Bornheim (1976) – Introdução ao filosofar (2)

(Bornheim1976)

II Análise da Admiração Ingênua

Devemos analisar inicialmente o fenômeno da admiração tal como se verifica em sua manifestação primária, em seu primeiro desabrochar, ainda dentro de um horizonte de ingenuidade e espontaneidade, buscando-lhe as características mais fundamentais. Quais são estas características e como compreendê-las?

A primeira é o sentido de abertura que a acompanha. E a dimensão desta característica pode ser elucidada a partir de um comportamento antiadmirativo por excelência e em um sentido radical: referimo-nos à atitude pessimista. Pois o pessimismo consiste no fato de que o homem não sente admiração — por não querer ou não poder — diante de nada. Ou melhor: só constitui surpresa, para ele, o fato de que haja pessoas que se admiram. E assim mesmo, esta modalidade de admiração pessimista vem acompanhada de um sentimento de comiseração, de piedade e mesmo de revolta, que solapa a natureza última da postura admirativa. A expressão “admiração pessimista” implica, pois, um sentimento contraditório.

Interessa-nos aqui apenas o pessimismo ingênuo, que surge quase como manifestação instintiva ou como vontade ainda inexplicitada de pessimismo. Nietzsche faz distinção entre o pessimismo da inteligência e o pessimismo da sensibilidade.1 O primeiro, diríamos nós, vem unido a uma interpretação da realidade, apresentando-se, frequentemente, explicitado em uma doutrina ingênua mais ou menos desenvolvida, ou expressando-se, agressivamente, em certas fórmulas como “nada há de novo sob o sol”, “tudo se repete monotonamente”, “melhor fora não ter nascido do que suportar a miséria da vida”, etc. Recusa-se, portanto, a realidade, buscando-se a sua neutralização, porque nada revela, nem esconde sentido algum, e toda tentativa de compreensão do real incide em um malogro. A modalidade de recusa da segunda forma de pessimismo — à qual, talvez, de um ponto de vista genético, fosse redutível a primeira — mais do que pensar a realidade, sofre-a como um mal, manifestando-se como uma espécie de alergia ou de inconformismo vivido. Ela pode ser considerada ingênua, no sentido de que se processa em um plano pré-crítico, coincidindo com um certo grau de apatia.

A marca precípua deste pessimismo ingênuo é um comportamento afetado de uma desconfiança básica e, portanto, profundamente negativo diante da realidade. Ora, na admiração ingênua nós encontramos exatamente o oposto. Se o pessimismo é uma recusa ao real, a admiração é a semente que começa a reconhecer um sentido neste mesmo real, Se o pessimismo é a vontade que teima sobre si própria, na admiração brota o primeiro gesto de abertura do homem para uma realidade que o transcende. Não há ressentimento ou desgosto, mas gosto, afeição, pela realidade, que se revela em uma atitude receptiva, de disponibilidade pura.

Na admiração, verifica-se um simpatizar, no sentido etimológico da palavra, um sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presença insofismável, porque,. longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença. Já neste sentido podemos compreender as palavras de Heidegger: “Semelhante deixar-ser significa que nós nos expomos ao ente como tal e que nós transportamos ao aberto todo o nosso comportamento”2. Este expor-se faz com que sintonizemos com a realidade, de tal maneira que o ato de expor-se e o deixar-ser o real, o aberto, se entrelaçam, permitindo entender como a admiração ingênua se processa sobre um fundo amoroso, raiz última que em seu silêncio deixa a realidade falar. Es liebt in uns, conforme a feliz expressão utilizada por Peter Wust.3

O dar-se do homem se combina, assim, com o dar-se do real, e a admiração supõe esta total reciprocidade na confiança. E por real, realidade, se deve entender aqui não apenas o mundo da natureza, mas também a esfera do homem, bem como a sua obra, o mundo da cultura: realidade, portanto, na acepção mais ampla da palavra. Tudo o que tem força de ser é passível de admiração.

