Na conferência [Da Essência da Verdade->GA9], pronunciada pela primeira vez em 1930, Heidegger põe em questão o conceito tradicional de verdade. Esclarece as suas condições de possibilidade e mostra que esse conceito repousa sobre uma verdade mais original, a verdade do ser.
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A) O conceito corrente de verdade
.— A verdade, no sentido corrente, consiste na adequação ou na concordância entre uma representação e o seu objeto. Um juízo verdadeiro é um juízo conforme ao seu objeto: vertias est adaequatio intellectus et rei. Esta concepção da verdade, como acordo entre o intelecto e a coisa, atravessa toda a história da filosofia ocidental desde Platão. De uma ponta à outra da tradição ocidental, à excepção talvez do primeiro começo do pensamento com os pré-socráticos, a verdade consiste na concordância (homoiosis de um enunciado (logos) com a coisa.
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B) A condição de possibilidade da concordância
. — Heidegger começa por pôr em questão esta definição tradicional da verdade que, sendo olhada mais de perto, não é tão evidente como parece. O enunciado verdadeiro, dizemos nós, concorda com a coisa. Mas como um enunciado, que é uma realidade de ordem mental ou psicológica, pode estar de acordo com uma coisa que dele difere toto genere? A relação do enunciado verdadeiro com a coisa não pode consistir, como é claro, numa pura e simples identidade. «Enquanto esta relação», diz Heidegger, «permanecer indeterminada e não fundada na sua essência, toda a discussão sobre a possibilidade ou a impossibilidade, sobre a natureza e o grau dessa adequação se desenrola no vazio» (Questions I, Paris, Gallimard, 1968, p. 169). Na realidade, e está aí a primeira descoberta de Heidegger, o enunciado não é uma realidade subsistente, mas um ato ou um comportamento. O enunciado não subsiste independentemente do seu objeto, mas refere-se a ele logo à primeira vista revelando-o enquanto isto ou aquilo. Trazendo à luz a natureza «intencional» do enunciado, Heidegger resolveu bem a questão da relação do enunciado com a coisa, mas não trouxe ainda à luz a possibilidade da sua concordância. Com efeito, o enunciado, para ser verdadeiro, não deve apenas manifestar a coisa, mas também manifestá-la tal como ela é. Isto supõe que ele se possa regular por ela, e portanto que a coisa seja já manifesta de alguma maneira. Este revelamento da coisa produz-se sempre num «comportamento (Verhalten)» do ser-aí, quer dizer numa relação antepredicativa do ser-aí com a própria coisa. «Todo o comportamento», diz Heidegger, «se carateriza pelo fato de que, estabelecendo—se no seio do aberto, ele atém-se sempre ao que está manifesto como tal» (Ibid., p. 170). É apenas no seio do aberto de um comportamento, que não é necessariamente um comportamento teórico, mas é a maior parte do tempo prático ou afectivo, que as coisas, antes de tudo, nos encontram. A aperidade do comportamento é a condição de possibilidade da conformidade do enunciado e da coisa, e possui por consequência «um direito mais original», diz Heidegger, «de ser considerado como a essência da verdade» (Questions I, Paris, Gallimard, 1968, p. 171). «A verdade», acrescenta ele, «reside originalmente no juízo» (Ibid., p. 172).
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C) A liberdade como a essência da verdade
. —A coisa com a qual o ser-aí lida durante este ou aquele comportamento não pode, contudo, ser o objeto de um juízo, a menos que o ser-aí não se perca nela, mas recue diante dela para a deixar manifestar-se naquilo que ela é. Noutros termos, a coisa só pode servir de medida para o juízo se o ser-aí se tornou previamente livre face a ela, isto é, se ele a deixou ser o que ela é. E a razão pela qual Heidegger pode dizer, numa fórmula um pouco paradoxal, que deu lugar a bastantes contra-sensos, que «a essência da verdade repousa na liberdade» (Ibid., p. 173 ).
