Bornheim (1976) – Introdução ao filosofar (1)

(Bornheim1976)

I Posição do Problema

O comportamento originante do filosofar e a possibilidade de esclarecer a problemática que tal comportamento coloca, constituem o objeto do presente estudo. Baseado na convicção de que não se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundário ou de menor importância, o autor parte, assim, do pressuposto de que a coloração fundamental de uma filosofia já se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude inicial assumida por todo filósofo. Trata-se, portanto, da problemática implicada no ponto de partida do filosofar.

Referimo-nos ao filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distinção preliminar. A atitude inicial do filósofo determina o caráter último de sua filosofia. Mas esta determinação, profundamente enraizada no ato de filosofar, não deve ser confundida com o problema do primeiro princípio filosófico, com a primeira afirmação, a partir da qual um determinado filósofo poderá alicerçar e desdobrar o todo de seu pensamento, obediente à incoercível tendência para a sistematização, que é inerente à natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro princípio, seja ele de natureza lógica, ontológica, gnosiológica ou de qualquer outro teor, sobressai de uma problemática antecedente e condicionante, que vem a confundir-se com certas exigências existenciais de todo filosofar.

Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes haver estabelecido o cogito como ponto de partida, asserção primeira de toda a sua metafísica, dá a este cogito uma primazia absoluta dentro de uma certa ordem dedutiva. Mas o estabelecimento desse primeiro princípio metafísico radica e corresponde a todo um itinerário prévio. No caso particular de Descartes, tal itinerário é, ao menos parcialmente, conhecido, pois o próprio filósofo nos transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que o levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situação da ciência de seu tempo1. Homem dado a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer “o grande livro do mundo”, a fim de conhecer os costumes de seus contemporâneos, bem como os de povos estrangeiros2, e termina a primeira parte do Discurso do Método declarando: “Tomei um dia a resolução de estudar também em mim mesmo, e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que deveria seguir “.3 Pode-se mesmo afirmar que o itinerário anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com o predomínio de um profundo sentimento de insatisfação, insatisfação que se vai traduzir, de maneira mais específica, nas diversas etapas que constituem o processo da dúvida metódica. Assim, se o cogito é o ponto de partida metafísico da filosofia cartesiana, o filósofo Descartes faz arrancar as suas preocupações de uma série de circunstâncias que vão condicionar todo o seu pensamento.

O problema que o autor deste trabalho se propõe analisar nas páginas que seguem, não é o do cogito ou de qualquer outro princípio semelhante ou de análoga função. Não é tampouco o da legitimidade de um tal ponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é o da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele específico comportamento que leva o homem a ocupar-se de filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sócrates.4)

Ora, desde esta vivência de insatisfação — para nos atermos ao exemplo de Descartes — até “a resolução de estudar”, há um caminho mais longo do que à primeira vista possa parecer, há mesmo todo um itinerário coincidente com a biografia do filósofo. Aliás, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem diz biografia, diz algo de estritamente individual e de inconfundível em sua originalidade: existem tantas biografias quantos homens no mundo. E se assim é, pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer é a história da vida dos filósofos ilustres, transferindo o problema para a extensão da História, sempre inacabada, da Filosofia,e fragmentando-o em um número indefinido de capítulos exemplares.

Contudo, quem se resolve ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resolução, uma certa responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impõe determinadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e irredutível em uma existência individual.5 O caminho do filósofo é um inelutável compromisso com a natureza da filosofia, o que vale dizer: com o próprio sentido do real e de sua verdade. A autenticidade não só de uma filosofia, mas também a de uma vida filosófica, dependem de sua fidelidade ao real.

O estudo da consciência filosófica, desde a sua etapa ingênua e pré-filosófica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas básicas e necessárias de seu desenvolvimento, é o que se propõe, mais especificamente, o autor destas páginas.

Evidentemente, a história da filosofia oferece um rio> e variado material para este estudo, que não deve nem pode ser rejeitado. Se quisermos saber quais as características do comportamento filosófico e da atitude inicial do filosofar, nada mais correto, concreto e evidente do que perguntar aos próprios filósofos, aqueles que construíram o monumento da filosofia. Este inevitável otimismo inicial, porém, não tarda em resultar frustrado, e a decepção invade o pesquisador, logo ao início do trabalho.

De fato, poucos filósofos ocuparam-se do tema ou deixaram transparecer ao menos aspectos de sua biografia espiritual. O que normalmente se observa é que a obra filosófica apresenta-se já pronta, montada nas suas conclusões, deixando completamente de lado, num abandono imponderável para a pesquisa, aquilo que se poderia chamar a pré-história de um determinado sistema filosófico. Encontra-se um desenvolvimento temático, mas, do ponto de vista do comportamento pessoal do filósofo, não se percebe facilmente o que o levou a um tal desdobramento de ideias. Outras vezes, o problema é abordado em umas poucas linhas, quase por acaso, e o tema, longe de ser realmente ventilado, é proposto, já de antemão, como resolvido, levando o leitor a uma série de conjeturas. Ou ainda, vem-nos em socorro uma página de importância secundária, ou um ensaio de juventude ou alguns trechos de correspondência: apenas breves indicações, que permitem vislumbrar, aqui ou ali, um aspecto do problema.

