Borges-Duarte (2022) – Ereignis

A abordagem decisiva baseia-se na concepção heideggeriana de Ereignis. Em seu uso, desde a época dos Beiträge (GA65), essa noção aprofunda e abrange o que inicialmente pretendia ser indicado pelo termo Dasein, em sua poderosa riqueza conceitual. Não apenas, portanto, em sua dimensão de “ser-aí”, que capta a facticidade (Faktizität) do ser em sua modalidade humana, tendo de ser o que já é lançado ao ser e ao projeto em sua circunstância intramundana, mas também e sobretudo seu “ser-aí”, como caráter primordial, claramente sublinhado na carta a Jean Beaufret de novembro de 1945, que antecede a muito mais famosa “Carta sobre o Humanismo” (GA9) de dezembro de 1946.1 A verdade é que a derrocada do projeto de Ser e Tempo levou Heidegger não apenas à elaboração do que ele chamou de “história do ser” (Seinsgeschichte), na medida em que isso constitui um contraponto não antagônico à ontologia fundamental (Fundamentalontologie), mas também, nesse contexto, à introdução de uma nova nomenclatura com relação aos conceitos essenciais, entendidos sob essa nova luz. O tornar-se a obra da verdade no mundo humano e na existência humana passa a ser entendido não tanto na perspectiva (humana, se não antropologicamente pensada) do surgimento articulado do sentido Sinn, mas, acima de tudo, em sua dimensão temporal da ocorrência inaugural (Ereignis) da história, no lugar instantâneo (Augenblicksstätte]) de um encontro do ser com o seu aí e desse aí (humano) com o ser, no kairos de sua entrega de um ao outro. Esse evento ocorre como uma apropriação mútua e primordial, pela qual o ser à maneira humana é instituído como guardião e pastor do ser, em sua nudez original e fugaz. Começa aí uma história que também é um acontecimento, embora de um tipo diferente: Geschehnis, e não Ereignis. O tempo do instante é, portanto, unido àquele que consiste no acontecimento ou na passagem da história. Este último depende, entretanto, do primeiro, que constitui seu momento inicial. Somente o encontro provoca o nascimento.

O uso que Heidegger faz da palavra Ereignis a faz falar com enorme riqueza, de acordo com seu hábito e princípio de trazer à luz as implicações linguísticas da linguagem. Gérard Guest lembra, brevemente, que “o termo Ereignis deve ser entendido (simultaneamente) em seus três aspectos semânticos”: como “ocorrência” (Ereignis), como “apropriação” (Er-eignis) e no sentido óptico de regarder en face (Er-äugen), colocando este último em relação direta com o título das palestras de Bremen, “Einblick in das was ist”. É fundamental, portanto, pensar na coalescência do sentido temporal, com o duplo uso da etimologia. François Fédier, por sua vez, enfatiza particularmente a questão do olhar, concentrando sua atenção em Er-äugen e concluindo que “Heidegger ouve em Ereignis, aquilo que nos faz ver, que nos leva a abrir os olhos”. Essa riqueza semântica é decisiva em nosso caminho, nunca estando ausente de nossa consideração, mesmo quando optamos por enfatizar mais um ou outro desses aspectos, dependendo do contexto de significação. Em particular, a escolha do termo “ser propiciado” ou “propício”, na caracterização da “apropriação” e de sua ocorrência, enfatiza o caráter kairológico do início, do próprio “dar” da apropriação como uma ocorrência, ou de seu dar-se para ser visto pelo olhar que o recebe. É por isso que Ereignis é geralmente traduzido como “apropriação propícia”, mesmo que em alguns contextos o termo “ocorrência” tenha que ser substituído.

  1. Cf. la edición de Roger Munier, Lettre sur l’Humanisme, París, Aubier, 1964, pp. 180-185. Al final del texto de la famosa carta, se reproduce aquella que marcó el inicio del diálogo de Heidegger con Jean Beaufret, fechada el 23 de noviembre de 1945, y en respuesta, la misiva de este último, que le llegara de la mano de Jean Michel Palmier.[]