Na admiração, pois, encontramos a primeira abertura do homem para o real. Convém, contudo, adentrar um pouco mais nossa análise em torno dessa característica do ato admirativo como um abrir-se. Diz ainda Heidegger: “A palavra deixar-ser o ente, necessária aqui, não pensa, porém, em omissão e indiferença, mas em seu contrário”. E, no mesmo texto, logo mais adiante: “O deixar-se-entrar no desvelamento do ente não se perde neste, mas desdobra-se em um retorno diante do ente, a fim de que este se manifeste no que é e como é e tome dele a medida de sua adequação”.4 Quer dizer, o dar-me ao real e o deixar-ser o real implicam em uma intimidade de participação, de tal modo que “le monde est tout au dedans et je suis tout hors de moi”, segundo a expressão de Merleau-Ponty.5 Esta presença não pode, porém, ser compreendida como uma espécie de fusão entre o eu admirante e a realidade admirada. Quem admira não se dissolve na realidade que admira, nem esta se desfaz naquele. Pois, bem ao contrário, o que caracteriza a admiração é o reconhecimento do outro como outro, e porque eu o reconheço enquanto tal posso admirar-me. Não se trata de confusão, e sim de um respeito cujas raízes mergulham em uma inocência ingênua e piedosa.

Compreende-se, assim, Nietzsche, quando afirma: “O pessimista perfeito seria aquele que compreende a mentira, mas é, ao mesmo tempo, incapaz de desfazer-se de seu ideal: abismo entre querer e conhecer”6. É precisamente este abismo que não se verifica na admiração ingênua, pois no ato admirativo o ideal e o real como que coincidem, e, por isto mesmo, a realidade se manifesta ao admirante como dotada de plenitude de sentido. E não só se desfaz o abismo entre o querer e o conhecer, mas o pessimismo, como toda e qualquer modalidade de comportamento egocêntrico, é anulado.

Assim, a primeira característica da admiração ingênua é a afirmação, compreendida como abertura, do outro como outro, que releva do sentimento de pura disponibilidade, amorosa e desinteressada. Esta disponibilidade, se traz em seu seio o reconhecimento do outro como outro, do diferente como diferente, nos conduz a uma segunda característica da admiração, pressuposto fundante da primeira: a consciência.

Num fragmento de Pascal podemos ler: “Os animais não se admiram”.7 A importância e a verdade desta observação de Pascal não podem ser exageradas. O animal vive de tal modo imbricado em seu meio ambiente, que todo o seu comportamento se determina por um imanentismo funcional. Por isto, a adaptação plena do animal ao seu meio ambiente e a sua possibilidade de sobrevivência coincidem com a sua impossibilidade de destacar-se da natureza, de tomar distância do “seio que o gerou”, para usar uma expressão de Rilke.8 O fato de não poder distanciar-se do meio que o cerca, de não poder reconhecê-lo como heterogêneo e de não lhe ser possível, em consequência, adotar um comportamento indicativo, constitui precisamente o abismo que separa o animal do homem, abismo que se impõe como um fato irrefutável. O animal apenas age; o homem age e sabe que age.9 É o mesmo Pascal quem afirma ainda: “O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque ele sabe que morre, e conhece a vantagem que o universo tem sobre ,ele; e disso o universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e da duração, que não saberíamos ocupar”.10

Dentro desta perspectiva, a peculiaridade, a distinção, o que torna, propriamente, o homem um ser distinto, reside no fato de ele possuir consciência, e sua importância é tão evidente, que torna ridícula qualquer tentativa de relegá-lo a um segundo plano: “Não é no espaço que devo procurar minha dignidade”, diz Pascal.11 Colocada a consciência, nos situamos já no “próprio nervo de todo o fenômeno humano, instalamo-nos no segredo do homem, isto é, em sua interioridade, pois o homem se sabe homem, e este saber-se vai afetar, transformar profundamente toda a sua relação com o mundo exterior à sua consciência. E assim, se a consciência de si, reflexiva, só é, geneticamente falando, segunda, todavia a consciência ingênua ou natural, espontaneamente voltada para fora de si, só pode ser justificada admitindo o pressuposto da subjetividade, da interioridade, ou seja: deste saber-se em sua intimidade.

Ora, esta consciência ingênua apresenta-se com duas características básicas, que permitem compreender a sua estrutura.