Neste desamparo, a compensação pode vir de alguns poucos pensadores, de tipo existencial, cuja obra, muitas vezes, resume-se em uma espécie de diário íntimo. Por outro lado, a atmosfera geral de uma determinada filosofia pode facultar o acesso à atitude do respectivo filósofo diante da realidade. Assim, a leitura de um Schopenhauer termina por revelar-nos uma postura em face do real profundamente diversa da que encontramos em Nietzsche, por exemplo. Mas, tanto estes filósofos existenciais como aqueles em que podemos discernir através das construções filosóficas uma atitude básica, ao invés de aclarar o nosso problema apenas como que nos advertem da importância fundamental do mesmo, acenando às dificuldades que ele oferece. Em suma, ao cabo de algumas perscrutações ao longo da História da Filosofia, o primeiro e mais iminente perigo que surge é o de dissolver a problemática da atitude filosófica inicial em alguma modalidade de relativismo, afogando a questão nas brumas da história.

Uma falsificação do problema consistiria em dissolvê-lo na diversidade de Weltanschauungen, quer dizer, em compreender a filosofia como o espelho que dá unidade cultural a uma determinada época. E isto em nome do bem conhecido argumento que diz que a filosofia das concepções do mundo, fazendo soçobrar a problemática filosófica dentro de certos limites do horizonte histórico, só pode fazê-lo em nome de uma filosofia, e esta, por sua vez, coloca, em pé de igualdade com qualquer outra, o problema de sua validez. E, dentro da perspectiva que estamos examinando, este historicismo também não poderia fugir, como qualquer outra modalidade de filosofia, ao problema da atitude inicial do filosofar.

Vale dizer que a legitimidade da filosofia não pode obedecer a uma pesquisa reduzida ao estritamente histórico, pois se se trata de legitimidade, o plano meramente histórico, a quaestio facti, revela-se por definição insuficiente e deve ser transcendido. Ou bem a perspectiva historicista, em qualquer de suas modalidades, é correta, e neste caso o nosso problema a rigor não existe, pois se confundiria simplesmente com uma espécie de culturologia ou tipologia, exigindo da filosofia a abdicação de seus foros de ciência: ela não passaria, portanto, de uma espécie de morfologia filosófico-cultural, que jamais seria total e completa, incidindo naquela fragmentação a que nos referimos acima; ou então, contrariamente, devemos admitir o erro em que incide o historicismo, impondo-se a tarefa de julgá-lo — transcendendo-o consequentemente — assim como se julga qualquer outra filosofia.

Portanto, se quisermos manter de pé o nosso problema, somos obrigados a dar razão a Husserl, quando, em uma de suas obras, distingue filosofia e Weltanschauung: “A história, a ciência empírica do espírito em geral, é incapaz de decidir com seus próprios meios, em um ou outro sentido, se se pode distinguir a religião como forma particular de cultura, da religião como ideia, isto é, como religião válida; se é necessário distinguir da arte, forma da cultura, a arte válida; do direito histórico o direito válido; e finalmente se é necessário distinguir entre a filosofia no sentido histórico e a filosofia válida; se há ou não entre uns e outros a relação da ideia, no sentido platônico da palavra, com a forma velada de sua aparição”.6 Embora não possamos aceitar integralmente o extremo rigorismo desta distinção, típica do “cientificismo” do Pai da Fenomenologia, cabe reconhecer que o próprio Husserl não deixa de acentuar o imenso valor da história para o filósofo.7

De fato, para o problema em discussão, o mérito fundamental do historicismo, além da enorme riqueza de material que possa oferecer a sua modalidade de pesquisa, consiste, malgrado as suas limitações, em ter recolocado o problema da natureza da filosofia, bem como o da atitude inicial do filosofar, que decorre daquele. Pois se tocamos aqui no problema do historicismo, não é para mostrar a incompatibilidade de uma posição imanentista em face da natureza própria da filosofia — que foge ao tema proposto — porém para destacar ainda mais a importância da motivação na atitude inicial do filosofar. E aqui temos um problema que, se mergulha profundamente em condições sócio-culturais,se determina sobretudo a partir do telos que lhe é próprio: a busca da verdade.

Não é, à maneira de Husserl, o problema da validez da filosofia que nos vai interessar. Se recusamos legitimidade à tese historicista, é porque nos sentimos mais libertos para acentuar uma característica do problema sobre a qual deveremos insistir ao longo deste trabalho: referimos-nos à densidade existencial que acompanha necessariamente o filosofar; e, como é óbvio, a dimensão existencial do homem não pode ser dissociada de sua profunda e fundamental historicidade. Precisamente em relação à radical historicidade do ser humano, o historicismo desfalece e se revela insuficiente.8

Mas abordemos o problema sob um outro aspecto: o do surto histórico do pensamento filosófico. A deficiência fundamental deste tipo de análise é a sua objetividade alienadora. Não se respeita nela a distinção entre o comportamento filosófico e o comportamento do historiador da filosofia, ou seja, daquilo que Heidegger chama de Philosophiewissenschaft.9 Sem dúvida, a análise histórica é imprescindível; é ela que nos permite aceder ao condicionamento possibilitador de certa etapa do desenvolvimento da filosofia. Contudo, embora reconheçamos a necessidade de tal tipo de análise, importa salientar aqui a sua radical insuficiência. O fato forçoso de haver a filosofia surgido em um determinado momento da cultura ocidental não é suficiente para considerar a explicação desse fato como um problema coincidente com o da atitude inicial do filosofar. Na verdade, o problema colocado dentro da moldura da origem histórica da filosofia — mesmo se deixarmos de lado o caráter de particularidade inerente a tal tipo de elucidação — contribui muito menos do que à primeira vista parece para a temática do filosofar.

