Borges-Duarte (2021) – relação do humano com o ser

(O Caminho e a Conversação)

No ensaio, que agora nos ocupa, sobre «o caminho», Heidegger tematiza, então, directa e simplesmente o tipo de relação ser-homem. Começa, justamente, por dizer que “não é comparável com qualquer outra relação [Verhältnis]” — quase sempre objectualizante — antes falando de um “nexo [Bezug] do ser ao humano” (Heidegger, 2018: 344), para a distinguir da mera representação que objectualiza o «ser» como mundo, isto é, como «Seiende im Ganzen», e encarando o homem, igualmente como objecto, o concebe como um «microcosmos», que tem de tudo um pouco, em proporção: “todos os graus e níveis do ente se dão no humano, mas em menor proporção: o homem é então matéria, corpo, alma, espírito — tudo isto impregnado de vida.” (Heidegger, 2018: 345). Nessa linha de atenção, a questão do humano pode (e deve?) colocar-se, à maneira scheleriana, como “pergunta pelo posto do homem, como ente entre entes, no meio do ente na sua totalidade”. Ora, como sabemos, e Heidegger diz explicitamente no final de esta página, “este representar e opinar não colhe de nenhum modo a relação do ser com a essência do homem”. Mas, ao longo da história, foi esta abordagem a que, em diversos momentos e sob diversos nomes, foi levada adiante e ainda hoje, mesmo «depois de SuZ», continua a ser dominante: o homem é concebido como zoon logon echon (animale rationale) e o lógos como uma categoria (Heidegger, 2018: 346), sendo os entes distinguidos em espécies [genê] na sua entidade [ousía]. A entidade é percebida [vernehmen] num nouein — e “o homem é o ser vivo que, diferentemente das plantas e dos animais, percebe o ser do ente e, portanto, o ente enquanto tal. É por isso, enquanto percipiente [vernehmende], é o ser vivo rational [vernünftig, rationale]” (Heidegger, 2018: 346). E é aqui que é recuperado o conteúdo do Kantbuch, num breve gancho:

Só Kant conseguiu aclarar felizmente e de forma preparatória o nexo perceptivo [vernehmender Bezug] do homem para com o ser. Chamou a esse nexo a consciência transcendental, tomando nele o ser no sentido da objectualidade do objecto e o objecto como objecto da experiência, isto é, da ciência da natureza matemática. A Kant muito lhe ficou oculto, nesta des-ocultação singular desta relação do homem ao ser, tão limitada de vários pontos de vista (em que o homem está pensado como «sujeito»). Mas acendeu-se uma luz [ein Licht ist aufgegangen], cujo brilho fez luz retrospectivamente sobre a metafísica, de tal maneira que esta se pôde mostrar algo mais claramente na sua essência. Acendeu-se uma luz que também ilumina para a frente, de tal modo que a metafísica do Idealismo Transcendental só então chega a poder desenrolar-se em toda a sua claridade, bem como tudo o que o que se constrói e erige como era do mundo [Weltalter] dos séculos 19 e 20. Acendeu-se uma luz. Mas esta luz não foi reconhecida na sua proveniência e na sua essência, nem pôde ser experimentado o que nela aconteceu [was sich da ereignete]. A relação do humano com o ser permaneceu oculta. Não se tornou pensável. Só em SuZ se levanta um pensamento em que esta relação é avistada. E, mesmo assim, à partida isto só acontece, de certo modo, como uma variante [Abwandlung] do nexo transcendental desocultado por Kant. (Heidegger, 2018: 346-347).

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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