A primeira é a distância. O homem sente-se cu sabe-se separado daquilo que o cerca. Esta distância, contudo, para ser aquilatada, não se deve confundir com a que se verifica entre duas exterioridades. Se o homem pudesse ser considerado como pura exterioridade, dissolver-se-ia a consciência, e ele passaria a ser coisa entre coisas. Se, ao contrário, pudesse ser reduzido à interioridade pura, desapareceria a distância característica da consciência encarnada. Como, porém, a interioridade, o saber-se em sua intimidade, não se processa com uma pureza total, a distância resulta em termos de uma ambiguidade radical.

Por um lado, a consciência está toda tendida para fora de si, orientada para as coisas, para o mundo, habitando-o e sentindo-se em casa nele, pactuando, consequentemente, com a exterioridade. .Mas, por outro lado, este pactuar jamais implica em um confundir-se com a realidade. A consciência é de tal natureza, que em seu ato não permite a fusão, a penetração completa no mundo; ela permanece sempre consciência, decorrendo daí o irremediável da distância, do’ abismo que a separa daquilo que lhe é exterior. E precisamente nesta duplicidade de aspectos reside a sua ambiguidade, o caráter de sua relação com o mundo: uma interioridade exterior e uma exterioridade interior, — presença ausente e ausência presente. Neste sentido, comparada com a vida animal, pode-se mesmo afirmar que a vida humana é como que atingida por uma inadaptação profunda.

A segunda característica da consciência ingênua esclarece estes aspectos e permite compreender melhor o seu caráter relacional. Própria da consciência humana é a experiência da heterogeneidade, isto é, a experiência do radicalmente outro, do diferente a si e em si mesmo. Pois na interioridade do próprio ato de tensão da consciência para o exterior, de coincidência com o mundo, este exterior me repele, e me repele na medida exata em que consigo penetrá-lo. Toda penetração, assim, não passa de uma faca de dois gumes, que não tarda em manifestar a separação entre homem e mundo. Compreende-se então, que o mundo se imponha, neste sentido, como heterogeneidade reconhecida como tal,, ao contrário do que acontece na vida infra-humana, onde a heterogeneidade não chega a ser objeto de um ato de reconhecimento.

Theodor Litt, referindo-se ao problema12, fala do homem como sendo uma totalidade destotalizante, no sentido de que, se , tende a unir-se ao mundo, este o rejeita, estabelecendo-se um dualismo, uma unidade rompida, que frustra no homem qualquer possível vontade de entrega, no sentido de auto-despossessão. A consciência torna o mundo objeto, pois o reconhecimento da heterogeneidade é precisamente o que faz afirmar o mundo como objeto contraposto a um sujeito. Por isto mesmo, compreende-se que a distância não possa ser considerada como sendo fictícia, mera ilusão ou uma ponte provisória, qualquer coisa que possa vir a ser reparada. Bem ao contrário, a distância reveladora da heterogeneidade pertence à própria estrutura da consciência, pois a rigor nós não somos consciência, mas conscientes, e aqui reside o fundamento de toda comunicação e de todo diálogo. Pretender, em nome de satisfações oníricas, ou de algum mito naturalista de integração plena — passada ou futura — do homem na natureza, é pretender nada mais nada menos que suprimir ou enfraquecer a consciência, e, consequentemente, o próprio homem.

Voltando agora ao nosso tema, é importante salientar que, já na experiência da admiração ingênua, deparamos com aquelas duas características da consciência espontânea há pouco indicadas. Realmente, a admiração supõe distância, ruptura de toda imanência e entrega ao transcendente. Já a palavra o diz bem: ad-miratio. Eu só me admiro na medida em que meu comportamento implica em um processo de distanciação diante do objeto admirado, em que esta realidade se apresenta, portanto, como objeto. Por isto, compreende-se que não se possa verificar o fenômeno da admiração’ onde não existe vida consciente.13

A consciência revela-se, assim, como o pressuposto fundamental, fundante, de todo ato admirativo. E assim como o sentimento de distância, por outro lado, não menos presente, está o sentido de heterogeneidade, o reconhecimento do outro como outro. E somente a partir desta visão do diferente, pode especificar-se o comportamento admirativo. Pois, se todo ato da consciência apresenta-se comprometido com um objeto, este compromisso se pode verificar em uma gama extremamente variada de possibilidades, que se estendem desde a afirmação absoluta até a recusa, a negação. Peculiar à admiração é, como vimos, a abertura ao real admirado em uma dimensão puramente afirmativa.