Por mais que se busquem causas históricas para explicar a gênese do pensamento filosófico, por mais ricas que sejam as conclusões alcançadas neste domínio, sempre sobrará um resíduo irredutível e por assim dizer refratário à explicação causal: sempre cairemos na necessidade de aludir a um “milagre grego”.

Diante da possibilidade dessa investigação histórica, dois parecem ser os caminhos básicos que podem ser seguidos.

O problema consiste em buscar as causas históricas da filosofia e da cultura grega, e o primeiro caminho implica em fazer um inventário das influências extra-gregas — egípcias, babilônicas, fenícias, persas, etc. — que tenham contribuído para a formação do mundo grego. Mas na medida em que esse tipo de explicações for coroado de sucesso, o fenômeno mesmo que se quer explicar esvai-se, pois dissolve-se a originalidade da cultura grega, no sentido de que se reduz o grego a elementos pré-gregos. Impõe-se, então, o reconhecimento de que a especificidade da cultura grega permanece inexplicada, e assim, por mais ricas que sejam as análises, subsiste o fato de que esta cultura é diferente das outras culturas da época.

O outro caminho, que permanece aberto, é o da tentativa de uma explicação interna, desde dentro da própria Grécia, do original grego, para chegar, assim, à origem da filosofia antiga. As análises aqui se enriquecem e podem ser conduzidas pelos mais diversos pontos de vista: filológico, literário, religioso, artístico, econômico, político, etc. Mas a riqueza dessas análises não consegue, aqui também, elidir aquele resíduo que permanece sempre inexplicado. Realmente, a ciência do individual, do histórico, não tem fundo, daí por que uma análise da cultura grega permanecerá sempre insatisfatória. Não há ciência, não há intuição, não há amor, que possa fazer um indivíduo compreender de maneira absoluta um outro indivíduo, seja pessoa ou fato cultural, histórico. A asserção de Heráclito é rigorosamente válida: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos “.10

Se abrimos esse parêntese sobre a perspectiva histórica na consideração da origem do pensamento filosófico, não foi, evidentemente, para roubar a virtude própria desse tipo de análise, mas para mostrar a sua radical insuficiência na abordagem do problema que nos interessa. A nosso ver, o que a história não pode fornecer, podê-lo-á uma análise de ordem antropológico-existencial, radicada, portanto, no comportamento daquele ser que faz e é responsável pela filosofia. Para isto, devemos pagar o preço próprio de todo conhecimento científico, isto é, devemos ficar no plano do geral. Mas é precisamente a possibilidade de permanecer nesse plano do geral que permite pôr a descoberto a extensão universal da atitude originante do filosofar, e deste modo vinculá-la a todos os que penetram no âmbito filosófico, sejam gregos ou não, ressalvadas, evidentemente, as peculiaridades de cada indivíduo, e respeitadas as circunstâncias históricas.

Afirmamos acima que, se quisermos saber da atitude inicial do comportamento filosófico, o caminho que se impõe de imediato é consultar os filósofos. Realmente, se desejarmos perceber, de maneira mais concreta, a complexidade do problema, lancemos mão, por um instante, de certos exemplos que nos oferece a História da Filosofia.

Olhando sobre o passado da filosofia, deparamos com certas atitudes básicas, predominando diversamente, umas ou outras, em cada filósofo. Karl Jaspers destaca três destas atitudes11, que talvez não sejam as únicas possíveis, mas que são encontráveis com certa frequência, resguardadas diferenciações por vezes fundamentais:

a) A primeira atitude nos vem da Grécia clássica. Platão e Aristóteles pretendiam ver na admiração o impulso inicial de todo filosofar. No comportamento admirativo o homem toma consciência de sua própria ignorância; tal consciência leva-o a interrogar o que ignora, até atingir a supressão da ignorância, isto é, o conhecimento.

b) A segunda atitude Karl Jaspers a encontra na dúvida, podendo-se apontar, Descartes como sendo o seu representante clássico. Neste comportamento, a verdade é atingida através da supressão provisória de todo o conhecimento ou de certas modalidades de conhecimento, que passam a ser consideradas como meramente opinativas. A distinção grega entre doxa e episteme tem a mesma raiz. A dúvida metódica aguça o espírito crítico próprio da vida filosófica, e nisso reside a sua eficácia.

