(…) a categoria da vivência (Erlebnis) pretende tomar o posto daquilo que o primeiro Sartre chama de consciência (Gewissen), isto é, daquela realidade avassaladoramente translúcida, um quase-absoluto que encontra o seu fundamento no nada (Nichts) e que constitui, pode-se dizer, o objeto exclusivo de O Ser e o Nada. Pois a consciência é agora engolida pela vivência. Não que o conceito de consciência desapareça de O Idiota da Família 1, mas ele se rarefaz e passa a ser tão-somente como que o satélite de uma realidade mais ampla, ou de um núcleo que confina com o opaco. Ouçamos Sartre: a vivência “não designa nem os refúgios do pré-consciente, nem o inconsciente, nem o consciente, mas o terreno sobre o qual o indivíduo é constantemente submergido por si mesmo, por suas próprias riquezas, e no qual a consciência tem a astúcia de se determinar a si própria pelo esquecimento”.2 E ainda, de modo mais abrangente: “O que chamo de vivência é precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco a si mesmo porque ele é uma constante totalização, e uma totalização que não pode ser consciente daquilo que ela é. Pode-se, com efeito, ser consciente de uma totalização exterior, mas não de uma totalização que totaliza igualmente a consciência. Neste sentido, a vivência é sempre suscetível de compreensão, jamais de conhecimento”.3 [BORNHEIM, Gerd. O Idiota e o Espírito Objetivo. Porto Alegre: Editora Globo, 1980]