Na admiração ingênua encontramos, portanto, um ato de confiança, de fidelidade amorosa, que tende a reduzir a distância própria da consciência a um mínimo, no sentido de que a admiração não sofre com a separação entre consciência e objeto, pois, bem ao contrário, entrega-se sem reservas, donde o seu caráter de ingenuidade, de inocência, de degustação desprevenida do real. Donde também o seu caráter dogmático, quase religioso, de piedade, de oração natural, de exteriorização de uma bondade inata, tal como o compreendia Goethe naquele seu conceito de Erbtugend14, intimamente ligada a um sentimento de respeito. A admiração sempre supõe certo grau de excepcionalidade, de imprevisto, que se destaca de uma familiaridade rotineira. O heterogêneo é vivido como algo de extraordinário, de modo que o excepcional seja sabido como excepcional, incontaminado, resguardado de tudo o que cai fora de sua esfera, nutrindo o sentimento de piedade e respeito que se quer como tal, como fascínio que não admite o desrespeito, que vela o ser admirado de tudo o que possa desmerecê-lo ou desvirtuar a piedade do sentimento.15

A consciência constitui, portanto, a segunda característica da admiração ingênua, e tal característica é que permite compreender aquela primeira dimensão que já caracterizamos, ou seja: aquela modalidade de afirmação do real admirado.

Mas, devemos fazer progredir a nossa análise e procurar saber a razão de ser desta presença da consciência, com o fito de aclararmos a dimensão última e o significado humano mais radical da experiência da admiração. Isto nos leva ao estudo de sua terceira característica.

Dissemos que a consciência distingue o homem, tornando-o outro que um simples animal. Dissemos também que a consciência, por sua vez, atua como um pressuposto básico da admiração ingênua. Com a finalidade de alcançarmos o significado último desta admiração, vamos prosseguir a nossa análise, distinguindo, inicialmente, a admiração de outras atitudes do homem, que lhe são aparentadas.

A admiração ingênua não se identifica com a experiência do pasmo. Este é mais primitivo, implicando num certo sentimento de confusão diante do real; e se há no pasmo certo grau de abertura, este permanecer aberto coincide com um autodescontrole, uma modalidade de perder-se a si próprio, que Ferrater Mora denomina de “embobamiento”. E embora este comportamento não deva ser desprezado, “o pasmo” — diz ainda o mesmo autor — “está mais próximo ao puro apetite — que se sacia com a confusão — do que ao respeito — que se contenta com o distanciamento”.16 Pode, portanto, haver algo do pasmo na atitude admirativa, mas esta se verifica em plano mais elevado.

Outro comportamento que também não deve ser confundido com a admiração é a surpresa, mais elevado, contudo, do que o pasmo. “O pasmo” — explica Ferrater Mora — “nos colocava na presença das coisas, suspendendo nossa decisão de utilizá-las e abolindo por um momento o orgulho de conquistá-las, mas as coisas vistas só eram indistintamente maravilhosas. A surpresa, ao contrário, suprime toda indecisão e toda indistinção; quando as coisas nos são não apenas atraentes, mas também problemáticas, estamos em vias de passar da iminente confusão do desejo à respeitosa distância do amor.”17 Se a surpresa tem a capacidade de-nos desarmar — e isto a aparenta com a admiração — por outro lado ela implica em um certo imprevisto, que, com intensidade maior ou menor, também nos descontrola, embora não de um modo tão indeterminado quanto o pasmo.

No mais, tanto o pasmo quanto a surpresa processam-se indiferentemente em relação a um significado afirmativo ou negativo, Um gesto magnânimo ou um assassinato, por exemplo, podem provocar pasmo ou surpresa. A admiração ingênua, ao contrário, refere-se exclusivamente ao que tem uma significação positiva, afirmativa. Se um assassinato pode suscitar admiração, ela se refere, por exemplo, à perícia com que o mesmo foi executado, mas nunca aos aspectos propriamente danosos e imorais, negativos, do assassinato. Neste sentido, .verifica-se, no pasmo e na surpresa, uma modalidade de atitude indiferençada, que não encontramos na admiração. Um comportamento desprezível, para dar mais um exemplo, é inacessível à admiração; mas no fundo do mais desprezível dos homens, ainda há suficiente humanidade para despertar em outrem uma atitude admirativa. Por outro lado, dentro de seu sentido profundamente afirmativo, a admiração pode abranger a amplidão de todo o real, coincidindo com a totalidade das coisas existentes.