c) Finalmente, a terceira atitude implica no sentimento de insatisfação moral. Se em seu comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o cerca, a filosofia se impõe como tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em si e pergunta pelo sentido de sua própria existência. O mundo exterior é abandonado em consequência de um sentido de insatisfação, levando o homem a tomar consciência de sua própria miséria. Assim Epíteto, por exemplo, quando escreve: “O princípio da filosofia, para aqueles que se dedicam a esta ciência como deve ser (…), é a consciência de sua própria fraqueza e de sua impotência nas coisas necessárias “.12

Sem dúvida, nessas três modalidades de atitude há muito de verdade, no sentido de que elas são encontradas em todo filósofo, em um grau maior ou menor, a despeito da possível predominância de uma ou outra sobre as demais. Na admiração encontramos um comportamento de abertura o mais espontâneo e original possível do homem diante da realidade. Sem a dúvida, não chega a se desenvolver o indispensável espírito crítico, que deve acompanhar toda tarefa de ordem filosófica. E pela inquietação moral, fundamenta-se o filosofar em seus aspectos éticos.

A síntese dessas três atitudes poder-se-ia. constituir, talvez, no ideal do complexo comportamento inicial do filósofo, desde que se verificasse dentro de um determinado equilíbrio. Este sentido de síntese apresenta-se, ao menos, como primeira e tentadora solução em face da pluralidade de comportamentos. Mas tal equilíbrio dificilmente pode ser verificado, porque as atitudes •— tomadas em si mesmas, enquanto atitudes, e na medida em que uma, como de fato acontece, predomina sobre as demais — reclamam um certo grau de exclusividade, levando-as, em consequência, a se repelirem. E a síntese, nesse caso, se possível, já não coincidiria com o impulso inicial, mas seria, muito mais, o fruto de um trabalho de reflexão sobre o problema, incidindo em um dever-ser abstrato; ou então, colocando essa diversidade de atitudes sobre outras bases, teríamos a descrição de múltiplas experiências, constitutivas todas do filosofar.

Esta diversidade, contudo, não pode ser posta de lado por nós, mas impõe-se precisamente como o material que deve ser explicitado para a compreensão do problema. Com isto queremos dizer que o impulso inicial do filosofar, longe de constituir um problema de uma peça só, apresenta-se como um todo complexo, cujos aspectos fundamentais devem atender às próprias características básicas da natureza da filosofia.

A referência a aspectos e a possibilidade de falarmos no predomínio de uma atitude sobre as demais decorrem do fato de que se empresta a uma atitude maior valor que às outras. Ora, é nessa diferenciação valorativa que reside o cerne do nosso problema, pois podemos e devemos então perguntar qual delas apresenta caráter de maior fundamentalidade, em função da natureza da filosofia, e como deve ser compreendida esta fundamentalidade dentro da diversidade de aspectos. O presente ensaio pretende mostrar que o elemento originante e precípuo do filosofar, não obstante a inalienável complexidade do fenômeno, reside na atitude admirativa.

Realmente, tomadas em si mesmas, todas as três atitudes apontadas revelam-se insuficientes e parciais. A dúvida, tal como se apresenta em um Descartes, supõe já um estágio bastante adiantado da filosofia, ou melhor, supõe outras filosofias. Apenas a partir de uma saturação de conhecimentos e de pontos de vista existentes, pode a dúvida surgir e impor-se com necessidade. Mas se supõe esse relativo ceticismo frente a outros conhecimentos propagados, diante de uma pluralidade de filosofias ou de concepções de vida que se contradizem, então a dúvida passa a ser uma decorrência daquela saturação; e assim a constituição da filosofia suporia já uma indispensável existência de filosofias, suporia ao menos a vigência de determinadas maneiras de ver o real. A dúvida, consequentemente, parece ser sempre secundária, não se justificando, portanto, sem uma fundamentação anterior. Por isso mesmo, a predominância da atitude da dúvida liga-se, facilmente, ao excesso de espírito crítico.

O mesmo pode ser dito da insatisfação moral, com a seguinte agravante: se a “consciência da própria fraqueza” consegue aguçar o espírito para o problema do homem, muito frequentemente leva a circunscrever a problemática filosófica a esse problema, e o sentido de totalidade, próprio da filosofia, é, assim, restringido. Neste caso, a filosofia iria incidir em um moralismo. Quanto à admiração, parece que, embora também insuficiente para explicar a complexidade do impulso inicial do filosofar, atende à exigência precípua de abertura para o real, de primeiro despertar em face de v.ma realidade que deverá ser pensada pelo filósofo.

Se razões dessa ordem mostram que a dúvida e a insatisfação moral não estão isentas de parcialidade e até mesmo de algum desvio em relação a certas exigências da filosofia, não há, contudo, como excluí-las deste todo que é o comportamento filosófico, o que, naturalmente, desaconselha a decidir, sem mais, pela prioridade da admiração.

A complexidade deste problema da atitude inicial do filosofar nos é revelada mais amplamente se considerarmos alguns dos pontos de vista sobre a matéria expressos por Aristóteles, que foi um dos primeiros a ver na admiração a fonte do filosofar. Não é fácil, diga-se desde já, julgar a posição aristotélica.13 Assim, logo no início do primeiro livro de sua Metafísica, refere-se a diversos aspectos da origem do filosofar, sem revelar, porém, nessas indicações, a preocupação de unificá-las com organicidade maior, dando mesmo a impressão de que o problema para ele não apresenta maiores dimensões. Vejamos algumas destas indicações presentes no corpus aristotelicum.

