(AKRS)
Era preciso, primeiramente, libertar-se abertamente da hipoteca ao «psicologismo» e é a essa tarefa que o primeiro tomo das Investigações Lógicas, Prolegômenos à Lógica Pura, será consagrado, apresentando o segundo tomo um estudo dos «vividos» actuantes na lógica e no conhecimento, ou ainda os modos de consciência ou atos correlativos às «objetividades ideais da lógica».
Os Prolegômenos aplicam-se, primeiramente, a inventariar os erros e contradições do psicologismo (bem como das concepções empiristas e antropológicas na lógica) e a opor-lhes argumentos tirados da essência mesma da lógica, isto é, da sua idealidade. Afirmar a dependência do lógico relativamente à natureza humana e à constituição do nosso espírito é negar a ideia de verdade e, por conseguinte, encerrar-se no círculo do relativismo. Se as leis do pensamento dependessem de leis causais naturais, não poderiam ser-nos dadas senão como probabilidades e não com a necessidade e a universalidade que as caracterizam. A expressão «leis do pensamento» trai, aliás, por si mesma, a essência do lógico, que é tão pouco normativa como natural. Essas leis são ideais, dizem respeito ao objeto ou ao conteúdo do pensamento. A polêmica travada por Husserl convida, portanto, a uma conversão de atitude e é nesta conversão que reside o interesse central dos Prolegômenos. O objeto do matemático e do lógico é dado numa evidência que não é menor que o sentimento psicológico da evidência, mas a consciência da «coisa mesma». A essência (ou objeto ideal) é um objeto de consciência como qualquer outro objeto; distingue-se como invariante, da multiplicidade das representações subjetivas. Com a abstração idealizadora ou ideação a permitir chegar, através de variações livres, até ao núcleo essencial, os Prolegômenos, restauram, por novos caminhos, a ideia de verdade e uma ontologia que o psicologismo, e também uma filosofia como o kantismo, tinham contribuído para desacreditar.
Contra os psicólogos, e para precisar o que ele mesmo já adiantara na sua Filosofia da Aritmética, Husserl reafirma que os conceitos e as leis matemáticas não se originam numa psicologia, ainda que sejam acessíveis nos atos psíquicos: o número 5 não é o resultado da numeração de 5 objetos, mas sim «a espécie ideal de uma forma que encontra em certos atos de numeração os seus casos particulares concretos». Contra Kant, e a concepção de uma síntese a priori engendrando o número numa intuição pura, mas sensível, Husserl distingue o número, enquanto ideia ou espécie, da singularidade intuitiva que serve de base e de ilustração ou exemplo.
Numa tal evidência, o que doravante é visado (e o caso do número pode ser imediatamente alargado a outras espécies ideais, a cor vermelha, por exemplo) «não é o intuído enquanto todo, nem a forma que lhe é inerente, ainda que não seja separável para si mesma, […] mas antes a espécie formal ideal que, em sentido aritmético é absolutamente una […] e que, assim, não participa, de forma alguma, na contingência dos atos com a sua temporalidade e instabilidade» (Investigações Lógicas, I, p. 189). Assim, e é um resultado essencial dos Prolegômenos, uma teoria pura das idealidades, tal como os matemáticos contemporâneos, retomando as fecundas perspectivas de Leibniz e Bolzano, tentam concebê-las sem recurso a uma construção na intuição sensível, deixa de constituir mistério. A consciência de uma necessidade da essência ao nível dos conceitos e das leis actualizadas na evidência dão a certeza de que não nos encontramos aqui perante uma linguagem sem conteúdo. Mais genericamente, fica assim definida uma ciência das relações entre objetividades ideais, uma «ontologia formal».