Se, portanto, pode haver muito do pasmo e da surpresa na admiração ingênua, devemos reconhecer nesta uma dimensão e uma humanidade muito maiores. Mas se fizemos estas breves comparações foi tão-só com o fito de chamarmos a atenção para a exclusividade humana de todos estes comportamentos. Se fosse possível falar em pasmo ou surpresa em um plano puramente animal, não se poderia esquecer uma distinção que nos parece fundamental: a realidade humana possibilita uma entrega a estas experiências, ao passo que no animal, bem ao contrário, mais do que propriamente entrega, desencadeia-se um processo de reação, sempre determinado pela rotina de uma necessidade de sobrevivência, que pode ser compreendida como refúgio imediato na Umwelt.

A especificidade humana das três experiências apontadas lhes advém do importantíssimo fato de estarem ligadas ao primeiro despertar da vida consciente do homem. Estamos diante de comportamentos nos quais se verifica o surto original de uma atitude humana espiritual. Integrado o homem inicialmente no “seio que o gerou”, suas potencialidades espirituais desabrocham, em toda a sua virgindade, pela primeira vez, de um modo ainda trêmulo e indeciso, na atitude admirativa. Por isto, a consciência natural ou espontânea, em sua primeira manifestação, longe de implicar em um juízo afirmativo ou em uma auto-afirmação clara e definida, processa-se em um território intermediário, nascendo em um claro-escuro, mergulhado, por um lado, nas trevas do inconsciente, e, por outro, na luz que começa a debater-se em busca de seu triunfo.18

Neste sentido, podemos dizer que a importância da admiração ingênua assume uma densidade metafísica, pois nos defrontamos aqui com o princípio que empresta ao homem a sua humanidade. Se o próprio da animalidade é o seu prolongar-se na natureza, dentro das exigências de uma adaptação plena que lhe são próprias, a partir da experiência da admiração ingênua, porém, o espírito começa a revelar-se como uma realidade sobreposta à natureza em um sentido estrito, impondo-se em uma espécie de aseidade.

Podemos penetrar um pouco na natureza desta aseidade, a partir de um fragmento de Frederico Schlegel, que vale como uma definição da natureza humana: “O homem é um retro-olhar criador da natureza sobre si própria”.19 No fenômeno de consciência encontramos a raiz que possibilita este retro-olhar; e a primeira modalidade deste comportamento radica precisamente na admiração ingênua. Pode-se dizer que o homem é o momento de ruptura da natureza, pois no homem ela como que pára e se contempla, olhando sobre e para si própria, momento decisivo e fundamental, que pode ser caracterizado como respeito. Pois respeito, re-spectus, implica justamente neste olhar para trás. Evidentemente, não se trata de um respeito tal como se encontra em um comportamento altamente diferençado; mas de um respeito todo imbuído de um sentimento de piedade, de agradecimento e de amor, exteriorizado em uma atitude contemplativa, que sobrepõe o homem a toda e qualquer dimensão de uma pragmaticidade exclusivista, necessidade de admirar é a necessidade que tem a inteligência de ajudar o admirado a refletir-se a si próprio, e assim a elevar-se e a libertar-se. Admirar é submeter-se, reconhecer uma autoridade, receber, ser alimentado, receber um fundamento, ser em sua plenitude, ser fecundado afirma Franz von Baader.20

Esta nos parece ser a importância fundamental, precípua, da admiração ingênua. Mas com isto, a par da complexa riqueza desta admiração, ainda estamos longe de poder dar por resolvido o nosso problema da atitude inicial do filosofar. Se a admiração ingênua já apresenta certa importância para a possibilidade do surto da filosofia — e adiante veremos em que sentido —, ‘por si só ela não parece poder suscitar a atividade filosófica. E a razão disto reside justamente na ingenuidade com que se processa, presa a um total dogmatismo. A filosofia é impensável sem sentido de problematização, de espírito crítico, daí que outros caminhos, que não a admiração ingênua, deverão ser percorridos, para que se atinja o problema filosófico. Não caminhes artificiais, pensados e estabelecidos pelo filósofo; estes são métodos interiores ao próprio desdobramento da filosofia. Referimo-nos a caminhos pré-filosóficos, existenciais, que transformem em um problema, não apenas a filosofia, mas a minha própria existência e o mundo que me cerca, no qual vivo, que me obriguem a adotar uma atitude interrogativa, a viver o problema do real como meu problema.