Já a primeira frase da Metafísica liga todo o conhecimento — e, portanto, também a filosofia — com o desejo: “Todos os homens desejam naturalmente saber “.14 E Aristóteles vê uma confirmação disto no “prazer causado pelas sensações”, especialmente a visual. Aliás, o ver e o conhecer, na Grécia antiga, estão intimamente ligados, como o mostra a etimologia das palavras que designam o ato de conhecer.15

Uma segunda indicação, que se segue imediatamente à primeira, é a exclusão, no filosofar, do comportamento prático, utilitário, interesseiro. A segunda frase da Metafísica assevera: “O que o mostra é o prazer causado pelas sensações; pois, fora mesmo de sua utilidade, elas nos agradam por si próprias, e, mais do que todas as outras, as sensações visuais. Com efeito, não somente para agir, mas mesmo quando não nós propomos nenhuma ação (…)”.16 E mais adiante, referindo-se ao primeiro homem que descobriu uma arte, afirma que “não foi somente em razão da utilidade de suas descobertas, mas por sua sabedoria e sua superioridade sobre os outros. Depois as artes novas se multiplicaram, dirigidas, umas para as necessidades da vida, as outras para o seu prazer; e sempre os inventores destas últimas artes foram considerados como mais sábios que os outros, e isto porque as suas ciências não tendem à utilidade. Assim se explica que todas essas diferentes artes já estavam constituídas quando foram descobertas as ciências, que não se aplicam nem ao prazer, nem às necessidades, e nasceram primeiro nos países onde reinava o ócio “.17 Em outras passagens, insiste Aristóteles neste seu ponto de vista, e a sua preocupação fundamental parece ser sempre a mesma: a de não confundir a atitude filosófica com o utilitário, o prático, em qualquer de suas dimensões. E quando fala em ócio, não nos diz propriamente o que entende por esta palavra, ou melhor, ele só a especifica de maneira negativa, como sendo o não-prático, e nada mais. Mais do que ressaltar o ócio, Aristóteles parece estar sobretudo preocupado em excluir do comportamento filosófico enquanto tal, qualquer dimensão utilitarista, pois se refere a este aspecto em quase todas as abordagens do tema.

Uma terceira indicação encarece a importância do comportamento admirativo. Num texto muito denso e complexo, escreve Aristóteles: “É, com efeito, a admiração que leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica.. No início, sua admiração voltava-se para as primeiras dificuldades que se apresentavam ao espírito; depois, progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigação a problemas mais importantes, tais como os fenômenos da lua, os do sol e das estrelas, e enfim à gênese do Universo. Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância (por isto o amante dos mitos é, em certo sentido, amante da sabedoria, pois os mitos são compostos de maravilhas)”.18 Aristóteles não dá margem a dúvidas: a admiração é o elemento fundamental da gênese do filosofar.

Mas o comportamento admirativo enlaça-se com um quarto aspecto: Aristóteles liga a admiração à consciência da ignorância, que brota da percepção de uma dificuldade obviamente de caráter intelectual. A vivência da admiração apresenta-se, portanto, condicionada; além disto, é destituída de ingenuidade. O que Aristóteles faz, em verdade, é afirmar a admiração como a atitude responsável pela gênese da filosofia enquanto desperta no homem a consciência da ignorância através da percepção de uma dificuldade; mas o Estagirita não se detém nesta rede de problemas, deixando de lado, em especial, a análise da natureza da admiração. Pode-se até mesmo dizer que ele dá a impressão de proceder de acordo com uma longa tradição sobre a matéria, cujo ponto de partida já se encontraria no gosto ou no amor ao mito, ideia presente no texto acima citado através de uma inter-relação de palavras, que liga o amante dos mitos ao amante da sabedoria. Deixando de lado o intrincado problema das relações entre o mito e a filosofia19, é curioso observar, contudo, que o único filósofo anterior a Aristóteles a mencionar o tema da admiração —Platão — também sugere uma relação entre mitologia e filosofia: “A verdadeira marca de um filósofo é o sentimento de admiração que tu experimentas. Realmente, a filosofia não tem outra origem, e aquele que fez de íris a filha de Thaumas, não é, parece-me, um mau genealogista”.20

Talvez não seja tão» difícil unir o desejo de saber, o desinteresse, a ignorância, a admiração e o mito, tais como aparecem nas primeiras páginas da Metafísica, embora se deva permanecer alerta contra juízos fáceis e apressados em relação a este aspecto da doutrina aristotélica. Mas, em outras passagens de sua obra, Aristóteles nos dá ainda outras indicações sobre o problema, e, de maneira especial, há uma que nos parece inquietante e escapa à serenidade clássica do início da Metafísica. Referimo-nos ao que se lê no volume intitulado Problemas, do corpus aristotelicum, quando fala “sobre a Inteligência, o Espírito e a Sabedoria”.21 Nestas páginas, pergunta Aristóteles por que pertence a melancolia ao ser do filósofo. Entre os melancólicos coloca ele os poetas, os artistas, os guardiães da comunidade humana e sobretudo os filósofos, considerando, entre os de tempos recentes, Empédocles, Platão e Sócrates como melancólicos típicos.22 Distingue a melancolia natural da melancolia doentia, e refere-se aos diversos tipos de caráter daqueles cujo temperamento é melancólico por natureza.23 O importante a salientar nestas páginas de Aristóteles é a compreensão da vida filosófica a partir deste seu ethos que é a melancolia.24