Heidegger não quer dizer com isto, com efeito, que a verdade estaria submetida ao arbitrário e ao capricho humano. A liberdade de que aqui se trata não é a simples ausência de constrangimento, a liberdade da indiferença, de que Descartes nos dizia que era o mais baixo grau da liberdade. Não é também a liberdade racional no sentido da obediência à lei que se fixou. A liberdade como essência da verdade consiste no fato de deixar o ente que se manifesta no aberto do comportamento ser o ente que ele é. «A liberdade descobre-se…», diz Heidegger, «como o que deixa-ser o ente» (Ibid., p. 175). Esta expressão «deixar-ser o ente» não se deve prestar, por sua vez, a mal-entendidos. Ela não quer dizer que o ser aí, deixando-ser o ente, se afastaria. «Deixar-ser significa oferecer-se (Sicheinlassen) ao ente» (Ibid., p. 175). Dando-se ao ente, o homem preserva ou toma ao seu cuidado o seu estado desvelado. A liberdade, como exposição ao estado desvelado do ente, é a essência da verdade, pois é ela que, deixando o próprio ente manifestar-se naquilo que é, torna possível toda a concordância do enunciado.
Até aqui, a análise de Heidegger ficou bastante próxima da que era desenvolvida em O Ser e o Tempo. No seu tratado, Heidegger denuncia igualmente o carácter segundo e derivado da verdade como conformidade do enunciado com a coisa e regressa a uma verdade mais originária que não era nada mais que a aperidade constitutiva do ser-aí. O ser-aí está fundamentalmente aberto ao ente como tal, e esta abertura era, no tratado, a verdade originária precedendo e condicionando todo o acordo do enunciado com a coisa. Esta aperidade constitutiva do ser-aí recebe, na conferência [Da Essência da Verdade->GA9], o nome de liberdade. Todavia, nesta conferência, Heidegger dá mais um passo, pois reconduz a liberdade ou a aperidade do ser-aí, a verdade originária de O Ser e o Tempo, a uma verdade ainda mais originária, a do ser ele mesmo (ou do ente na totalidade). E no cumprimento deste passo suplementar, que se situa entre os §§ 5 e 6 da conferência, que reside a viragem propriamente dita.
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D) A não-verdade originária: o mistério
. — O ser-aí descobre a cada momento o ente no aberto de um comportamento. Contudo, só pode deixar ser o ente que se manifesta deste modo se dissimular ao mesmo tempo o ente no seu conjunto. «Na medida», diz Heidegger, «em que o deixar-ser, em cada um dos seus comportamentos, deixa ser o ente ao qual se refere, e assim o desvela, dissimula o ente na totalidade. O deixar ser é em si e ao mesmo tempo uma dissimulação» (Questions I, Paris, Gallimard, 1968, p. 182). Esta dissimulação do ente em totalidade não procede, na realidade, do ser-aí, mas resulta da essência do ser. Ela é mais anterior que todo o comportamento humano e que toda a revelação deste ou daquele ente, mais anterior ainda, diz Heidegger, que o deixar-ser ele próprio. Esta dissimulação do ente na totalidade constitui o que Heidegger chama a não—verdade originária ou ainda o mistério (das Geheimnis). A não-verdade originária não tem nada a ver com uma qualquer inexatidão da representação. A não-verdade originária não tem uma significação lógica, mas «ontológica». Designa o velamento ou a dissimulação do ente na totalidade, ou ainda do próprio ser. A não-verdade não é, deste ponto de vista, o contrário da verdade, mas faz parte da sua essência integral. A plena essência da verdade, compreendida como desvelamento do ente enquanto tal na totalidade, inclui nela própria a sua não-essência (Un-wesen). A verdade enquanto des-velamento está intrinsecamente referida à não-verdade, quer dizer ao velamento. A verdade originária é de essência privativa.
Heidegger encontra um traço desta concepção privativa da verdade como desvelamento na palavra à aletheia pela qual os primeiros gregos designavam a verdade. A verdade, enquanto aletheia, designa o que foi subtraído (a-privativo) à ocultação (ao esquecimento: lethe). Letheia significa desvelamento. Dando como nome à verdade aletheia, os primeiros gregos tiveram o pressentimento da essência originariamente privativa da verdade, o que não quer dizer, porém, que eles tenham elaborado expressamente uma tal concepção da verdade.