Este sobrepor-se à pragmaticidade pode ser compreendido em uma dupla perspectiva. Na primeira, afirma, como vimos, o plano humano destacando-o da pura animalidade, como prístina manifestação de uma realidade espiritual. Em um segunda perspectiva, permite entender que todo comportamento ingênuo, quotidiano, do homem, envolvido também ele, embora num plano superior ao animal, em interesses pragmáticos, não pode ser reduzido a esta pragmaticidade; pois se é predominantemente pragmático, já há nele elementos que transcendem o utilitário e justificam, como fato, um comportamento desinteressado.

Ora, a grande barreira que impede o sentido da problematização é o dogmatismo da ingenuidade. Precisamos saber quais os caminhos do homem para transpô-la, porém caminhos que se dão no próprio solo em que o homem vive, e que vão condicionar a instauração da filosofia. Para atingirmos este objetivo, devemos, em uma primeira etapa, saber em que consiste este comportamento humano confinado em um horizonte de dogmaticidade. Com isto poderemos conhecer a perspectiva geral dentro da qual surge a admiração ingênua. Mas, por outro lado, analisando este comportamento dogmático, deveremos procurar aquelas experiências humanas que levam a transcendê-lo. O nosso problema seguinte é, portanto, uma análise do comportamento dogmático do homem, comportamento complexíssimo e que deverá ser estudado apenas na medida da projeção que apresente para o nosso tema.


  1. Die Unschuld des Werdens, Der Nachlass II Teil. Stuttgart, A. Kroenet Verlag, 1956. p. 399 ↩

  2. Vom Wesen der Wahrheit GA9. Frankfurt, Klostermann, 1954. p. 15 ↩

  3. Naivitaet und Pietaet, Tuebingen, J. C. Mohr, 1925. p. 57 ↩

  4. Op. cit., p. 14-15 ↩

  5. Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1954. p. 467 ↩

  6. Op. cit., idem, p. 400 ↩

  7. Pensées, fragm. 401, Brunschvieg ↩

  8. Este é o tema central da oitava Elegia de Duíno. Do animal diz o poeta: “O livre animal tem sua morte sempre atrás de si e diante de si Deus, e quando caminha, caminha na eternidade, assim como as fontes caminham”. Do homem, ao contrário, afirma: “Aqui, tudo é distância, e lá era alento”. E mais: ‘Nós nunca temos, nem um único dia, o puro espaço diante de nós, no qual as flores desabrocham infinitamente. Sempre é mundo, e nunca o sem lugar sem nada”. “Pois já a tenra criança, deslocada por nós e forçada a voltar-se e a ver figuras — não o aberto, que é tão profundo no rosto do animal.” O definitivo do homem, segundo o poeta, consiste no seguinte: “E nós: espectadores, sempre, em tudo, a tudo voltados mas nunca para fora”. “A isto chama-se destino: estar do outro lado e apenas isto e sempre do outro lado.” ↩

  9. Veja-se a análise de F. J. J. BUYTENDIJK, in Mensch und Tier (Rowohlts deutsche Enzyklopaedie, Hamburg, 1958). Esclarecendo o problema, o autor afirma, entre outras coisas, o seguinte: “O homem pode resolver a sua ligação a uma situação, pode distanciar-se, perceber a situação objetivamente. E por isto, tem consciência de que um movimento ameaçador orienta-se para ele, e pode esperar o golpe objetivamente; ele não recebe o significado proléptico da ameaça de um modo imediato. A possibilidade de distância em relação a uma situação — e, portanto, a liberdade — falta ao animal. Por isto, mesmo o comportamento de uma criança em face de uma ameaça deve ser distinguido do comportamento de um chipanzé” (p. 49). ↩