Como se vê, o problema em Aristóteles está longe de ser simples, e talvez seja até mesmo insolúvel. Realmente, não nos diz como relacionar a admiração com a experiência da melancolia. E os problemas se impõem: porque a melancolia implica em uma espécie de desgosto, um tornar o homem solitário, mas de uma solidão que exige dele a abertura para a compreensão do real. Tal como a descreve Aristóteles, há, na experiência da melancolia, um esforço, ou melhor, ela adquire dimensão filosófica a partir deste esforço. Na admiração, ao contrário, deparamos com um comportamento no qual predomina o passivo, o receptivo. A melancolia, quando desprevenida, está mais voltada para o interior, ao passo que a admiração muito mais para o exterior.

Como conciliar estes aspectos? Ou melhor: existe a possibilidade de conciliação, ou se trataria, muito mais, em Aristóteles, de duas posições distintas, assumidas, talvez, em etapas diversas de sua vida?25 E mais: como se compreende que uma experiência como a da melancolia possa levar o homem a abraçar a tarefa filosófica? Se a melancolia acentua a solidão, ela como que desliga o homem do mundo. A admiração, bem ao contrário, parece caracterizar-se por uma abertura ao mundo, e consequentemente por uma ruptura com qualquer tipo de experiência melancólica. Qual destas duas atitudes é a mais fundamental? Se as duas têm as suas razões de ser, qual delas corresponde melhor à índole da filosofia? Ou seriam ambas momentos integrantes do filosofar? Mas neste caso, de que maneira? Como se processa esta integração?

Com o que dissemos até aqui, cremos ter conseguido, ao menos, explicitar qual é o nosso problema e indicar certos aspectos que permitem avaliar a sua complexidade. Para responder a todas as questões que colocamos acima, devemos realizar uma série de análises. Iniciaremos com o problema da admiração em sua modalidade mais simples, isto é, a admiração ingênua. Para esta análise não é suficiente distinguirmos diversos tipos de admiração ou de comportamentos que lhe são aproximados, assim como se distingue, tão frequentemente em manuais de filosofia, uma admiração passiva da admiração ativa. Impõe-se, muito mais,, acompanhar o processo interno da admiração, os elementos que lhe são constitutivos, para procurarmos saber, em seguida, se esta experiência atende ao problema da atitude inicial do filosofar, se deve ou não ceder o seu lugar a alguma outra modalidade de experiência, como a dúvida ou a melancolia, ou se estas outras experiências não se integram, em algum sentido que deve ser verificado, no processo total da consciência filosófica diante do real.


  1. “Já há algum tempo percebi que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e que aquilo que depois fundamentei em princípios tão mal assegurados, só poderia ser muito duvidoso e incerto; de modo que me era necessário empreender seriamente, uma vez por todas, a tarefa de me desfazer de todas as opiniões que até então recebera em minha crença, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (…) — Agora que meu espírito está livre de todo cuidado, e que consegui um repouso seguro em uma solidão agradável, esforçar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir de um modo geral todas as minhas antigas opiniões.” (In Oeuvres et lettres. Paris, Bibliothèque de la Pleiade, 1952. Méditations touchant la première philosophie. p. 267.) E ainda: “Nada direi da filosofia, a não ser que, vendo que foi cultivada pelos mais excelentes espíritos que viveram desde muitos séculos, e que a despeito disto nela nada se encontre que não seja objeto de disputa e. consequentemente, que não seja duvidoso (…)” (Idem. Discours de la méthode, p. 130). ↩

  2. “(…) dediquei o resto de minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a frequentar pessoas de diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me nos encontros que a sorte me propunha, e em tudo fazer tal reflexão sobre as coisas que se apresentavam, que delas pudesse tirar algum proveito. Pois parecia-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um faz sobre aquilo que lhe importa, e cuja realização logo o punirá se julgou mal, do que nos raciocínios que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum, e que não trazem talvez outra consequência que permitir tanto maior vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, por suporem maior emprego de espírito e de artifício no esforço de torná-las verossímeis. E tive sempre um extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhas ações e caminhar com segurança nesta vida” (Idem. p. 131). ↩

  3. Idem. p. 132 ↩

  4. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. 29a e 31d. — Em carta a Niethammer, a esposa de Hegel atribui a seu marido as seguintes palavras: “Ser condenado por Deus a ser um filósofo!” (cit. por HERRMANN GLOCKNER. Hegel. Stuttgart, Fr. Frommanns Verlag, 1954. p. 273. v. 1. ↩

  5. Podemos dizer, com MONTAIGNE, que “cada homem traz em si a forma inteira da condição humana” (Essais. Paris, Bibliothèque de la Plèiade, 1950. p. 900). ↩