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E) A contra-essência da verdade: a errância
. — Heidegger distingue da não-essência (Un-wesen) da verdade, o mistério, a contra-essência (Gegen-wesen) da verdade, a que ele chama a errância. «A errância», diz ele, «é a contra-essência fundamental da essência originária da verdade» (Questions I, Paris, Gallimard, 1968, p. 187). A errância não é o erro, mas designa um modo de ser fundamental do ser-aí no qual o ser-aí, esquecendo o mistério, quer dizer, a dissimulação do ente na totalidade, insiste junto do ente encontrado no horizonte da preocupação quotidiana. Errante, o homem agarra-se ao ente que encontra imediatamente e desvia-se do que torna possível este próprio encontro, a saber, o velamento do estado desvelado do ente no seu conjunto. O erro, no sentido da não conformidade de um juízo, não é, neste ponto de vista, senão uma maneira entre outras, e além disso a mais superficial de errar. O menosprezo e os equívocos de todo o gênero desdobram-se sobre o fundamento do esquecimento do mistério inerente à verdade do ser. «A errância», diz Heidegger, «é o teatro e o fundamento do erro» (Ibid., p. 187). O esquecimento do mistério não é, porém, imputável à fraqueza ou à desatenção do homem, como se este se desviasse, por simples negligência, da dissimulação do ente na totalidade. Pertence à dissimulação o dissimular-se a si mesma. A errância não é, então, um fenômeno de origem antropológica, mas resulta da essência privativa da verdade do próprio ser. «A dissimulação do que é dissimulado e da errância», diz Heidegger, «pertencem à essência originária da verdade» (Ibid., p. 188).
Esta «dedução» do fenômeno da errância representa um passo decisivo relativemente a O Ser e o Tempo, onde a errância, que aparecia sob os auspícios da queda do ser-aí, era, no fim de contas, inexplicável. Ela era um modo de ser do ser-aí que nada, a priori, podia justificar. Se bem que o ser-aí tenha nele a possibilidade de existir autenticamente em vista dele próprio, ele estava sempre já «caído» junto ao ente intramundano. Na conferência Da Essência da Verdade, Heidegger funda a errância sobre a essência privativa da verdade do ser. Pertence à verdade originária, ou seja, ao desvelamento do ente no seu conjunto, não apenas velar-se, mas velar o seu velamento, e esta é a razão pela qual o homem, antes de tudo, erra junto do ente intramundano.
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F) A verdade da essência como essência da verdade
. — «A questão em direção da essência da verdade», diz Heidegger no parágrafo terminal da conferência Da Essência da Verdade, «encontra a sua resposta na proposição: a essência da verdade é a verdade da essência». Esta proposição é algo de mais e algo de diferente que um simples paradoxo. Ela indica que a verdade da essência, isto é, o des-velamento ou ainda o surgimento do ser é a essência, a condição de possibilidade, da verdade, quer dizer do acordo entre a proposição e a coisa. E a razão pela qual Heidegger devia inicialmente completar a conferência [Da Essência da Verdade->GA9] por uma outra que teria tido por título Da Verdade da Essência. Esta conferência encalhou, todavia, pelas mesmas razões que o levaram a interromper O Ser e o Tempo, quer dizer, porque o pensamento não se tinha libertado suficientemente da metafísica. Para o fim da sua obra, Heidegger voltará ao problema da verdade abandonando a busca ainda metafísica da «essência» que guiava a conferência de 1930, e conceberá a verdade originária, de onde deriva a verdade lógica como conformidade, no sentido da Lichtung, quer dizer da clareira ou da abertura do próprio ser. «E somente», diz Heidegger, «no elemento da Lichtung, na clareira do Aberto, que a própria verdade e o pensamento podem ser o que são. Evidência, certeza de todo o grau… movem-se já no domínio do aberto» (Questions IV, Paris, Gallimard, 1976, p. 134).
A verdade, no sentido da Lichtung, designa a abertura ou a eclosão do próprio ser, que permite ao ente aparecer naquilo que ele é e à representação de se conformar a ele. Esta caraterização da verdade no sentido de Lichtung não contradiz, mas aprofunda, a sua determinação anterior como desvelamento. O pôr em evidência por Heidegger de uma forma mais originária da verdade que a simples verdade lógica da proposição não tem simplesmente como objetivo, para falar propriamente, assegurar um fundamento ao conceito corrente de verdade mas, antes de tudo, de encaminhar o pensamento para a essência do próprio ser. O ser é, no seu fundo, desvelamento, abertura, eclosão na presença: a verdade do ser é a verdade originária, o ser ou a essência da verdade. Podemos dizer que todo o pensamento ulterior de Heidegger, enquanto meditação sobre a verdade do ser, é uma tentativa para cercar a natureza dessa essência «veritativa» ou «epifânica» do ser, tentativa que desemboca numa concepção renovada da coisa e do mundo na conferência [A Coisa->GA7] de 1950.