  10. Op. cit., fragm. 347 ↩

  11. Op. cit., fragm. 348 ↩

  12. Cf. ref. de JEAN-LOUIS FERRIER, in L’Homme dans le monde, Neuchâtel, ed. à la Baconnière, 1957, p. 75 ↩

  13. Embora não se deva esquecer o que diz Peter Wust: “Parece-nos que a ingenuidade e a piedade prendem-se a uma certa esfera intermediária entre a inconsciência absoluta e a consciência absoluta; aqui também — como nos sentimentos de admiração e respeito — um certo momento de apatia está presente, momento este que não existe na natureza cega”. O mesmo autor, contudo, afirma também que “a atividade do eu é sempre o momento essencial da personalidade; sem esta atividade pessoal, o conhecimento, o amor, o respeito e tudo aquilo que distingue o eu como um ser espiritual, nem podem ser pensados” (in op. cit., respectivamente às p. 20 e 131). ↩

  14. Erbtugend: virtude original, herdada. Escreve Goethe: “Um nobre antepassado (Cícero) diz que a piedade é uma palavra muito grave e muito santa’, e reconhece nela o ‘fundamento de todas as virtudes’ (…). Se, consideradas do ponto de vista dos costumes, certas manifestações da natureza humana nos forçam a ver nela uma espécie de mal radical, de pecado original, outras manifestações há, nesta mesma natureza, que permitem falar em virtude original, em bondade inata, em honestidade, e especialmente certa inclinação ao respeito. Quando esta disposição original, cultivada no homem, chega a se manifestar na atividade da vida, chamamo-la de piedade, como os antigos”. E mais adiante, acrescenta: “Apenas a piedade mantém-se como contrapeso ao egoísmo” (in Goethe Taschen-Lexikon, ed. A. Kroener, 1955. p. 266-267). ↩

  15. “A pura forma do sentimento, ..sua forma original, é a beatitude”, afirma TH. HAECKER (in Métaphysique du sentiment. Trad. A. Guerne. Paris, ed. Desclée de Brouwer, 1953. p. 44). ↩

  16. MORA, José Ferrater. Cuestiones disputadas. Madrid, ed. Revista de Ocidente, 1955. p. 104 ↩

  17. Op. cit., p. 106 ↩

  18. Veja-se a citação de Peter Wust na nota 13 deste capítulo. Em outra obra, Dialektik des Geistes (ed. Benno Filser, Augsburg, 1928), escreve o mesmo autor: “Com o problema do primeiro momento de transição da potencialidade de nosso eu à sua autopossessão ativa, encontramo-nos diante de uma dificuldade toda especial. Uma vez iniciado o processo de atividade espiritual, o eu encontra o seu início quando acorda para si próprio, tendendo persistentemente a transcender-se. Mas se o eu consegue alçar-se da região do inconsciente para a consciência de sua atualidade e atividade, deve então ocorrer, ao menos nas profundidades da alma, um impulso inicial que permita tal transição. Em algum instante deve ocorrer a ruptura real entre a neutralidade do princípio natural e o eu que começa a despertar espiritualmente. Este milagre da ruptura espiritual da alma se realiza através de um sentimento original, que apresenta, aliás, um duplo aspecto. Queremos nos referir ao enigmático ato fundamental da pessoa, ou melhor, à admiração e ao respeito. Este ato pode ser designado como sentimento original, porque através dele o eu atual desprende-se do eu potencial” (p. 202). E nessa mesma obra, mais adiante, acrescenta: “O eu colocou-se em atividade; ainda não se pode falar contudo de uma divisão interna desse eu. O sentimento original deve ser compreendido como auto-solicitação, natural e sadia do eu, e como primeira reação ao não-eu” (p. 205). E ainda: “É na admiração infantil que o nosso espírito desperta Inicialmente para si próprio. Neste ato de ruptura do espírito se rasga a escuridão absoluta do sono natural” (p. 206). ↩

  19. in Kritische Schriften. Muenchen, ed. Hanser, s.d. p. 89. Em outro fragmento diz: “A consciência, o eu, mesmo o saber, é uma ruptura (…)” (in Schriften uni Fragmente. Stuttgart, ed. A. Kroener, 1956. p. 174. ↩

  20. Cit. por EUGÈNE SUSINI, Franz von Baader et le romantisme mystique. Paris, J. Vrin, 1942. p. 12. v. 3 ↩

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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