  6. Veja-se todo o texto de HUSSERL sobre o problema, in La philosophie comme science rigoureuse. Trad. Quentin Lauer. P. U F., 1955. p. 106 até o fim. O texto citado está na p. 102 e segs. Logo em seguida pergunta: “Como poderia, pois, o historiador decidir sobre a verdade dos sistemas filosóficos dados e sobretudo sobre a possibilidade em geral de uma ciência válida em si? (…) Quem nega um sistema determinado não é menos obrigado a dar razões do que quem nega a possibilidade de todo sistema filosófico enquanto tal”. E mais adiante acrescenta: “A história como tal não pode sequer provar a afirmação segundo a qual até agora não houve filosofia científica alguma; ela só pode prová-lo por outras fontes de conhecimento, e estas já são filosóficas”. E mais: “Toda crítica verdadeira e penetrante já fornece meios de progresso, indica idealmente o caminho para fins e meios verdadeiros e, consequentemente, para uma ciência objetivamente válida. Naturalmente, deve-se acrescentar a tudo isto que a impossibilidade histórica de defender uma posição espiritual como um fato nada tem a ver com a impossibilidade de defendê-la do ponto de vista da validez”. ↩

  7. “Gostaria assim mesmo de insistir expressamente sobre o fato de que eu reconheço plenamente o imenso valor da história, no sentido mais largo da palavra, para o filósofo” (Idem. p. 106). ↩

  8. Numa perspectiva histórica, o problema vem à tona no itinerário que conduz de Dilthey a Heidegger. Leia-se, por exemplo, a lúcida análise de LUDWIG LANDGREBE, in Philosophie der Gegemvart. Bonn, Athenaem-Verlag, 1952. p. 104 e segs. ↩

  9. Einfuehrung in die Philosophie. Tuebingen, M. Niemeyer Verlag, 1953. p. 9. Com muita razão escreve GABRIEL MARCEL: “Sem dúvida, um filósofo deve ‘saber’ a História da Filosofia, mas, segundo o meu ponto de vista, quase exatamente no sentido em que um compositor deve saber harmonia; (…) o filósofo que capitulou diante da História da Filosofia não é, por isto mesmo, um filósofo” (Du refus à l’invocation. Paris, Gallimard, 1940. p. 87). ↩

  10. Cf. DIELS. fragm. 45 ↩

  11. Introduction à la philosophie. Trad. Jeanne Hersch. Paris, Pion, 1952, p. 15-18 ↩

  12. Entretiens. Trad. Joseph Souilhé. Paris, Les Belles Lettres, 1946. t. 2. p. 41 ↩

  13. Nas observações que se seguem não pretendemos, a rigor, “julgar” a posição de Aristóteles e muito menos interpretar os diversos elementos que ele aponta como constitutivos do problema que nos ocupa; isto suporia análises mais amplas e um levantamento de toda a obra do Estagirita. Buscamos tão-só chamar a atenção para certas dimensões do problema referidas por Aristóteles, a fim de mostrarmos mais amplamente a densidade da questão. ↩

  14. Metaphysics. Trad. H. Tredennick. London, Loeb Classical Library, 1947. A, 1, 980a. ↩

  15. Ver sobre o assunto BRUNO SNELL. La cultura greca e le origini dei pensiero europeo. Trad. V. D. Alberti. Einaudi, 1951. p. 22 e segs ↩

  16. Op. cit., Idem ↩

  17. Op. cit., Idem 981b ↩

  18. Op. cit., Idem, 982b ↩

  19. J. Tricot, na sua tradução da Metafísica (Paris, J. Vrin, 1953, p. 17) cita o seguinte raciocínio de Ross: “O mito está cheio de fatos que excitam a admiração; quem admira pensa que. é ignorante; quem se crê ignorante deseja ‘a’ ciência; portanto, o amante dos mitos é um amante da ciência (um filósofo, no sentido etimológico)”. O problema se adensa porque o amante dos mitos por excelência é o poeta, sendo o mundo dos mitos o objeto da primeva poesia grega. Por outro lado, Bruno Snell, na p. 60 da obra acima citada, sugere uma relação entre a admiração e o sentimento religioso próprio dos gregos; pois, concluindo a sua análise, diz: “Surpresa, maravilha e admiração são os sentimentos que o aparecer da divindade desperta no homem de Homero”. E logo depois, pergunta: “O ato da oração não é acaso também para os gregos dos séculos posteriores um gesto de admiração?” ↩

