamento sobre o instrumento (Zeug) na Grécia antiga e para enfatizar que se trata apenas de procurar a expressão não refletida de uma experiência dele. Voltarei em outro contexto ao termo pragma ao qual Heidegger se refere, e me concentrarei aqui no termo que ele não menciona, que é, no entanto, a tradução direta do que ele propõe, a saber, organon.
Em grego, assim como no alemão Zeug ou no francês instrument, esse termo designa um tipo específico de realidade. É nesse sentido que ele aparece nas enumerações de Aristóteles, que reúnem tudo o que é organon para contrastar com tudo o que não é. Assim, a cidade deve ter um tamanho determinado, e o mesmo acontece com “todas as outras coisas, animais, plantas e instrumentos (όργανα)” (Pol., VII, 4, 1326 a 36 f.). O termo organon aqui cumpre a mesma função que skeuos em Platão (cf. Górgias, 506 d 5; Rsp., X, 601 d4). Como podemos ver, seu significado aqui é muito mais amplo do que o de “instrumento”, e ainda mais do que o de “outil” em francês. Estamos familiarizados com as famosas passagens sobre o escravo como um instrumento animado (Pol., I, 4), ou os usos biológicos que se tornaram óbvios para nós no sentido de “órgão” (Bonitz, 521 b 28-522 a 18). Em termos gerais, podemos dizer que tudo o que é útil é um instrumento (cf. Pol., VII, 1, 1323 b 8 mss; cf. KG, 2, 564 (f)). O termo, portanto, tem uma certa tendência a deixar a estrutura restrita dentro da qual seu significado original o relega e a invadir a totalidade do que existe. Os gregos parecem ter se dado conta disso. Em todo caso, lemos em Platão: “de qualquer coisa entre o que é (ὄ τι (…) των οντων), há uma maneira de, dizendo que é o instrumento (οργανον) de algo, passar por ter dito algo convincente” (Polit., 287 d8-e1 Campbell). Podemos, sem dúvida, entender que, de tudo o que existe, podemos dizer que “é para…” alguma coisa. (200) O mesmo se aplica a coisas que não foram feitas para um propósito específico, ou mesmo que não foram feitas de modo algum: podemos dizer que o sol existe para iluminar, que a água existe para beber etc. Esse “para” aparece do ponto de vista da vida concebida como o fato de ser vivo: somente uma pessoa viva pode considerar o que existe como tendo um propósito. É por isso que “a vida requer muitos instrumentos” (Pol., VII, 8, 1328 b 6 f.). Chamei a atenção para essa passagem em outro lugar e sugeri que a análise heideggeriana do Zeug poderia ser caracterizada como um aprofundamento desse fato de “viver” que Aristóteles não investiga mais. Podemos citar outro texto suscetível de uma interpretação desse tipo: Aristóteles, que observa que todo discurso (logos) é significante, especifica que “não o é como instrumento (ούχ ώς ὄργανον δέ), mas (…) por convenção” (De int., 4, 17a1). É claro que ele está contrastando a fala, que só significa quando se torna um sinal de reconhecimento (symbolon), com uma propriedade que ela possui por natureza (2, 16a 26-28). Tendo dito isso, o que não parece levantar nenhuma dificuldade, a que Aristóteles está se referindo quando menciona a natureza “significante” do instrumento? Aqui estamos reduzidos a conjecturas. Seja qual for o resultado, não é impossível que a análise de Heidegger sobre a ferramenta, segundo a qual “na estrutura ‘para’ há uma referência (Verweisung) de algo para algo”, tenha surgido de uma reflexão sobre a sentença de Aristóteles. E é altamente provável, além disso, que Aristóteles tenha percebido a estrutura do “para” que pode constituir tudo o que é como um instrumento.