  20. PLATÃO. Theeteto, 155d. ↩

  21. Problems. Trad. W. S. Hett e H. Rackham, London, Loeb Classical Library, 1957. t. 2. cap. XXX, 953a até.957a ↩

  22. Op. cit., 953a ↩

  23. Op. cit., 954a, b ↩

  24. Há um interessante comentário de WILHELM SZILASI a este e outros textos correlatos de Aristóteles, in Macht und Ohnmacht des Geistes, Bem, A. Francke Ag., 1946, p. 229 e segs. A certa altura de seu comentário, escreve Szilasi o seguinte: “A melancolia do filósofo não é doença, mas sua natureza (physis). ou seu hábito (ethos) (955a40; 954a27). A melancolia, enquanto doença, só pode ser compreendida a partir da existência. Pois toda doença é a desmedida de um momento latente do ‘ethos’, que permanece encoberto no estado de saúde. O que pertence à natureza de um homem pode tornar-se doente, e isto acontece quando a doença dá independência a um determinado elemento da natureza própria, fazendo deste elemento o desmedido. Mas é errado falar em doença quando toda a natureza do homem é por si mesma desmedida, quando é a própria natureza que transborda no desmedido (935a38). Pois a natureza é demoníaca e não divina (463b14). No transbordamento, ela vai além de si. Assim, também a embriaguez torna manifestas certas propriedades do caráter, quando as leva ao excesso (953a32, b25). Mas quem é por natureza desmedido, isto é, quem tem sua existência determinada pelo excesso, para atingi-la não precisa de motivação exterior; sua melancolia e sua embriaguez são originais e permanentes.

    “Entre aqueles cujo excesso provém de sua natureza — autênticos melancólicos pelo poder de sua natureza — encontramos os filósofos. O que é, então, a melancolia, que funda o heróico e o filósofo, vinculando ambos ao sentimento da noite e à compreensão do sonho?” (refere-se ao ensaio de Aristóteles intitulado Da divinação quanto ao sono, 2, 463b 12 — 464b 18). “À essência do melancólico pertence uma missão, que ele recebe de Deus, para lutar, como Héracles e Belerofão, contra os seres que habitam as trevas ameaçadoras; ou para lutar, como Aias, contra si próprio e o mundo que o cerca, isto é, contra a insensibilidade e a indolência do coração.” E mais adiante: “Os filósofos, esses heróis da condição humana, esses melancólicos pela desmedida de sua condição, como Empédocles, Sócrates, Platão, receberam também eles uma missão dos deuses, isto é, do todo do ente — uma missão irrealizável, que os demais nem chegam a compreender (…). Uma missão que só deixa feridas, abertas não pelos outros, mas pela grandeza de sua incumbência, como vingança do mistério em que penetraram e que buscam esclarecer.

    “É a missão de ir além da condição humana, a fim de que apreenda o ser do todo e o todo do ser, a fim de que — contra a destruição que decorre do destino cotidiano, contra o erro, a loucura e o acanhamento — se prepare para o único fundamental: participar de tal modo do todo, que a participação seja visão do todo, contato com sua unidade, compreensão do ser. Para.isto, a existência deve estar apta a sair de si, a desaparecer para si e para as exigências mundanas; a dissolver .os laços que a ligam aos entes, laços que impedem o perguntar filosófico do ser e que lhe permitem alcançar no máximo a entidade do ente; deve encontrar a solidão que conduz ao encontro fundamental.

    “(…) O que torna o filósofo melancólico é esta luta em duas frentes: a escuridão da noite, que abriga em si tudo o que ameaça e destrói, mas que é, por outro lado, o regaço do mistério; e a luta deve ser mantida ao mesmo tempo contra o que ameaça e a favor do mistério — a mais heróica de todas as lutas. A melancolia da filosofia une a coragem e a sensibilidade, coragem contra a noite e sensibilidade para a noite (isto é, para o nada) (464a32), a fim de que a condição humana seja preservada e que a mensagem seja recebida. A melancolia dá ao filósofo o poder de enfrentar os perigos da noite; permite-lhe também conhecer, indo além dos claros limites de cada instante, o princípio unificador do todo. Por isto, exercita a sua sensibilidade com o longínquo, como os atiradores que aprendem a atingir alvos distantes.

    “Assim, educa sua vigilância para salvar da noite e conquistar para o dia (464a12). Vive na luz, para a iluminação do ser; suporta, porém, a noite, talvez pesadamente; conhece-a bem, tanto em suas ameaças quanto em suas possibilidades de revelação. Sua existência reconquista constantemente o limite. A melancolia encontra o seu fundamento num saber: o saber que, facilmente, a posse do ser do todo reverte ao nada.

    “Foi dentro deste mesmo horizonte aristotélico que o mais grego dos filósofos modernos, Nietzsche, interpretou a sua própria existência: ‘Sou um adivinho? Um sonhador? Um ébrio? Um intérprete de sonhos? Um sino da meia-noite?’. São as mesmas palavras de Aristóteles. E ainda estas sobre a noite: ‘Nela se revelam coisas que não devem ser ouvidas durante o dia; na fresca brisa, quando se acalmou o barulho de vossos corações — então a noite fala. . .’. Também Aristóteles diz que a noite é o elemento do filósofo, do melancólico (464a)”. (P. 301 a 304 do livro de Szilasi. ↩

  25. Sabe-se que a versão que veio até nós dos Problemata não foi escrita, em grande parte ao menos, pelo próprio Aristóteles, mas por discípulos seus. Sabe-se também que Aristóteles escreveu um livro com este mesmo título, e pode-se constatar, através dos autores que fazem referência à obra perdida, que o conteúdo de ambas é o mesmo. E especialmente a parte que diz respeito ao temperamento melancólico é considerada aristotélica por Plutarco e por Cícero (cf. o estudo introdutório de W. S. Hett, da edição acima citada). ↩

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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